Telefonemas
Dráuzio levava uma vida normal, tranquila, pacífica. Nunca brigava com ninguém, era um daqueles caras que andavam com um sorriso estampado no rosto, que cumprimentavam todos por quem passavam, que diziam Por Favor e Obrigado.
O motivo pelo qual digo Era é porque, em uma bela manhã de sol, Dráuzio recebeu um telefonema um tanto quanto esquisito. Eram sete horas da manhã e, muito embora despertado de seu sono sereno, ele atendeu com um animado Alô? Tudo bom?, até ouvir:
– Chamada a cobrar. Para aceitá-la…
A maioria das pessoas costuma não atender chamadas a cobrar, a não ser que já esperassem que alguém lhes ligasse de tal modo, mas o senhor D. era um homem tão gente boa que, mesmo não esperando por ninguém, ficou na linha, para ouvir…
Nada. Do outro lado, muito embora já estivesse debitando de sua conta, ninguém falava nada, nem mesmo quando ele repetira o Alô? Tudo Bem? pela trilhonésima primeira vez.
Inconformado mas ao mesmo tempo conformado (porque pessoas de bom humor não se desconformam por muito tempo ou se conformam muito rapidamente), ele depositou o celular ao lado da cama, deu um beijo em sua esposa deitada ao lado e já estava a pegar no sono, um sorriso no rosto e os braços bebenianamente postos sob este, como se rezasse, quando…
– Triiiiiiiiiiiiiiiiiiim!
Prontamente ele atendeu o telemóvel, com o seu costumeiro Alô? Tudo Bem?. E novamente a ligação a cobrar e a não-voz misteriosa do outro lado.
– Alô? Tudo bem? Quem está falando? Sinto muito, mas eu não estou te escutando. Aqui é o Dráuzio. Tudo bom? Quem está falando?
O mais puro som do silêncio. Na verdade, era um som do silêncio tão alto que, se um surdo estivesse naquele cômodo, não iria conseguir permanecer por muito tempo, com dor de ouvido.
Ainda com um sorriso no rosto, nosso grande herói desligou o telefone, virou-se para o lado e, já imaginando inconscientemente que jantava com uma atriz da qual ele não mais se lembraria em questão de cinco segundos, praticamente voou da cama ao ouvir, mais uma vez, o maldito toque do celular.
– Alô? Tudo bem? Como vai? – respondeu mecanicamente.
Uma ameba teria produzido mais som do que o ser do outro lado da linha. Mas nosso grande amigo Drau era um eterno conformado e, sem se importar, voltou a dormir. Quer dizer, tentou, porque a pessoa misteriosa tornou a ligar mais duas vezes, até que o pobre herói simplesmente desistiu e resolveu se levantar para um novo dia.
Às oito e meia estava em seu escritório, animado como se nada tivesse acontecido, fazendo o que sempre tinha de fazer. Na hora do almoço, saboreava como se fosse a primeira ou última vez e, durante a tarde, trabalhou como se fosse o próprio dono da empresa, até que, às cinco horas da tarde…
– Triiiiiiiiiiiiiiiiiiim!
– Alô? Tudo bem?
– …
– Oi?
– …
– Ah, não, de novo?
– …
– Desculpe, senhor ou senhora, mas eu não estou te escutando.
Ele desligou, e não deu mais que quinze segundos antes que o telefone móvel tocasse de novo. E de novo. E mais uma vez. E ainda outra. E uma quinta, e uma sexta, até que, finalmente, ele teve a grande ideia de desligar o celular, desesperado. Às seis horas, voltou para casa como se nada tivesse acontecido, saboreou seu jantar, viu seu telejornal, leu seu livro, deu um beijo de boa noite na filha e foi para a cama, religando o telemóvel, decidido de que não iriam mais ligar.
No dia seguinte, às sete horas da manhã…
Era meio-dia, e Dráuzio não aguentava mais aquilo. Aquela pessoa – fosse homem ou fosse mulher – já havia lhe telefonado umas… 25 – ah, agora, 26 – vezes! Era hora de tomar uma providência. Aproveitando-se do identificador de chamadas, D. resolveu ligar de volta para seja lá quem fosse que lhe ligava. Ele tocou, tocou e, na hora em que finalmente atenderam – era uma voz feminina –, o nosso herói desligou, um sorriso maligno no rosto. Isso ia mostrar a ela que ela não deveria fazer mais aquilo!
Mas a vida, esta sim é uma caixa de chocolates de sabores diversos, a maioria dos quais, no mínimo, estranha, e, logo depois, a mulher ligou de volta. Dezão sequer atendeu; abriu e fechou a tampa do seu celular, e ligou mais uma vez para ela (havia até colocado o seu número na agenda, sob o número 1, e com o nome Mulher Chata). Assim que ela atendeu, ele desligou e, para provar que não estava para brincadeiras, ligou mais uma vez em seguida e desligou novamente.
Com isso, ela parou de ligar por um tempo e ele pôde seguir com o seu dia.
Até que…
Eram quatro horas da tarde; Dráuzio já havia dispensado 3 pessoas da sua sala com safanões aéreos e desligado na cara ou se recusado a atender a ligação de, pelo menos, 20 pessoas, no processo de ligar e ser ligado pela chata. Aquilo havia se tornado praticamente um jogo, no qual ganharia o último que ligasse – ou morresse tentando. Deste modo, vocês não imaginam o ataque que o nosso herói teve ao ver que a bateria do seu celular havia acabado.
Desesperado ele correu pelo prédio do escritório inteiro, procurando um carregador; sem conseguir, pegou o carro, circulou a cidade inteira à procura de um e, finalmente, ao consegui-lo, um sorriso enorme de satisfação no rosto, pôs o seu pequeno aparelho superaquecido para carregar – mas não sem, logo depois, ligar para a mulher.
– Alô?
– Oi, desculpe, a bateria do meu celular acabou. Mas saiba que isso não vai acontecer de novo – disse e desligou na cara dela.
E, para garantir que não aconteceria, comprou mais quinze carregadores, um para cada lugar.
Depois de duas horas na loja, ligando e sendo ligado enquanto a bateria recarregava, ele voltou para casa, o telemóvel no viva-voz, para garantir que não fosse multado.
Noite adentro eles se ligaram – mas não se falaram –, os intervalos progressivamente aumentando, mostrando que, entre as incomunicações (ou talvez um certo tipo de comunicação de um modo bastante peculiar), eles cochilavam.
No dia seguinte, o senhor D descochilou com uma cara amassada, olheiras profundas, deitado no banco do carro – não havia sequer conseguido sair de dentro dele, muito embora estivesse dentro da garagem. Aquilo não podia continuar assim; tinha de fazer algo.
Ligou para ela trinta vezes seguidas, como se para mostrar que, apesar de, durante a noite, ter tido seus lapsos, havia acordado completamente descansado para a batalha do dia seguinte. E ela fez o mesmo, ligando não só trinta, mas cinquenta vezes! Ele, enquanto isso, aproveitou para passar rapidamente por uma padaria, tomar um café – sem largar o telefone por sequer um minuto – e prosseguir em sua empreitada.
Naquele dia, não foi trabalhar; nunca havia faltado em 25 anos de trabalho duro, poderia se dar ao luxo uma vez, por mais que todos estranhassem. Passou a tarde em um restaurante, apenas celulando, passiva ou ativamente.
Em sua casa, sua mulher já estava preocupada, especialmente porque tentava ligar para o marido, mas só dava ocupado. O que estava acontecendo? Por que ele não voltara para casa? O que estaria fazendo? Ninguém no escritório sabia onde ele estava; por que não fora trabalhar? Será que algo acontecera? Estava machucado? Ou, pior, havia sido sequestrado? Estaria na mão do SCC? Era isso? Estava, naquele momento, em uma favela no Mar[1], uma arma apontada para a cabeça e os traficantes usando o seu celular para ameaçar o governador de morte ou para contrabandear mais drogas, botando a culpa nele?
Elucubrações surrealistas – muito embora possíveis – à parte, lá estava Dráuzio, parado no Draivi Fru do Back Gonalds¹ havia duas horas, ligando e religando. Em volta, as pessoas o encaravam como se fosse um maluco, e foi necessário um guincho retirá-lo de lá, porque não prestava atenção a ninguém que não fosse o celular.
E assim passou o tempo; quando a bateria do carro acabou, ele foi desesperadamente para uma loja, onde comprou mais baterias reserva.
E onde teve uma grande ideia.
Ora, aquilo só estava equilibrado porque ambos tinham apenas um celular e, logo, tinham de aproveitar apenas um minúsculo espaço de tempo entre uma ligação e outra para discar. Agora, como ficaria o jogo se, em vez de usar apenas um controle, ele usasse dois?
Com isso, Dráuzio comprou outro celular e, dispondo das duas mãos, passou o dia inteiro ligando, do Shopim, para ela, incessantemente, sem lhe dar chance de devolver sequer uma ligação.
Ela, entretanto, se provou extremamente inteligente e, como ele, rapidamente comprou outro aparelho e se pôs a ligar. (Neste ínterim, nas empresas telefônicas, as pessoas se perguntavam o que diabos estava acontecendo, que havia um pico daqueles de um celular para o outro, o tempo todo, sem parar, mas não conseguiam achar uma explicação lógica ou racional – devia ser algum problema do sistema).
Contudo, ainda havia o problema da noite para resolver. Como poderia ele dormir?
Rapidamente lhe veio uma ideia à mente; voltou para casa pela primeira vez em duas semanas, ignorou completamente os abraços da família, já quase em crise de nervos de tanto esperar por notícias suas, e se trancou no quarto um carregador em cada tomada, um celular de cada lado e o computador no meio. Ia colocar a máquina para funcionar por ele – era desleal, sim, mas não tinha como fazer para ligar à noite. Quatro horas por dia não seria problema – afinal de contas, ele tinha de dormir.
E assim foi; a mulher estranhava cada vez mais os toques repetidos de celular, a atitude maníaca do marido, mas nada disse, até que, no quinto dia daquela loucura, não aguentou mais e entrou no quarto.
Encontrou Dráuzio caído no chão, babando, as duas mãos discando incessante e automaticamente, os pés batendo no teclado, para ligar, sua face emagrecida e cansada repetindo as palavras Alô? Tudo Bem?
Nosso herói acabou, por fim, em um hospício e, pelo jeito, com a mulher deve ter acontecido o mesmo, porque, desde então, ninguém nunca mais ligou naqueles números. E, em compensação pelos diversos anos de serviço prestados, o pessoal do trabalho dele havia sido bonzinho e resolvido aposentá-lo por invalidez, em vez de demiti-lo por incompetência. Deste modo, em questão de algumas semanas, Drau já estava melhor.
– Semana que vem o médico vai te dar alta – informou a esposa diligentemente, dentro do casulo no qual o marido ficava.
O outro sorriu; estava feliz novamente, tendo deixado tudo que acontecera de lado.
– Sim, semana que vem eu vou poder sair – pensou ele, conforme a esposa se ia. – E tudo vai dar certo.
Mas a vida, ó, que mar de surpresas! Faltando dois dias para que ele saísse, de repente, alguém tocou uma campainha em algum lugar. E de novo:
– Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!
Ele olhou para a porta em frente; atrás da janelinha, uma mulher apertava insistentemente um botão.
Mesmo sem nunca terem se visto, ambos imediatamente se reconheceram, e Dráuzio passou a apertar sem parar a sua própria campainha; do outro lado, a moça fazia o mesmo, em uma guerra de trins.
E assim continuaram.
Pelo que ouvir dizer, cada um foi transferido para um hospício diferente, em lados opostos da cidade, depois disso. Apesar disso, pelo que corre por aí, os dois ficaram tão loucos (os mais românticos dizem por amor) por esta competição que desenvolveram habilidades telepáticas e passam o dia inteiro em brigas mentais para ver quem telepaticamente liga para o outro mais vezes.
“Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!” Nota do autor, setembro de 2021: eu gosto muito desta crônica, especialmente porque eu tenho certeza de que todo mundo já passou pela irritante ocasião de alguém telefonar e não falar nada. Como é irritante!
¹ (Nota do autor, 2021) Mar de Fevereiro, uma cidade do País Pernil notória por seus criminosos tranquilos (os maus mesmo moram em Pernília, a capital do Pernil).
² (Nota do autor, 2021) Rede famosa de fésti fudi, eles vendem hambúrgueres que são feitos de qualquer coisa, menos carne, e o seu símbolo é um camelo formando um M. A razão por que chama Back Gonalds? Vou deixar você pensar.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais