Senha do Uai-Fai
Até que não era um lugar ruim de trabalhar. Tratavam o funcionário (razoavelmente) bem, ou, pelo menos, não tão mal quanto nos outros lugares, o ambiente era (razoavelmente) agradável, quer dizer, as paredes não estavam despencando nem nada assim, mas tinha seus dias em que o ar-condicionado não funcionava. A comida era (razoavelmente) boa, apesar de enjoar depois de comer o mesmo prato todas as segundas-feiras (e subsequentemente na semana, pois o cardápio semanal nunca fora mudado desde a abertura da empresa).
O grande problema – o principal dos problemas! – era um, porém: não funcionava o celular. O que não seria lá um problema tão absurdo, se pelo menos o uai-fai funcionasse. #SQN! Ninguém tinha acesso à senha do uai-fai, e, para colocar a cereja no topo do bolo, a internet era tão censurada quanto na China – só funcionava a intranet.
Isso poderia talvez não ser um incômodo nos anos 90, mas, agora? Caos total. Todos os funcionários se revoltavam com isso, embora não falassem nada, mas, com a revolução do Zapzap não tinha jeito – eles precisavam de internet! Fosse 4G, fosse uai-fai, tanto faz; só não podiam ficar desconectados por 9 horas todos os dias!
– Isso é um absurdo! – era a voz do povo. – Totalmente incomunicáveis o dia inteiro!
– Como vou caçar meus poquemans¹?
Pessoas pegavam seus celulares de minuto em minuto, apertando os botões para as telas aparecerem, mas, em vez de verem mensagens ou poquemans, tudo o que conseguiam era ver o relógio e uma fotinho de família no fundo de tela.
– Bah! – gritavam todas as vezes que isso acontecia, ou seja, a cada cinco minutos.
Assim formaram uma FRUFai – Frente Revolucionária do Uai-Fai – comandada pelo subsecretário do subgerente da subseção de subseções, que não tinha lá uma função (nem subfunção) bem definida, de forma que ficou estabelecido que sua nova função poderia muito bem ser obter o Uai-Fai sem qualquer ônus para a empresa. Seu nome era José Carlos (Vulgo J.C., ou Cezão) e, por poder circular livremente por todo o complexo institucional, coube-lhe descobrir quem poderia ser a pessoa que possuía a senha do Uai-Fai.
Traçou um plano estratégico; estava se sentindo praticamente um Napotigrão².
– Então, no departamento de controle de estoque, tem cinco funcionários, sendo que…
Por fim, chegou à conclusão de que deveria sondar as secretárias.
– Andei observando elas durante o almoço. Ficam sempre nos olhando com um ar de quem sabe mais do que nós, e ainda por cima ficam mexendo no celular o tempo todo!
Decidiu começar com algo mais lou-profaiou, de instâncias mais baixas, com a subsecretária do gerente da subseção de seções, que estava bastante acima dele, mas bastante abaixo de, por exemplo, a secretária do gerente da seção de seções. Seu nome era Andreia, morena, bonita, pernas bem torneadas, usavam umas sainhas e blusinhas que faziam bem à vista, e devia ser uns cinco anos mais nova do que J.C.
– Fiz uma pesquisa aprofundada em casa pelo Facebutt e Instagratificam³. Não é casada. Não é noiva. Não tem namorado. Gosta de fazer Istendi-âp Pedelingui e de labradores.
– Manda ver, Cezão! – exclamaram seus colegas, empolgados.
E assim foi. Um investimento progressivo, conhecendo a moça, chamando para sair, etc, etc… Achou que após a primeira noite juntos já teriam intimidade o suficiente para lhe perguntar a senha do Uai-Fai.
– Puxa vida, vocês não têm? – ela disse, toda amores, depois de receber as flores no dia seguinte. Que cavalheiro! – Espera aí.
Bingo!
Magicamente, com a senha posta, seu celular passou a funcionar e apitar – maravilha! Agora, estava conectado novamente!
J.C. foi aclamado como um herói do povo, e a FRUFai, definitivamente um sucesso.
Porém, o que faria ele com Andreia, agora que já havia conseguido até mais do que desejava inicialmente?
– Ah, Cezão, continua traçando! Só tem a ganhar! – exclamaram alguns.
– “Não se come onde se caga” – comentou alguém.
– Não quer dizer “Não se caga onde se come?” – outro redarguiu e, graças à recém adquirida internet, eles conseguiram descobrir que o ditado original envolvia pão e carne e nada de excretas humanas. O que só levou a mais glórias para J.C.
Com a internet finalmente funcionando, J.C. trocou ainda algumas mensagens com Andreia, tentando não parecer mal-educado. Encontraram-se algumas vezes depois; ela parecia realmente apaixonada, o que estava se tornando muito perigoso. Uma hora, ele decidiu dar um gelo; parou de responder mensagens, ficou afastado da seção onde ela trabalhava, tentou evitar de qualquer modo encontrá-la.
Só que aí…
– Cezão! Precisamos da sua ajuda de novo!
– O que aconteceu?
– Mudaram a senha do Uai-Fai!
– Como?!
Quem seria desumano a tal ponto? Era pior do que dar um pirulito para criança e, na hora em que ela fosse começar a lamber, tirar!
Tinha de se encontrar com Andreia de novo, mas não podia fazer parecer que era só por causa da senha. Como iria fazer?
Ele apareceu na subseção de seções meio sem jeito, coçando o cabelo como se estivesse encabulado, com flores que comprara na banca de esquina.
– O-oi, Andreia.
– José! Meu Deus, há quanto tempo! Estava preocupada com você! O que aconteceu?
– Eu… Estava de férias – falou.
– Mas faz três meses que a gente não se vê!
Não tinha colado. Mas ele já esperava por isso; olhou para os lados, meio incerto, sentou-se do lado dela e contou uma história triste sobre a morte de sua avó em uma pequena cidade no interior do Rio Grande do Norte, onde mal e mal tinham telefone.
– Meu chefe foi muito bom de me deixar ir lá dar uma força para o meu avô – ele falou. – Muito bom, mesmo.
– Puxa, que dó do seu avô! Ele está bem?
– Está bem. Ele já enfrentou a guerra, então…
– Que guerra?
Porcaria. Tinha se empolgado demais com a história. Que raios de guerra ele poderia inventar?
– Quis dizer a ditadura.
– Ah…
Apesar da história mal contada e com um pouco de ajuda do charme natural de J.C. e das flores que ele lhe trouxe, o relacionamento de ambos retornou como se nada houvesse ocorrido. E, J.C., esperto como só ele, não mencionou nada sobre o Uai-Fai.
– Esperem, vai dar tudo certo, vocês vão ver – ele falou para seus seguidores, ávidos por mandar mensagens e caçar poquemans.
Por fim, quando chegou sexta-feira, Andreia lhe perguntou:
– Por que você só responde as minhas mensagens à noite?
– É que o Uai-Fai não está mais funcionando – ele respondeu; por dentro, o coração batia loucamente de emoção.
– Mas como… Ah, é, eles mudaram a senha semana retrasada! Deixa eu te passar, espera aí…
E, assim, J.C. foi aclamado mais uma vez pelos colegas. Mas qual não foi a sua surpresa quando, na segunda-feira…
– Isso é uma palhaçada! Mudaram a senha de novo!
– Caramba! – exclamou J.C.
E lá foi ele, desta vez com alguns bombons que seus colegas lhe deram, ou ele iria à falência, se continuasse arcando com tudo do próprio bolso.
– Flor está cara hoje em dia!
Amenidades vão, amenidades vêm, e ele conseguiu a senha do Uai-Fai mais uma vez.
Na semana seguinte… A mesma coisa. E assim a vida seguiu; toda segunda ele se encontrava mandatoriamente com Andreia para pegar a nova senha, algumas vezes durante a semana encontravam-se à noite… Depois de um tempo, eles já estavam indo juntos para o trabalho, às vezes da casa de um, às vezes, da casa de outro, e a coisa já estava automática. Assim que se encontrava com Andreia, ela já lhe passava a senha, anotada em um papel, colocado cuidadosamente no seu bolso, quase como se fosse uma mensagem secreta.
Porém, as pessoas não tomavam tanto cuidado quanto ele. Toda segunda-feira era o maior alvoroço, e por toda a empresa, inicialmente aos cochichos, e depois, aos berros, as pessoas passavam a senha umas para as outras.
J.C. sempre balançava a cabeça, quando isso ocorria.
– Ainda vai dar ruim… – murmurava.
Depois de alguns anos, os dois se casaram; boa parte da empresa foi chamada e, no salão, tinha Uai-Fai grátis e sem senha, para que todos postassem as fotos do casamento.
Porém, não muito depois, quando já estavam planejando engravidar, Andreia foi demitida. O motivo?
– Não sei, mas o meu chefe me deu a entender que foi por ficar passando a senha do Uai-Fai!
Na FRUFai, a revolta foi grande; como assim, demitir a Deia, ou Dezona, para os íntimos? Tinham de dar um jeito. A FRUFai criou uma nova frente: a FRUDeU – Frente Revolucionária Única de Derrubada do Uai-Fai.
– Precisamos de um ráquer! – alguém sugeriu. – Alguém que possa invadir o sistema e modificar a senha do Uai-Fai, para que ninguém mais da alta esfera consiga usá-la, até que coloquem a Andreia de volta!
J.C. achou melhor não participar desta frente; além do nome ridículo, a ideia parecia doida demais e muito propensa a dar errado.
Mas, mesmo sem seu líder, a frente revolucionária conseguiu seu ráquer, modificou a senha do Uai-Fai, e pronto. A senha?
– EiEiEiCezaoENossoRei! – gritavam.
A equipe de TI demorou, mas conseguiu arrumar a senha. Pouco depois, o ráquer derrubou de volta; a TI derrubou mais uma vez; e logo o negócio começou a ficar pessoal. Contrataram uma empresa de segurança, mas não era páreo para o ráquer da FRUDeU. Em pouco tempo, toda a intranet estava à mercê deles, e o poder absoluto os corrompeu absolutamente. Começaram a chantagear.
– Contratem de volta a Dezona, ou iremos divulgar todos os podres desta empresa!
E Andreia, que nem sabia o que estava acontecendo, logo se viu sendo interrogada pelos advogados da empresa.
– Mas tudo o que eu fazia era passar a senha do Uai-Fai para o meu namorado!
J.C. foi junto para o interrogatório.
– Mas o que tem de errado em usar o Uai-Fai para trabalhar?
A retaliação por ambas as partes foi grande. Todos os participantes da FRUFai foram demitidos; e, fora da empresa, todos da FRUDeU decidiram que era hora de quebrá-la, divulgando todas as falcatruas para a imprensa.
A empresa foi à falência.
Ah, e sobre o Cezão e a Dezona? Bem, ela acabou contando, depois de algum tempo, que quem mudava a senha do Uai-Fai desde o começo era ela… Só para poder encontrar o seu amor novamente. Estão procurando emprego também agora, usando o Uai-Fai grátis das poucas lojas que o disponibilizam, para acessar o aplicativo de busca de empregos.
Nota do autor, outubro de 2021: pois é, pode parecer ridículo, mas eu trabalhei em vários hospitais que funcionam como verdadeiros bânquers (nada de sinal de celular), nos quais não compartilhavam a senha do Uai-Fai nem que se pagasse em ouro, e cujos computadores não permitiam sequer que se lesse um CD. O que é absurdo, porque vários pacientes trazem exames em CD! Sem mencionar que era impossível de se discutir um caso com o chefe ou o responsável da retaguarda cirúrgica, e a gente tinha de sair e ficar trocando mensagem na frente do hospital, enquanto todo mundo achava que a gente estava só matando tempo em vez de atender. Eita, médico folgado!
Enfim, graças a Deus, não dou mais plantões, mas os hospitais, infelizmente, continuam com esse sistema horroroso de restrição da senha do Uai-Fai. Aguardem.
Ei Ei Ei, Cezão é nosso Rei!
¹ Mistura de pocket com humans, do ingrês, é um jogo criado no Tapão em que você coleciona pequenos seres humanos com habilidades especiais em um pequeno cubo. Você os guarda e depois os usa para pequenas rinhas de galo, ou coisa que o valha.
² Conquistador trancês, acabou perdendo quando invadiu a tróssia e se esqueceu de levar cobertores e chá quente para combater o seu maior inimigo: a friagem predita pela sua avó, que Deus a tenha.
³ Outra rede social do planeta Areia, em que as pessoas postam fotos para conseguirem gratificação instantânea – daí, instagratificam.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais