Um Frentista Inesperado
Alison era uma pessoa correta. Daqueles raros de se ver hoje em dia, que não jogam lixo pela janela do carro, que devolvem dinheiro se lhes deram algo a mais de troco, que não tentam fugir do Imposto de Renda.
O problema é que um dia ele foi encher o tanque do carro.
Tá, tudo bem, não é um problema encher o tanque¹, um monte de gente faz isso todos os dias. O caso é que ele esqueceu a carteira em casa.
– São 130 e 45, doutor – disse o frentista.
– Ai, meu Deus! – disse ele, passando a mão em um bolso, depois em outro, depois procurando pelo carro. – Ai, meu Deus! – buscou na mala, nos bancos, mas nada. – Meu amigo… Eu esqueci a carteira.
– Sei, doutor… – disse o frentista, desconfiado, apoiando o braço no carro.
– Nem eu mesmo acredito. Nunca aconteceu isso na minha vida!
– Eu escuto muito isso, doutor.
– É verdade. Estou morrendo de vergonha. Puxa vida… O que dá pra gente fazer?
– Bom, o senhor pode deixar o carro aqui e ir buscar o dinheiro em casa.
– Mas eu moro a trinta quilômetros daqui!
– Vixi, doutor!
– E se eu deixar a minha mala de serviço, aqui?
– Acho que não vai rolar, não, doutor. Eu vou chamar o meu gerente. Venha cá.
Ele saiu do carro, e os dois foram juntos, então, até a sala do gerente. Alison ofereceu deixar a mala lá, como garantia de que voltaria.
– Mas a gente não pode aceitar este tipo de coisa como pagamento.
– Não é pagamento – ele respondeu. – É uma garantia de que eu volto com o dinheiro. Olhe, essa mala é de couro de jacaré. Ela custa três mil falsos.
– Mas como eu posso ter certeza de que você vai voltar?
– E quem seria o louco de deixar uma mala que custa vinte vezes o que eu gastei aqui como forma de pagamento?
– Não, doutor, não posso aceitar isso. E se a sua mala some? Como é que eu vou pagar de volta pro senhor?
– Ai, meu Deus…
– Olha, doutor… – começou o frentista.
– Não precisa me chamar de doutor. Só Alison. Eu não sou doutor.
– Ah, mas quem tem uma mala de três mil falsos só pode ser doutor!
– Ou fanqueiro – disse o gerente.
– Mas aí ia ser corrente de ouro ou alguma coisa do tipo – respondeu o frentista.
– Por favor, só Alison…
– O senhor é fanqueiro, doutor… Senhor?
– Não! Eu sou empresário!
– Daqueles negócios… Lá? Sabe?
– Não! Eu sou uma pessoa correta. Tenho uma firma de engenharia civil.
– Ah! – exclamou o frentista.
– Mas o que você ia sugerir?
– Ahm… Eu ia falar para o senhor pedir para a sua esposa, ou alguém da família, vir aqui pagar para o senhor.
– Seria uma boa ideia – ele falou. – Mas minha esposa está na Trança, a serviço. E meus pais estão em uma clínica de idosos. Se der dinheiro na mão deles, é mais provável que eles parem em uma farmácia e fiquem por lá.
– Não tem irmãos, não, doutor? Quer dizer, seu Alison?
– Infelizmente, não.
– Puxa vida! E agora? – perguntou o frentista, jogando os braços para o ar.
– Já sei – disse Alison. – Me passe o número da sua conta.
– Da minha conta? – indagou o gerente.
– Sim. Eu transfiro o dinheiro para a sua conta, aqui, pelo celular, e pronto!
– Mas as contas da empresa e a minha são diferentes.
– Está bem, então eu deposito direto na conta da empresa.
– Não aceitamos este tipo de pagamento.
– Senhor! Tudo bem. Eu vou… – ele olhou para o frentista. – Você paga para mim, e eu transfiro para a sua conta. Pode ser?
– Ô, seu Alison – respondeu o frentista, humildemente. – Quem dera eu tivesse tudo isso na carteira! Mas já é dia seis.
O outro deu de ombros.
– Já paguei todas as minhas contas, já acabou todo o meu dinheiro.
– E se eu transferir, e você for lá sacar?
– Meu banco fica a uma hora de ônibus daqui.
– Só depois que acabar o seu turno de serviço, então – disse o gerente. – Nada de ausência de tanto tempo! Quem vai trabalhar no seu lugar?
Todos se entreolharam, e dois pares de óculos repousaram sobre o empresário.
– Cumé?
Mas não tinha jeito. Esta era a única solução.
Sendo assim, ele transferiu o dinheiro, deixou que o frentista visse se estava na sua conta, e, certificando-se de que a transferência já havia sido feita, lá partiu o frentista, deixando a Alison o seu uniforme, para que trabalhasse em seu lugar.
Não foi um trabalho difícil – considerando o que fazia, Alison achou até bastante relaxante. Tudo o que ele tinha de fazer era abrir a tampinha, colocar a bomba, ligar e esperar. Depois, tirar tudo, fechar e cobrar. Era tão fácil, que ele até pensou se não poderia começar a fazer isso dali em diante. Quer dizer, alguém poderia assumir a empresa por ele, e ele ficaria lá, trabalhando como frentista. Por que não?
O tempo foi passando, e o frentista demorava, demorava e demorava. Duas horas. Duas horas e meia. Três horas. E nada de ele chegar. Onde estaria? O que estava acontecendo? Tudo bem que Santa Paula tinha muito trânsito, mas aquilo estava beirando o absurdo.
Ele olhou para o gerente, nervoso. Todo o seu amor pelo trabalho de frentista tinha se esgotado quando seus pés começaram a doer de ficar em pé. Aliás, por que raios precisavam de um frentista? No exterior, eles não tinham bombas automáticas?
– Quer saber – ele falou, já cansado. – Eu compro este posto.
– Cumé?
– É isso aí. Eu compro este posto. Por quanto você me vende?
– Olha, seu Alison, eu não sou o dono, eu não posso vender.
– Então, ligue para ele e pergunte. E peça o número da conta. Eu faço a transferência já.
– Bom, é…
– Vamos, ligue!
– Está bem – disse o gerente. E foi ligar.
O dono do posto, porém, não estava disposto a vender; era um lugar bom, que dava muito dinheiro. Alison bufou; já fazia três horas e meia, e nada de o frentista original voltar! Será que estaria torrando o seu dinheiro em cervejas?
Por fim, Alison não aguentou. Depois de quatro horas enchendo o tanque das pessoas, quando o gerente estava olhando para o outro lado, ele entrou no carro e saiu acelerando pela avenida. Estava livre!
Porém… Não tinha andado nem três quilômetros, quando percebeu que a luzinha ainda estava piscando, e o carro, engasgando. Ora! Não tinham enchido o seu tanque até em cima? Como raios?
Olhou um posto logo ao lado.
Ignorou e seguiu em frente.
Quando o carro parou, no meio da marginal, ele ligou, todo feliz, para o guincho, para levá-lo para casa. Pagaria uma multa, sim, com certeza, mas, ao menos, não estava enchendo tanques e mais tanques de combustível.
E, no caminho, ele se perguntava: era isso? Ele tinha sido enganado? Não só tinha pagado por um tanque que não havia sido enchido, como ainda por cima havia trabalhado de graça por quatro horas?
Mas Alison era um cara correto. No dia seguinte, mandou entregar no posto o uniforme que estava usando, com um pedido de desculpas. E, enquanto isso, o frentista e o gerente estavam se divertindo vendo cuidadosamente todos os detalhes da carteira do seu Alison.
Nota do autor, outubro de 2021: ah, esse País Pernil! Não é para amadores!
¹ Nota de outubro de 2021: não era um problema naquela época! Vai encher o tanque hoje em dia, com o preço atual dos combustíveis!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais