Sombra
Quando se mudou para a sua casa, para dividir o apartamento enquanto estivessem na faculdade, parecia um cara legal. Tranquilo, esforçado, sem ficar muito de bobeira. Era seu calouro – ele já estava alguns anos adiantado – e tudo o maravilhava. “Nossa, você já fez isso?”, “Nossa, você já fez aquilo?”. Até mesmo suas roupas: “Que legal, você se veste que nem gente grande, não que nem seus colegas”. Só porque usava sempre calça, camisa pólo ou camisa comum.
Tudo começou, talvez, no dia em que lhe perguntou:
– Onde você comprou essa calça?
– Ah, num outlet da TMG¹. Por quê?
– É bonita. Acho que vou comprar uma pra mim.
E assim foi. Primeiro, a calça. Depois, os sapatos. Cinto, camisa, perfume, tudo; até óculos começou a usar, para ficar igual. Para o cabelo, que era liso, fez permanente, para ficar cacheado igual; para os olhos, usou lente.
– Ei, Marcelo, você tá mais alto?
– Acho que é impressão sua.
– Não, não é não. Antes vocês batia aqui. Agora, você tá quase da minha altura! Que é que você fez?
– Nada, nada.
Mas ele viu; um dia, quando não estava em casa, encontrou, no seu armário, um par reserva de pernas de pau, que colocava nos sapatos para ficar um pouco mais alto. Que loucura!
Logo, o jeito de falar era o mesmo. A forma como sentava, como gastava o seu tempo livre, tudo era igual.
– Marcelo, por que você tá fazendo tudo igual a mim?
– Tô não, eu sempre fui assim!
– Sempre, nada. Na escola você era mó diferente.
– É que eu ficava de uniforme…
A explicação não tinha lógica, mas tudo bem; que mal faria?
Até a hora em que seus amigos começaram a confundi-los.
– Nossa, Marcelo, esse cara que tá vindo é igualzinho a você! – falaram um dia, conforme ele se aproximava.
– Eu sou o Marcos! Ele é o Marcelo! – ele reclamou, apontando, mas teve de admitir; era difícil diferenciá-los.
Um dia, sua mãe veio visitá-lo; quando chegou, lá estava ela, de maior papo com o Marcelo (ou seria o Marcos?).
– Nossa, Marcos, por que tem um cara vestido igualzinho a você?
– EU sou o Marcos! Ele é o Marcelo!
– Parem com isso vocês dois! Estão pregando uma peça em mim?
– De certo, vocês que estão! – reclamou Marcos. – Onde já se viu, ficar me imitando? Chega disso, Marcelo!
– Eu não sou Marcelo, eu sou o Marcos. Você é o Marcelo, e você está me imitando!
O outro bufou, puxou a mãe e saiu da casa.
Dois dias depois, estava deitado na cama, olhando para o teto, ao lado da namorada, ambos nus.
– Sabe, Marcos, eu não queria falar, mas…
– O que foi?
– Parece que o Marquinho tava maior anteontem. Que foi que aconteceu?
– Ahm? Mas eu não tava aqui com você anteontem. Eu tava com a minha mãe.
– Não, você tava comigo, eu tenho certeza. E foi tão bom…
Ele se sentou na cama e, batendo os braços no colchão, gritou:
– Marcelo!!!
Aquilo era demais. Tinha sido a gota d’água. Tinha de tomar uma providência, e rápido.
Trocou o estilo de roupas; começou a usar bermuda, chinelo e camiseta regata. Tirou os óculos e pôs lentes; alisou os cabelos. Só não deu para mudar a altura, mas, de resto, parecia com o Marcelo original. O outro, por sua vez, imitava-o em tudo. E ainda teve a pachorra de preguntar:
– Nossa, por que resolveu mudar de estilo? Só porque eu tinha falado que parecia gente grande?
Tentou ficar assim por uma, duas semanas e aí mudou de volta. Mas, na hora em que abriu a porta do quarto… Lá estava Marcelo, vestido como ele. O ele original.
– Ah! – gritou e voltou para o quarto.
Poderia mandá-lo embora, mas correria o risco de ser substituído, na casa dos seus pais, na casa da namorada, se bobear, até mesmo na faculdade. Era capaz de ele pular os cinco anos de distância entre eles!
Decidiu mudar de rumo; chamou outro amigo para morar com eles. Em pouco tempo, estava tudo arrumado, e Marcos se sentou no sofá, com as pernas e os braços cruzados, observando as roupas e os trejeitos do amigo, para imitá-lo. Marcelo ficou na mesma posição, fazendo as mesmas observações.
Em poucos dias, Marcos imitava Bruno, e Marcelo imitava Marcos. Saíram os três da casa de cabelos loiros, olhos azuis, barba por fazer e a roupa toda amassada. Um se encurvando para ficar na altura certa, outro se esticando. E o terceiro sem saber o que fazia. Colocou as mãos nos bolsos e encarou o chão; os outros fizeram o mesmo. Correu; os outros correram atrás. Parou; os outros pararam.
Mas não durou muito tempo; antes das nove da noite, a polícia batia à porta e levava os dois garotos imitadores, presos por falsidade ideológica e perturbação da paz.
– Ótimo! Viu o que você fez, agora? – reclamou Marcos.
Estavam em uma cela apertada, com diversos outros presos, que logo começaram a zombar da roupa copiada que os dois usavam, e do fato de que Marcelo imitava tudo o que Marcos fazia. Ou vice-versa.
Por fim, a mãe de Marcos chegou e pagou a fiança para deixá-lo em liberdade; o guarda abriu a porta; uma das figurinhas repetidas saiu; a mãe lhe deu um beijo na cabeça, passou-lhe a mão nos ombros, disse que tudo ficaria bem e foi embora; o outro agarrou as grades, sacudiu-as e gritou:
– Eu sou o Marcos! Eu! Ele é o Marcelo! Ei, seu guarda! Voltem aqui! Eu sou o Marcos!!!
Mas ninguém o escutou.
Sentou-se no chão, desanimado, e outro cara se sentou do seu lado.
– Então, quem é você, afinal? Marcos ou Marcelo?
Ele o encarou; tinha uma estatura parecida, os cabelos eram parecidos, e dava para dar um jeito nos olhos e na forma de caminhar.
– Nenhum dos dois. Qual é o seu nome?
– Gildo – o outro falou, estendendo-lhe a mão.
Marcos retribuiu.
– Olhe só, que coincidência! Eu também!
Nota do autor, setembro de 2021: no último ano da faculdade, eu comecei a dividir o apartamento com um colega de escola. Fizemos escola juntos, mas ele entrou na faculdade quando eu estava no último ano. Ele não me imitava, lógico, mas a ideia veio daí. Acho muito divertida esta crônica!
¹ TMG: loja famosa de roupas do País Pernil. Reza a lenda que a sigla quer dizer “Tô Muito Gato”.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais