Sem dinheiro
– Ali, meu amigo.
– Onde, colega?
– Na banca de jornal. Ali na esquina. Isso, perfeito.
O taxista estacionou seu carro como todo taxista.
Isso quer dizer: cuidadosamente atrapalhando todo o trânsito que vinha atrás. Mas não se importou; ligou a seta e ficou parado do lado da banca apontada, deixando que o resto do mundo se virasse.
– Deu… Vinte e dois e noventa e cinco.
– Você aceita cartão, chefe?
– Cara, o chip tá quebrado, sei lá quiéqui deu. Essa semana inteira tô sem a máquina de cartão. A operadora me falou que vai arrumar, mas, sabe cumé…
– Puxa, ai você me quebra. Tô sem dinheiro.
– Sem dinheiro?
– Isso.
– Mas, como uma pessoa pega um táxi sem ter dinheiro na mão?
– Hoje em dia, até trombadinha tá usando máquina de cartão! Como que eu ia saber, amigão?
– Quer que eu passe num banco pra você sacar?
– Não vai rolar, cara. Acho que vou ter de pendurar.
O taxista virou para trás, no seu banco, e olhou o cliente bem nos olhos; até então, ele só havia olhado através do retrovisor.
– Pendurar? Cê num viu o papel aí atrás, não?
Numa sulfite, digitado em letras bem grandes e colado com contact atrás do banco do passageiro, estava escrito: “Fiado nem amanhã”.
– Olha, meu amigo, eu até queria pagar, mas…
– Num quero saber. Num tem cheque aí?
– Não ando com cheque.
– Quer dizer então que a sua vida depende dum cartão?
– É.
– Então, sinto muito, meu amigo.
Ele se virou para frente, recolocou o cinto e, quando o passageiro percebeu, já estava voltando para o fluxo.
– O que você vai fazer?
– Vou deixar você de volta onde te peguei.
– Mas! Você não pode! Eu vou me atrasar pra minha reunião!
– Eu falei, a gente pode parar num banco, mas…
– Não!
O homem tentou abrir a porta do seu lado, mas estava trancada, e o pino simplesmente não levantava. Malditas travas de crianças!
– Ei, você não pode fazer isso!
– Eu posso, sim. Se você não vai me pagar, posso me negar a prestar o serviço.
– Mas você já prestou o serviço!
– Por isso! Estou devolvendo a prestação.
– Escute aqui, colega, vamos fazer o seguinte…
– Num quero saber. Já estou por aqui de gente como você, que fica enganando trabalhadores honestos que nem eu. Já fui muito enganado na vida, meu amigo! Agora, com dois filhos nas costas, e um deles cabeçudo que agora vai ser pai, não dá pra me deixar pra trás!
– Eu vou chamar a polícia! Isso é sequestro!
– Pode chamar, num tô nem aí.
O passageiro pegou o celular e discou 190.
– Alô, é da polícia? Preciso de ajuda, estou sendo sequestrado. Meu nome? E meu endereço? E telefone de contato? Escute aqui, querida, eu tô sendo sequestrado e você vem me querer dados pessoais pra quê? Não, não é trote, eu tô falando sério. Tô aqui no carro do sequestrador. Quem é ele? Ah, sei lá, é um taxista maluco que eu peguei aqui… Vou ler o nome pra você… Não, deixa eu te explicar, é que eu peguei um táxi, e ele não está aceitando cartão, e como eu não tenho dinheiro… Eu sei, mas é que, se eu descer no banco, vou me atrasar para a reunião… É, ele já me falou que é uma vergonha andar sem dinheiro… Não, então, ele está me levando de volta pro ponto onde me pegou, mas a questão é que ele não quer me deixar sair do carro!
O taxista berrou da frente:
– Ele quer sair no meio do trânsito, vai ser atropelado! Tô cuidando da segurança dele!
– Não, ele só parece gentil, moça, mas não é, não! É um demônio na forma de taxista. Eu estou te falando! Não, juro que não é trote, eu estou aqui na doutor Arnaldo e… Não, não desliga! Ah, merda!
Ele olhou desiludido para o retrovisor; o taxista já estava na metade do caminho.
– Satisfeito? – o homem indagou.
O passageiro bufou e, na falta de opção, ficou de braços cruzados, esperando chegar de volta ao seu ponto de origem.
Quando chegaram ao ponto, se tivesse um botão de ejeção, o taxista teria apertado, mas simplesmente se satisfez em deixar que o homem saísse por conta própria. E saiu cantando pneus, procurando um novo passageiro.
Enquanto isso, o homem foi para o ponto de ônibus. Quando o primeiro passou, ele subiu e ficou esmagado na parte da frente, até chegar perto do seu ponto. Ao seguir para a catraca, apertando-se por todos os lados para conseguir se aproximar, ele revirou os bolsos e, sem graça, virou para o cobrador:
– Ih, amigão, quebra essa pra mim…
O cobrador fechou a cara.
Nota do autor, outubro de 2021: é difícil imaginar isso, mas houve uma época em que você realmente precisa de dinheiro em mãos. Não tinha passe de ônibus em cartão, não tinha aplicativo para carro, não tinha pix nem muito menos cartão no celular ou link eletrônico para pagar no crédito! Dá para acreditar? Pois é…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais