A Crise dos Dragões
A situação dos dragões havia se tornado simplesmente insustentável. Por todos os lugares, eles estavam revoltados e fazendo piquetes; em Asgard, a coisa não poderia estar pior. Odin havia mandado Loki para negociar, o que certamente não fora uma boa ideia, e depois Thor, o que também não foi lá uma das melhores (ele sempre achara que os dragões eram seres inferiores), e agora a greve de dragões logo em frente ao seu castelo não estava fazendo nenhum bem para a sua sanidade mental.
As reclamações não paravam.
“O corpo de bombeiros, que agora tem em tudo que é canto, apaga o nosso fogo antes mesmo de conseguirmos incendiar uma casa!”
“Sem mencionar que as casas de alvenaria são muito mais difíceis de queimar”.
“Ah, que saudade da época em que as casas eram feitas de madeira, com telhados de palha…”
Afinal, para que serviam dragões na sociedade moderna? Os humanos não guardavam mais ouro ou joias preciosas; eles preferiam coisas virtuais, como números em telas de computadores. Os poucos lugares que ainda acumulavam barras de ouro eram simplesmente impenetráveis; as armas dos humanos eram tão fortes, que poderiam explodir um dragão em pleno voo. Seus aviões voavam mais rápido que qualquer dragão, e até um helicóptero poderia colocar um dragão destreinado no chinelo.
“Nós deixamos de ser seres aterrorizantes para sermos bichinhos de estimação!”
“Tem livros! Tem até filmes! Como educar seu dragão ou qualquer coisa que o valha!”
“O que houve com a época em que todos tinham medo de nós?”
Houve até um que trouxe um brinquedo para mostrar.
“Vejam isso!”
Era um dragão de pelúcia. E, se você puxasse uma cordinha atrás de suas asas, elas batiam e ele soltava o que talvez um dia se parecesse com um gato rouco com a boca cheia de ração tossindo, mas deveria ser um dragão rugindo.
O objeto foi dilacerado em praça pública e queimado pela boca de 75 dragões diferentes.
E, geralmente, as discussões terminavam com:
“O último grande mau foi Smaug”.
O que gerava uma aceitação geral. Até que alguém virasse e lembrasse que ele também aparecera em livros e filmes e fora vencido por um bando de anõezinhos, ou hobbits, ou coisa que o valha. E uma nova onda de revolta surgia.
O problema com o qual se deparava Odin, naquele momento, era o que fazer com estes seres que se encontravam desocupados. Ele já tinha um exército de dragões e não precisava de mais – ainda mais porque teria o suficiente para uns dez exércitos ali. Em que ele poderia empregar os dragões? Tudo o que eles sabiam fazer era juntar ouro, tocar fogo e destruir coisas.
Odin suspirou. Precisava pensar em uma forma de organizar esses dragões em uma empreitada organizada. Alguma coisa bem azeitada… Mas não tanto, porque azeite pegava fogo.
Enquanto outros deuses menos relevantes foram incumbidos de manter a turba draconiana em seus devidos ânimos (contidos o suficiente para não destruir Asgard, mas não o suficiente para não atacarem a si mesmos, o que, no fim das contas, resolveria os problemas de Odin), ele decidiu pesquisar na sua biblioteca e lá, na seção de administração pessoal (que, na verdade, era a seção de autoajuda, mas ele pedira para mudar o título, porque não aguentava mais a zoação que tinha de ouvir toda reunião semanal), encontrou um livro que talvez lhe ajudasse: “O deus e o executivo”.
Como todo livro de autoajuda, não falava nada que ele já não soubesse (especialmente considerando que Odin era um deus, então, tecnicamente, provavelmente não havia nada que ele realmente não soubesse), mas tinha uma seção bastante curiosa que dizia algo como “Pegar a melhor qualidade de cada um deles e converter em uma máquina potencializadora bem azeitada”.
Fora o bem azeitada que chamara sua atenção. Interessante como aquele autor sabia escolher bem as palavras.
Levou mais dez volumes daquele mesmo autor para o seu quarto, para colocar do lado do criado mudo em uma pilha “para ler depois” (na sua pilha de “para ler depois”, havia livros de mais de 2500 anos, dos quais ele sequer folheara o índice; a bibliotecária tinha uma ordem de que, a cada 3000 anos, mais ou menos, ela deveria limpar a sua cabeceira. Da última vez que fizera isso, retirara 2.347.221,3 volumes (um deles Odin havia rasgado em três partes em um ataque de fúria, e só uma parte dessas restara), e desde então ela decidira que a limpeza deveria ser semanal, mas sempre ficaria um volume de mais de 1500 anos para criar uma boa impressão e manter as teias de aranha). Em seguida, chamou um de seus assessores para uma reunião com os revoltosos.
Na sala de reunião, estavam ele, o seu assessor, e o representante dos dragões.
– Então, deixa eu ver se eu entendi. Você vai transformar nós, seres aterrorizantes, de mais de vinte metros de envergadura, em seres pequenos assim, menores que humanos, invisíveis, cuja missão de vida vai ser importuná-los?
– Exatamente.
– Mas com metas.
– E prêmios! Não se esqueça dos prêmios!
– E como exatamente nós vamos importuná-los?
– Pequenas perturbações do dia a dia. Basta comer essa areia do sono aqui, para vocês soprarem um hálito sonífero o dia inteiro. E, quando eles finalmente chegarem às suas casas e forem se deitar para dormir, é só tomar este café e ficar soprando, para eles ficarem acordados a noite inteira!
– Só isso? – o dragão perguntou, nem um pouco impressionado.
– Bem… – respondeu Odin. Tinha achado sua ideia tão genial! Por que ele não gostara? Olhou ao redor, pensando o que mais poderia azucrinar os humanos. – Rede elétrica!
– O quê?
– Quedas ocasionais de energia. Eles ficam muito bravos quando isso acontece. Ou então, na hora em que eles forem pegar o elevador, fazer ele subir! Ah, eles odeiam isso! Ou melhor, melhor ainda! Derrubar o Wi-Fi! Eles ficam doidos! Perder o sinal da TV por satélite no meio da final do campeonato por causa de “Manchas Solares!” – disse Odin, fazendo as aspas com os dedos e falando com tanto prazer, como se ele mesmo já tivesse pregado estas peças dezenas de vezes. – Cara, estou pegando fogo!
– Está mesmo, senhor! – bajulou o assessor. Era para isso que ele era pago.
– Estou numa sequência interminável de azucrinação! Puxa, é tanta diversão que eu gostaria de ser um dragão só para poder estar lá… Já sei! Spoilers!
– Spoilers?
– Isso! Contar o final dos filmes “acidentalmente”. Ou então… Das séries! Ah, isso é hilário!!!
Odin estava tão otimista com a sua ideia, que o dragão acabou ficando contagiado também.
– A empresa vai se chamar “DRA CO”. Pegou? Dra de dragão, e Co de companhia! Eu sou demais!
E, com uma autocongratulação e cumprimentos espalhafatosos, Odin considerou a reunião encerrada e foi beber com seu assessor.
No início os dragões não foram muito favoráveis a esta ideia, mas, como eles não tiveram escolha, logo havia uma sede mundial da DRA CO em Nova York, onde todos eles tinham de bater cartão (exceto quando estavam nas filiais). E em pouco tempo perceberam como era divertido fazer o elevador de prédios como o Empire State subir bem na hora que alguém tinha de ir para o último andar e estava atrasado para a reunião.
Isso sem mencionar que Odin era um cara que sabia dar prêmios. O funcionário do mês ganhava uma viagem toda paga para alguma ilha remota no meio do Pacífico, onde podia aterrorizar uma tribo primitiva por quanto quisesse e depois dizimá-la com fogo, quando estivesse satisfeito.
Logo, as tribos primitivas acabaram, mas Odin já tinha uma carta na manga.
– Realidade virtual!
O dragão que ganhava o prêmio recebia óculos de realidade virtual para poder dizimar a sua própria tribo primitiva e ficava lá, no conforto da sua caverna, criando povos e destruindo ainda mais povos até não querer mais.
Lógico, alguns dragões mais conservadores diziam que era um absurdo, que a graça era destruir gente de verdade, mas, quer saber? No final, dava no mesmo. E gastava menos energia. Não demorou muito para serem convencidos também.
Quando a tecnologia caiu nas mãos do mercado negro e começaram a vender estes óculos, tudo o que os dragões passaram a fazer no seu tempo livre era jogar aquele jogo. Alguns até mesmo na hora de trabalho!
Não que Odin estivesse preocupado que eles cumprissem suas metas – os dragões só deveriam ficar ocupados, fosse com o que fosse.
Futuramente, haveria uma nova crise dos dragões, mas eles não seriam nem um pouco tão imponentes como haviam sido até então – pequenos, invisíveis para todos os seres que não os deuses, e extremamente obesos.
Por isso, talvez seja melhor você guardar na sua memória apenas aqueles dragões clássicos, cuspidores de fogo e aterrorizantes. E talvez até mesmo aqueles que você pode treinar ou ter de estimação.
Mas, se quiser uma dica, não lhes dê um videogame.
Nota do autor, outubro de 2021: também me lembro bem de quando tive esta ideia. Estava subindo a rua, caminhando para o hospital onde fazia residência de ortopedia, morrendo de sono, como de costume (na época, não bastava trabalhar na residência e em outros hospitais fora da residência, eu ainda tinha um bebê em casa que acordava boa parte da noite), quando juntei sono com dragões e voilà: dragões soprando sono em mim. E o fato de eles terem perdido boa parte de sua dignidade. E, aí, foi.
Por sinal, vocês podem perceber que houve uma grande lapso de tempo entre minhas últimas crônicas; eu realmente fiquei um bom tempo sem conseguir escrever nada, por causa do trabalho, mas, ao mesmo tempo, também trabalhei em livros. Especialmente, entre 2016 e 2021, trabalhei em “Albert Nerd em: Como falar com uma garota”, “Albert Nerd em: O outro Nerd”, “Mundos Paralelos: Erenoth Tse (O Caminho para Outro Mundo)”, que é o volume 5 da coleção, “Apenas Adão”, “Legumiques e Verduriques”, “SOS Ortopedia”, “SOS Residência em Ortopedia Pediátrica” e “A Fórmula da Genialidade”.
Pensando bem, estava pensando que tinha sido meio ocioso do ponto de vista literário, mas, agora que listei tudo, até que não foi mal!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais
Queli Rodrigues
20 de setembro de 2024 @ 16:42
Kkkkkk… to rindo ainda. Que texto interessante. Acho quem somos todos dragões…. só acho…. inclusive tenho, neste exato momento, um dragão adolescente com um óculos de realidade virtual, gritando no quarto dele….
David Gonçalves Nordon
20 de setembro de 2024 @ 16:57
Esses são os “piores”! Rsrsrsrsrs