A Fada dos Dentes
Todas as crianças estavam em volta da lareira, assando marshmellows. Era a hora de contar uma história de terror.
– Quem me contou essa história foi um amigo de um amigo meu… – começou Marcelo, que tentou morder seu marshmellow, mas queimou a boca, pois estava muito quente. – Era uma vez um menino, muito parecido com qualquer um de nós…
Ele havia acabado de perder o seu primeiro dente de leite e, cuidadosamente, colocara-o sob o travesseiro, esperando aquele momento mágico em que a Fada dos Dentes viria, para substituir o dente por uma moeda. Ele nunca tinha visto isso acontecer, mas todos os seus amigos já tinham lhe contado que isso acontecia; aliás, ele se sentia chateado, bem chateado, por ter sido o último da classe a começar a perder os dentes. Bem, aquele seria seu momento de redenção!
No meio da madrugada, a casa estava silenciosa, exceto por alguns pios de coruja do lado de fora e o bom e velho estalar das madeiras dos móveis. Subitamente, um brilho no quarto! Era a fada, que não parecia nada além de uma libélula com formas humanescas, brilhando no escuro e soltando puns de purpurina, ou assim lhe parecia. Ela se aproximou da sua cama e pousou; ele já tinha deixado o dente bem no cantinho do travesseiro, para facilitar o serviço.
Ela ergueu um pouco a ponta do travesseiro, que era gigantesco para ela, mas, aparentemente, a criatura era muito mais forte do que se imaginaria, pegou o dente, que era basicamente do tamanho da sua cabeça, e o colocou em uma bolsa a tiracolo, fazendo um volume gigantesco. Enfiou a mão em um bolso de seu vestido e dele tirou uma pequena moeda que, com um estalo, cresceu e ficou do tamanho de uma moeda comum, porém, de ouro.
O menino assistiu a tudo isso apenas com os olhos semicerrados. E, no momento em que a fada estava pronta para partir… Zap! Com um salto, ele a prendeu em um copo de requeijão (limpo, claro, ou ela ficaria grudada), que depositou com a tampa fechada, de ponta-cabeça, sobre o criado-mudo. A fada tentou levantar voo e quase derrubou o copo, mas ele o prendeu com um livro por cima.
– Mas o quê…? – ela gritou, indignada, com sua voz estridente.
– Muito bem, dona fada, vamos conversar – ele falou, sentando-se e esfregando as mãos.
Ele acendeu as luzes, e a fada gritou; não estava acostumado àquilo, ela só trabalhava à noite, coletando os dentes.
– Quero que você me leve para o seu chefe.
– Como que é? – ela perguntou.
– Eu tenho certeza de que você tem um chefe. Temos bilhões de crianças no mundo e, sem dúvidas, muitas e muitas perdem os dentes ao mesmo tempo. Ou seja: temos mais de uma fada dos dentes, até porque seria impossível estar no mundo todo ao mesmo tempo, do mesmo jeito que temos mais de um papai Noel. Agora, quem controla todas elas? Com certeza tem um chefe, não é? – ele questionou, apoiando-se nos joelhos e a encarando, como um gato encara um peixe no aquário, porém com um sorriso banguela.
– E-eu não tenho um chefe – ela falou. – Eu trabalho por conta própria.
– Ah, é? Bem, então, tudo bem. Vou deixar você por aí. Quanto tempo você aguenta sem ar? – ele questionou, observando as unhas, fingindo um desinteresse total.
– Tá bom, tá bom, eu levo você – ela disse.
– Sem gracinhas. O meu dente tem um localizador. Se você não me levar, eu mesmo acho e dou um fim em todas vocês.
A fadinha engoliu em seco; mas que menino malvado! Tinha de avisar o papai Noel: só carvão naquele ano.
Assim, ele soltou a fadinha, que voou sobre ele, soltando seus puns de purpurina e, quando percebeu, ele estava do tamanho dela, voando com asas próprias, e ela falou: “Venha!”.
Ele teve um pouco de dificuldade para se acertar com as asas, mas logo estava voando junto dela. Eles foram pelo jardim e, localizando-se com facilidade no escuro, ela entrou em um cogumelo, que os levou por um escorregador para o fundo da terra. Lá, eles foram levados por túneis e mais túneis escorregadios e brilhantes, até chegarem a um salão gigantesco (ao menos, para fadas), provavelmente no meio da terra de uma floresta.
O menino arregalou os olhos, impressionado. O salão tinha um galpão gigantesco, iluminado pela luz da lua por um buraco no teto, e estava escrito em letras garrafais: “Fada dos Dentes S.A.”. A fada o levou pela porta principal, por onde uma fila de fadas também entrava. A porta principal os levava para um salão, onde dois esquilos, que pareciam gigantescos, agora que o menino tinha o tamanho de uma fada, recebiam os dentes. A sua fada entregou o seu para o esquilo à direita, que cheirou, cheirou, deu uma pequena mordida, deu-se por satisfeito e o colocou em uma esteira ao seu lado.
Ela deu um passo à frente, e o esquilo estendeu a mão para bloquear o menino.
– Estagiário, está aprendendo, não trouxe nada, hoje – disse ela, e o esquilo concordou, deixando o menino passar.
Do outro lado, ele observou que, às vezes, o esquilo não gostava do dente que havia testado e o jogava em uma pilha de descarte.
– O que está acontecendo aqui? – ele perguntou.
– Os esquilos escolhem os melhores dentes. Eles conhecem os dentes de todas as crianças do mundo e sabem quais são os bons e os ruins. Os ideais são os primeiros dentes que elas perdem, em especial o primeiro, como o seu. São os mais valiosos.
– Por quê?
– Você vai ver – ela disse com uma expressão macabra no rosto.
Eles seguiram por andares e mais andares, onde fadas organizavam os dentes em esteiras, fadas de jaleco trabalhavam com tubos de ensaio, fadas de terno e gravata faziam apresentações em pequenos projetores e algumas até mesmo paravam para tomar café, ou talvez o néctar de alguma planta, em minúsculas xícaras.
Finalmente, eles chegaram a uma sala, à porta da qual a fada bateu.
– Entre – falou alguém do lado de dentro.
Ela abriu; o menino ficou surpreso: diante dele, havia uma sala como um escritório normal, porém com móveis minúsculos. A fada ali sentada estava fumando um cigarro minúsculo e, com óculos meia-lua, lia relatórios e mais relatórios. Atrás dela, um quadro mostrava gráficos de retas subindo e descendo.
– O que está acontecendo? Quem é esse menino?
– Mais um curioso – a fada comentou.
– Ah, sim… Mais um curioso… Você sabe o que fazemos com curiosos, garoto? Sabe?
Ele engoliu em seco; talvez, não tivesse sido uma boa ideia. Por que ele simplesmente não tinha ficado em casa, esperando sua moeda, como toda boa criança?
– Não sei – ele disse, finalmente, e sentiu que poderia fazer xixi na calça, enquanto encarava a fada soltando uma fumaça fedida de fosse lá o que fosse que fumava.
– Um tour pela empresa! – exclamou a fada, abrindo os braços e sorrindo.
E, assim, eles saíram caminhando pela empresa, com a fada-chefe mostrando tudo.
– Aqui, é o departamento de seleção dos dentes… Aqui, nossas fadas-cientistas extraem o DNA… E, aqui, nossas escriturárias batem com o nosso banco de dados para ver se temos ou não este DNA e qual a sua condição… E, aqui, finalmente…
Ela apertou um botão e ficou parada, esfregando as mãos de excitação.
Estavam diante de uma parede toda de metal; em poucos instantes, uma porta surgida do nada se abriu, uma metade para a esquerda, outra pela direita; um vento frio passou pelos seus pés, conforme eles entraram, o menino tremendo, pois estava apenas de pijama e aquelas asas não esquentavam absolutamente nada.
Havia poucas luzes no lugar onde entraram, apenas em intervalos distantes entre si, parecendo aquelas luzes de emergência; pelas paredes, tanques e mais tanques, com uma iluminação esverdeada esquisita. E, quando o menino olhou… Dentro de cada tanque…
Crianças!
– Sim! Estamos copiando o mundo! – exclamou a fada-chefe, erguendo as mãos, mostrando tudo ao seu redor. – Depois de coletar o DNA, levamos algumas semanas para ter um corpo. E este corpo cresce dez vezes mais rápido que um humano comum, o que significa que, em menos de um ano, já temos uma criança basicamente do mesmo tamanho que a sua cópia da Terra! E, quando cai o seu último dente, sabe o que fazemos? – ela perguntou, puxando-o para perto pela gola do pijama, tão perto que dava para sentir as gotículas de saliva voando em seu rosto.
– Vocês pegam o último dente e nunca mais veem a criança novamente?
– Isso também – ela falou. – Mas, não! Nós trocamos a criança pelo nosso clone! E, assim, em pouco tempo, dominaremos o mundo! Nada mais de humanos! A Terra será inteiramente dominada por fadas! – ela falou, largando o menino e girando ao redor de si mesma, para contemplar a maravilha do que estava fazendo.
A fada-chefe deu uma risada maligna, que ficou ainda mais assustadora com as luzes verdes com os tanques cheios de crianças em crescimento.
– Ahm… Legal…
– Agora, me diga, garoto, por que você veio aqui?
A proposta que ele tinha a fazer à fada-chefe era um negócio muito, muito mais simples; depois disso tudo, ele ficou até sem jeito.
– Eu… Eu tinha pensado em oferecer meus serviços para ajudar a coletar os dentes e… Não sei… Receber algo em troca?
A fada-chefe riu, e a outra se juntou a ela.
– Seus serviços? Seus? Olhe em volta, garoto! Parece que eu preciso de ajuda? Tenho um exército de fadas! Logo, terei um exército de humanos! Uma boa quantidade de crianças já foi substituída e, logo, logo, o mundo inteiro será substituído por nós!
– Eu… Não. Quero meu dente de volta. Olha, aqui está a moeda – disse o garoto, puxando a moeda do bolso.
A fada-chefe bufou.
– Ah, mais um…
Ela simplesmente estalou os dedos, e uma fada com um terninho apareceu ao seu lado. Era uma fada-advogada.
– Sinto muito, menino, mas todos os seus atos foram aqueles de um acordo entre as duas partes. Seu dente por uma moeda, sem troca ou devolução.
– Mas… E o direito do consumidor? Eu não posso devolver o produto?
– Mas, garoto, você vendeu o produto – retrucou a advogada. Ela era boa!
– Não, eu quero dizer, não posso me arrepender da venda?
A fada-chefe suspirou e pegou um mini telefone.
– O dente do moleque 3.192.755 já chegou aí? Já? Já extraíram? Ótimo, mande ele aqui de volta, temos uma reclamação no departamento de negociação.
Pouco depois, apareceu uma fada vestida com um macacão, trazendo o dente em suas mãos.
– Aqui está, moleque – falou a fada-chefe.
– Mas, e este furinho?
– Sinto muito, não podemos fazer nada, você deveria ter desistido mais cedo. Agora… chega de tour. Adeus, moleque!
Ela estalou os dedos, e dois esquilos ferozes entraram no grande salão repleto de tanques com os corpos das crianças…
– O que aconteceu? O que aconteceu? – perguntaram as outras crianças, em volta da lareira.
O garoto comeu o seu marshmellow; estava frio, agora, com as pontinhas chamuscadas. Como era difícil acertar o ponto!
– O garoto acordou em sua cama…Com o dente debaixo do travesseiro.
– Só isso? Ah, que sem graça! – exclamou outro menino, enquanto assava o seu marshmellow.
– Não, meu amigo, não… Você não entendeu… Agora ele está esperando… E esperando… Até chegar o dia em que ele será substituído por um clone.
Todos falaram “Oh!”.
– E eu pergunto a vocês, meus amigos… Seu último dente já caiu? Será que você é você mesmo… Ou é um clone de fada?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais