Os três porquinhos e o lobo burocrata
Certo dia, os três porquinhos, que eram trigêmeos, atingiram aquela idade em que não eram mais jovens o suficiente para precisarem de cuidados da mãe, nem velhos o suficiente para conseguirem constituir família.
A mamãe porca, porém, já tinha uma nova ninhada de filhotes a caminho e foi logo dizendo que não iria ficar cuidando de marmanjo em casa. Assim, avisou que os três deveriam fazer suas malas e se prepararem para tocar as próprias vidas dali em diante.
O mais novo (por diferença de alguns minutos, diga-se de passagem) reclamou que esperava ficar com ela, ao menos, até se casar; o do meio, ao menos até terminar a faculdade; e o mais velho, até conseguir um emprego.
– Quem sabe, faz a hora – foi tudo que ela disse, e os pôs porta afora, com nada além do dinheiro das suas mesadas no bolso.
Pois bem, lá se foram os três porquinhos irmãos, cada um à procura da sua casa.
Cícero, o mais novo e também mais preguiçoso, acho pelo caminho uma casa na qual não morava ninguém e, feliz e contente, resolveu por lá ficar. Como não tinha gastado com nada, decidiu que iria usar seu dinheiro para festejar.
Heitor, o do meio, que era um pouco menos preguiçoso, achou uma à venda pouco à frente, meio acabada, mas pela qual conseguiu um bom negócio, usando de quase toda a sua mesada.
Por fim, Prático, o mais velho e de longe o mais ativo e cuidadoso, passou alguns dias procurando um terreno; quando o encontrou, comprou-o, arranjou um emprego e, ao longo dos meses seguintes, capinava os jardins dos outros de dia e construía a sua casa de noite. Por fim, quando chegaram as festas de final de ano, ele tinha a sua casa toda arrumadinha, enquanto Heitor e Cícero se refestelavam com o que ainda sobrara do dinheiro que tinham guardado.
Bem, e qual não foi a surpresa de Cícero quando, certo dia, um lobo bateu à sua porta?
– Pois não? – Cícero perguntou, abrindo a janela um tantinho assim.
Sua mãe já havia lhe contado várias vezes dos lobos espertalhões que adoravam enganar porquinhos inocentes e derrubavam as suas casas com fortes sopros. Mas, aquele lobo iria se dar mal, porque a casa dele era de alvenaria, e ele tinha se certificado disso no momento em que lá entrara.
– Sou o senhor Lobão, advolobo. Venho em nome da família dos Galosos – disse o lobo, que usava um monóculo, um chapéu e um colete. – Esta casa pertence a eles.
– Como é? – indagou Cícero. – Acho que está enganado, senhor. Esta casa é minha, moro aqui há muito tempo!
– Pode ser que seja um engano, mesmo – disse o lobo. – Mas, veja, aqui está a escritura no nome do senhor e da senhora Galoso. Rua dos Alfaiates, 120.
O lobo apontou para a placa, logo ao seu lado, que dizia “Rua dos Alfaiates”; e, na sequência, apontou a garra de sua pata direita para o número “120” na porta da casa de Cícero.
– Será que você tem uma escritura em seu nome? É possível que alguém tenha tentado lhe dar um golpe e vendido uma casa que pertence a outro.
– Er… Eu… Espera só um pouquinho, deixa eu procurar aqui…
E, fechando as cortinas, Cícero correu para a cozinha, onde deixara o celular, e mandou uma mensagem para seu irmão.
“Heitor, a coisa tá feia! Tem um advolobo aqui falando que a casa pertence a um tal de Galoso!”
“Sabia que ia dar ruim, irmão! Cola aqui e deixa a casa pra esse lobo!”.
Assim, sem falar um “A”, Cícero saiu pela porta dos fundos, deixando a sua casa para o advolobo.
Depois de uns quinze minutos esperando, o senhor Lobão decidiu bater à porta e, vendo que estava entreaberta, entrou na casa para a encontrar totalmente desocupada. Ele deu de ombros, pegou as chaves para si e, depois de trancar a porta, saiu, assobiando. Mais um dia de trabalho cumprido.
Cícero, por sua vez, achou que estava a salvo com seu irmão, e eles aproveitaram o pouco de dinheiro que ainda lhes restava para pedir uma entrega de comida de comemoração.
Qual não foi a surpresa deles quando, no dia seguinte, o mesmo advolobo, mas com um colete diferente e um chapéu combinando, bateu à sua porta.
– Bom dia, senhor! Eu sou o senhor Lobão, advolobo.
– Nem venha com mais uma das suas artimanhas, seu lobo – disse Heitor, do outro lado da sua grade de metal da janela. – Conheço seus truques. Esta casa é muito minha! Veja aqui a escritura!
O advolobo arrumou o monóculo e leu com cuidado a escritura no nome de “Heitor Porcão”.
– De fato, senhor Porcão, a casa é sua. O que significa, também, que… – e, com isso, ele puxou do bolso do seu colete um calhamaço incrível de folhas – Todas estas contas atrasadas também são do senhor!
– Oinc! – exclamou o pobre porquinho, quase desmaiando.
O lobo ajustou o monóculo.
– IPTU dos últimos dez anos… Contas de luz, água e gás atrasados… Puxa, olha só, tem até uma multa da prefeitura por ampliação indevida de espaço, sem autorização do engenheirastor! Conhece, aliás, o senhor Pollux Castor?
Cícero o abanava.
– E agora, irmão? – ele perguntou.
– Não temos escolha – ele disse. – Só um minuto! Já vou abrir! – gritou pela janela com uma voz esganiçada. E, rastejando para que o lobo não os visse, os dois foram até à cozinha, onde mandaram uma mensagem para Prático.
“Manozão, a casa caiu! Tem um advolobo cobrando contas atrasadas desta casa!”.
Prático estava, neste momento, terminando de podar as plantas do jardim de ninguém menos que Pollux Castor, mas parou para secar o rosto e responder seu irmão.
“Venham para a minha casa, me esperem lá, chego em breve”.
E assim, sem dizer um “B”, lá se foram os dois pela porta de trás.
O advolobo ainda esperou por uns vinte minutos, antes de bater e ver que a porta estava, também, destrancada, e a casa, abandonada. Ele deu de ombros.
– Bem, vou considerar a casa como pagamento das suas próprias dívidas – ele disse, pegando a escritura, trancando a porta e saindo assobiando com a chave no bolso.
Os dois irmãos ficaram seguros na casa de Prático por mais alguns dias, até que, cedo pela manhã, antes mesmo de o irmão mais velho sair para trabalhar, o senhor Lobão novamente bateu à porta, com ainda um terceiro chapéu e um terceiro colete diferentes.
– Bom dia, senhor! – ele falou. – Eu sou o senhor Lobão, advolobo.
– Ah, olá, senhor Lobão – respondeu Prático. – Entre, por favor.
O lobo piscou.
– Você… Está me convidando para entrar?
– Sim, por que não? Está frio aí fora.
O lobo lambeu os beiços e animadamente entrou na casa de Prático, que era linda: toda limpa, arrumada, bem iluminada, com quadros e móveis de qualidade.
– Bela casa, senhor Porcão – ele falou.
– Obrigado. Toma café?
– Com dois cubos de açúcar, por favor – pediu ele.
O lobo se sentou, então, em uma poltrona e olhou ao redor; havia uma capa de peles no chão, muito parecida com a capa de peles de um lobo. E, para falar a verdade, em cima da lareira parecia ter também uma cabeça de um animal muito semelhante a um lobo, empalhada. E, agora que olhava melhor, parecia que tinha um quadro ali no canto representando três porquinhos caçando um lobo…
Ele começou a suar – e olha que ele nem sabia que lobos podiam suar!
Pouco depois, Prático retornou com o seu café em um pires e se sentou com o próprio.
– Bom, senhor Lobão, a que devo sua visita?
– Eu… Ahm…
– Acredito que esteja curioso sobre a escritura desta casa, então, eu já economizei seu tempo lhe trazendo esta cópia aqui – ele falou, entregando-lhe um papel. – E aqui estão os recibos das contas de luz, água, gás, telefone e IPTU pagos.
O lobo engoliu em seco. Sua mão tremia, segurando a xícara, enquanto o quadro o encarava de um lado, e a cabeça empalhada, de outro.
– Eu só… Vim na verdade… Ver se seu imposto de renda…
– Ah, sim, claro, aqui está – respondeu Prático, com naturalidade. – Sabe, está feito à perfeição. Pedi ajuda para o meu sogro, ele é um contadurso.
O lobo arregalou os olhos; da cozinha, saiu um urso com uma gravata borboleta e óculos de meia lua, tão grande, mas tão grande, que de pé encostava a cabeça no teto.
– Sabe, o seu hobby é trabalhar com peles de animais.
– E também animais empalhados, não se esqueça, Prático – disse o urso, com sua voz grossa.
– É verdade, é verdade…
Pouco depois, entrou uma raposa, vestida com um avental todo sujo com manchas de diversos tons de vermelho.
– Ah, essa é minha esposa – ele falou, dando sua pata a ela, que o cumprimentou com uma lambida na bochecha. – Ela trabalha com…
Mas, sem dizer nem sequer um “C”, o lobo desapareceu pela porta da frente, morrendo de medo.
– Puxa! O que será que assustou ele tanto, assim, tadinho? – perguntou a raposa, que era, na verdade, uma pintosa.
Prático riu e falou para seus irmãos descerem do andar de cima.
– Pronto, Cícero, Heitor, tudo resolvido! O advolobo nunca mais vai nos incomodar!
– Mal posso acreditar, irmão! Você é demais!
– Não sou nada. Meus amigos aqui é que são!
O grande urso fez um cumprimento e pegou a cabeça de lobo e a capa de pele.
– Pena que o lobo não ficou para ouvir que eu trabalho com peles de animais e animais empalhados de mentira.
A raposa, por sua vez, tirou o quadro da parede.
– E nem ficou para me ouvir dizer também que eu trabalho com ilusão de ótica em obras de arte – disse a raposa. E, de fato, quando ela moveu o quadro em suas mãos, era o lobo que estava caçando os porquinhos. Pena que o lobo tinha visto justo do ângulo errado!
– Muito bem, pessoal! Quem está pronto para um banquete? Hoje é segunda sem carne, temos falafel e muito homus! – Oba! – gritaram seus irmãos, e todos se reuniram para comer, como uma grande família.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais