A Caneta da Realidade
Um escritor, em sua casa de praia, uma vez, sentou-se à sua mesa, um caderno novinho em folha à sua frente e uma caneta que havia acabado de ganhar para escrever. Nada além dele e a inspiração para atrapalhá-lo; estava sozinho, era de noite, a televisão estava desligada, o rádio também, apenas ele, as estrelas, a lua e o som das ondas quebrando na enseada logo à frente.
Tomou a caneta em suas mãos – fora um presente de uma velha senhora que conhecia havia tempos, dona de um antiquário/sebo, a qual lhe dera, de presente, o que uma vez supostamente pertencera a um escritor persa famoso, fosse ele qual fosse –, destampou-a, suspirou e iniciou a sua história.
Escreveu sobre um homem que, resfriado, abriu a sua geladeira, espirrou nela e, pouco depois, conforme comia sozinho na sua cozinha escura, ouviu barulhos estranhos conforme o seu refrigerador andava em suas rodinhas e espirrava por todos os lados, congelando coisas.
Depois, seguiu para um vendedor de cores, que batia de porta em porta, apresentava um quadro gigantesco com 36 milhões de cores – praticamente indistinguíveis umas das outras – entre as quais se podia escolher uma para si, a qual receberia o seu nome e a partir de então seria sua.
E terminou, por fim, com a lenda de um rio móvel, o qual, cruzando pelos desertos da Arábia, trazia a alegria e a desgraça de dezenas de povos perdidos.
Com isso, fechou o seu caderno novo, tampou a sua caneta e foi dormir, sozinho em sua cama, a televisão ligada tanto para fazê-lo companhia como para manter uma iluminação tênue.
Eram três horas da manhã quando ouviu um estrondo na cozinha, seguido de outro e, por fim, de mais um; assustado, pensando que era algum ladrão, levantou-se da cama, vestido apenas com uma regata e a sua cueca, tomou em suas mãos sua raquete de tênis e seguiu para o cômodo adjacente, vagarosamente, tentando enxergar algo na parca iluminação.
Silêncio.
E, repentinamente, outro estrondo.
Ele pulou para trás, empunhando a raquete como se fosse uma espada, e por muito pouco não berrou; criando coragem, adentrou um pouco mais na sala de comidas e acendeu a luz.
No meio do piso, sua geladeira parada, a porta fechada, e algumas partes dos móveis congeladas. O que era aquilo?
Do nada, o eletrodoméstico se moveu e, abrindo violentamente a porta, proferiu um Atchô!, que congelou tudo à sua frente – no caso, a pia.
O que diabos era aquilo? Ele tinha de estar sonhando. Era nisso que dava ficar escrevendo besteiras até tarde…
Decidido, voltou para o seu quarto e se revirou por mais uns minutos na cama até dormir novamente.
Acordou pela manhã com alguém batendo à sua porta; ainda vestindo o seu pijama, abriu-a com o rosto amassado de quem dormira pesadamente. Um homem gorducho, de paletó marrom e chapéu verde, prontamente lhe estendeu uma tapeçaria interminável com milhões de quadradinhos, cada qual com sua cor, muitos com nomes já escritos em baixo, outros com os dizeres “Disponível”.
– Gostaríamos de lhe apresentar a maior inovação da atualidade – anunciou. –: as cores. Hoje em dia existem mais de 36 milhões de cores, e, entre elas, existem pelo menos 27 milhões que não possuem nome. Ainda. Porque você pode ser o feliz proprietário de uma cor, que não só vai ter o seu nome como, toda vez que alguém a utilizar, vai ter de pagar direitos autorais a ninguém menos, ninguém mais do que você!
– Mas o que é que eu iria fazer com uma cor? – perguntou o escritor, achando aquilo uma coincidência estranha demais.
– Ora, dezenas de coisas. Imagine se um dia você quer pintar a sua casa e diz… Vou pintar de azul Eduardo! Ou então de Vermelho Joana! Ou um pintor faz uma tela com um roxo violento e um verde limão e diz: a odisseia de Homero e Perséfone!
– Pelo amor de Deus…
Atchô!
Ouvindo aquilo, ambos correram para a cozinha, por onde o refrigerador deslizava, congelando tudo à sua volta.
– Ora, nós temos esta cor de gelo, sim, foi bastante popular entre os esquimós, mas como era difícil ver uma coloração deste exato tom no pólo norte, eles sempre preferiram outros tons, mas como este parece ser bastante comum aqui nesta cidade, creio que não seria de todo mal…
– Vai pro lado! – berrou, mas não adiantou; a geladeira espirrou e congelou o vendedor.
Do lado de fora, o furor das ondas havia aumentado. Mas…
De dois lados!
O homem foi para a sua varanda que dava para o litoral; as ondas estavam normais, como de costume. Em seguida, correu para a varanda oposta, de onde vinha o outro som.
Um enorme rio havia se manifestado no meio da cidade e avançava cada vez mais rápido em direção a ele, inundando tudo ao seu redor.
– Ai, meu Deus! – exclamou.
Atchô!
Sem hesitar, correu para a cozinha, pegou o seu vidro extra-grande de pimenta do reino, arrastou a geladeira como pôde até a varanda e, encarando o rio, que vinha com fúria total contra ele, respirou fundo e prendeu a respiração.
Abriu a porta do eletrodoméstico, destampou o pote e arremessou todo o seu conteúdo lá dentro, antes de fechar.
Ouviu-se um: A… A… A… TCHÔÔÔÔÔÔÔÔ!
O rio se congelou em frente a ele, graças à geladeira espirrante, a qual ainda continuou por mais duas horas espirrando contra tudo que tinha direito, terminando a cidade praieira em uma era glacial. O importante, porém, era que ele estava salvo.
Agora, só lhe faltava cuidar de uma coisa…
Correu para o quarto e tomou a caneta que pertencera a um escritor persa em suas mãos. Que tipo de coisa era aquela, que tornava real tudo imaginário?
As leis do bom-senso indicavam para que ele quebrasse a caneta, tocasse fogo nela e nunca mais pensasse nisso, uma vez que um objeto daqueles era perigoso.
Por outro lado, a sua alma de escritor lhe dizia que aquilo era tudo que um autor poderia sonhar… Um objeto que tornava as suas palavras reais…
Pegou a sua caixa dourada, na qual ela viera guardada, e com reverência a depositou em seu interior aveludado e rubro; iria guardá-la para outra ocasião.
Sua mente se retorcia nas infinitas possibilidades que sua imaginação conseguia criar. E era tudo uma questão de pôr em palavras…
O homem realmente começou a rir malignamente, mas não conseguiu ir muito longe, pois logo a geladeira estava à sua frente, espirrando como louca.
E lá permaneceu o escritor, congelado em uma pedra de gelo, sabe-se lá por quanto tempo…
Nota do autor, setembro de 2021: esta história é muito legal; é basicamente o sonho de todo escritor. Eu tive esta ideia, porque queria fazer algo sobre um rio mágico que surgia em uma cidade periodicamente, flutuando pelos céus para nutri-la, mas faltou inspiração para ir mais longe do que isso. A solução: criar três pequeninas histórias, um pouco de metalinguagem, e voilà!
Esta história ganhou o Prêmio Ben Gurion, do Clube Hebraica, e também foi publicada na coleção Contos de Fadas Urbanos, da Editora Evoluir, com um projeto muito legal em que foi grafitada nos muros da praia de São Conrado, no Rio de Janeiro, em 2015.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais