A lavadora voadora
Quelvim (é, é assim mesmo que se escreve) era um garoto simples, que morava em uma favela bem próxima de onde você mora. De seu pai, ele não sabia muita coisa, até porque, na verdade, nunca o conhecera. Sua família era muito pobre, e ele morava em uma casa de apenas um cômodo com seus outros três meio-irmãos e a sua mãe.
Certo dia, um homem de terno bateu palmas no seu portão, e ele, como era o mais velho, saiu para atender.
– Estou procurando um garoto chamado Quelvim – ele disse.
– Por quê? – ele perguntou. Desde pequeno, havia aprendido a duras penas que era importante ser desconfiado.
– Eu sou Gustavo. Sou um advogado.
– Eu não tenho nada que ver com um adevogado – ele disse, mas sua esperteza falhou, pois, com esta frase, o homem soube que ele era o garoto por quem procurava.
– Quelvim, eu tenho boas e más notícias. Sabe o seu pai, Marcelo?
O garoto assentiu com a cabeça.
– Morreu.
Ele não sabia se ficava triste ou não com isso; afinal, nunca o havia visto!
– Não quer saber de quê?
Ele deu de ombros. Não faria diferença.
– Bom, enfim, no seu testamento, o seu pai especificou aqui que deixaria o que tinha de mais precioso para o seu filho mais velho, Quelvim. E eu vim lhe entregar.
O garoto sorriu; não sabia o que era, mas, se era a coisa mais preciosa que tinha, deveria ser algo realmente bom. E valioso. Poderia trocar por comida, já que sua família era tão pobre e não via carne já fazia cinco meses.
– Está em um depósito, neste endereço aqui – ele disse, entregando-lhe um papel. – É só ir buscar.
– E onde fica isso, seu adevogado?
– Do outro lado da cidade.
O homem se despediu e seguiu adiante pela ladeira, pois ainda tinha muitas outras casas para visitar.
Assim, sem nada para fazer em casa, pois não havia nem o que comer, nem louça para lavar, já que não tinha como sujar nada, Quelvim pegou o seu boné, deixou o segundo irmão mais velho cuidando do resto, e seguiu na sua jornada para o outro lado da cidade.
O garoto, porém, não tinha dinheiro nenhum e, no meio do caminho, tentou pedir carona – mas ninguém lhe deu. Subiu no ônibus, pedindo para que o deixassem ir de graça, nem que fosse pendurado de fora, mas não deixaram.
Por fim, sem opção, ele foi caminhando. Até pensou em subir na traseira de um caminhão, quando parasse no farol, mas lembrou que sua mãe tinha falado que era muito perigoso e que ele nunca deveria fazer isso. Especialmente porque, se o caminhão pegasse a via expressa, ele poderia cair no meio do asfalto e… Bom, melhor nem pensar.
Assim, ele caminhou por boa parte do trajeto, até encontrar vários garotos no farol, jogando bolas. E ele percebeu que, depois de fazer alguns malabarismos, eles iam para os carros e recebiam algumas moedas ou notas em troca.
Quelvim decidiu fazer uma proposta.
– Eu te dou o meu boné, se você me emprestar estas bolas por meia hora e me deixar fazer malabares aqui.
O garoto olhou para o boné, pensou um pouco, e aceitou. Estava precisando mesmo de um boné, e meia hora não o atrapalharia em nada.
O nosso herói achava que era bom em fazer aquele jogo com as bolas, mas a verdade é que ele era péssimo. Assim, tentou jogá-las para cima, girar, fazer graça, mas tudo o que conseguia era se atrapalhar inteiro e derrubar todas no chão.
Foi exatamente isto o que fez, quando um carro daqueles importados, bem chiques, parou diante dele, e uma moça abaixou o vidro escurecido e o chamou.
– Meu garoto, você não é daqui, não é? – ela perguntou.
– Não – ele falou.
– Bem que eu percebi. Você nunca fez isso na vida, não é?
– Não – ele disse, com sinceridade.
– Então, por que você está fazendo isso?
– É que meu pai morreu e me deixou a sua coisa mais valiosa para eu ir buscar, mas eu não sei o que é, só sei que fica do outro lado da cidade, e eu não tenho dinheiro para chegar. Daí, eu troquei o meu boné pra poder jogar as bolas por 30 minutos.
A moça até abaixou os óculos escuros, para poder encarar melhor o menino; aquela havia sido a história mais estranha que já ouvira em toda a sua vida.
O farol abriu.
– Rápido, garoto, entra aí do lado – ela falou, apontando para o banco do passageiro, e Quelvim, sem acreditar, jogou as bolinhas para o amigo e correu para a porta. – Agora, me conte direitinho o que é que está acontecendo, e eu vou ajudá-lo.
Ele contou novamente, em detalhes, tudo da sua vida, ou, pelo menos, de tudo o que se lembrava, e a mulher chegou até mesmo a chorar um pouquinho. Ela pegou o papel com o endereço e, colocando-o no GPS, levou o garoto através da cidade até o local. Ou, pelo menos, bem perto dele.
– Aqui é a entrada da favela onde está o depósito com as coisas do seu pai. Eu não posso ir mais longe do que isso, porque as ruas são muito estreitas e não dá para o meu carro passar. Mas não é muito longe e você consegue chegar andando. É só seguir reto. Boa sorte, meu garoto.
Assim, ela o deixou na rua, com uma sacola de roupas que sempre carregava consigo, caso algum de seus filhos precisasse se trocar, e foi embora.
Mas… No momento em que o carro se afastou, uns garotos mais velhos, com ares ameaçadores, aproximaram-se de Quelvim.
– Ei, moleque! O que tá levando aí na sacola?
– Nada, só umas roupa que a dona me deu.
– Ele deve de ser um playboy fantasiado de pobre, que tá fazendo algum trabalho social ou coisa parecida! – disse outro.
– Não, eu sou pobre, mesmo, vim do outro lado da cidade pra buscar o…
Os outros, porém, não ouviram; um o segurou, enquanto outro procurou por algo de valor em seus bolsos, e, quando terminaram, saíram correndo, levando não só a sua sacola, como até mesmo os tênis que ele havia ganhado de natal, três anos antes.
Com as mãos nos bolsos e descalço, Quelvim suspirou e foi caminhando pela rua. O que será que seu pai tinha deixado para ele? Esperava que fosse algo de valor, ou que, ao menos, pudesse levá-lo de volta para casa, já que, sem tênis, ele nunca conseguiria caminhar toda aquela distância. E não poderia contar com a sorte de novo; nunca iria aparecer outra pessoa bondosa como aquela dona.
Quando afinal encontrou o depósito, bateu à porta, e um homem a abriu, perguntando quem era.
– Eu sou Quelvim e vim buscar o que meu pai me deixou no seu testamento.
– Você tem algum documento para provar quem você é, Quelvim?
Ele remexeu os bolsos, mas em vão; mesmo que tivesse se lembrado de trazê-los – o que não tinha lembrado, mesmo –, aqueles ladrões os teriam levado. Desta forma, não tinha jeito.
– Não, seu moço, eu não trouxe nada!
– Então, como eu vou saber que você é você mesmo?
Ele balançou a cabeça.
– Por favor, seu moço, me ajuda! Meu pai deixou alguma coisa pra mim, eu não sei o que é, e eu cruzei a cidade toda pra consegui buscar.
O homem suspirou.
– Espere um pouquinho…
Pouco depois, ele retornou com um pequeno álbum de fotos e começou a folheá-lo; quando chegou a uma delas, Quelvim começou a gritar:
– É a minha mãe, é a minha mãe!
Ela estava segurando, toda orgulhosa, um pequeno bebê pelado com cara de joelho, ao lado de seu pai. Deviam estar ambos no hospital.
– “Eu, Marileide e Quelvim na maternidade” – o velho homem leu. – É, mas como vou saber que você é realmente este bebê?
Ele olhou para a foto e para o garoto repetidamente; aquela cara de joelho não ajudava em nada, mas algo dentro dele dizia que tudo o que o garoto dizia era verdade.
– Ó, tá vendo esta pinta bem aqui? – o menino disse, mostrando uma marca na bunda do bebê. – Veja só!
Ele abaixou sua calça o suficiente para mostrar uma marca exatamente igual na sua nádega direita, preta, verruguenta e cheia de pelos.
– Tá bom, não precisa mostrar mais, eu acredito! – exclamou o homem, morrendo de nojo. – Vamos ver o que seu pai deixou para você, Quelvim.
Os dois entraram no depósito, que era um galpão gigante, com estantes que chegavam ao teto, cheias de coisas. E, no meio de uma delas, havia uma placa com o nome de uma pessoa e dezenas de objetos.
– Aqui está – o homem falou, apontando para algo coberto com um pano branco cheio de pó. – Assine aqui.
Quelvim não escrevia, mas rabiscou qualquer coisa no formulário e, conforme o homem foi embora, olhou para o que era o bem mais precioso do seu pai.
Sua mente fervilhava: seria um baú cheio de dinheiro? Uma televisão com videogame? Uma bicicleta?
Mas, quando removeu o pano, tudo o que encontrou foi uma…
– Máquina de lavar?
Devia ser um engano. O que tinha de especial em uma máquina de lavar? E o pior, como que ele faria para levar a máquina de volta para a sua casa?
Desanimado, sentou-se sobre ela (ela era grande o suficiente para lavar uns cinco cobertores bem grandões) e suspirou. Não devia nem ter vindo. Se não tivesse ficado empolgado com uma coisa que não sabia se daria certo desde o começo, não teria passado por nada disso. Estaria em sua casa, tranquilamente, fazendo… Sei lá, fazendo alguma coisa, mas não estaria lá, perdido do outro lado da cidade, sem o seu tênis, sem o seu boné e sem nada no bolso para retornar.
Iria pedir para o homem, que já tinha sido tão bonzinho até então, se não lhe daria algum trocado para voltar. Antes, contudo, achou por bem testar a máquina – afinal, se ainda funcionasse, talvez conseguisse vender para alguém.
E, na hora que girou seu botão, a máquina fez um estrondo, começou a tremer e… Pam! Levantou voo, destruindo o telhado do depósito e subindo cada vez mais para o céu.
Quelvim inicialmente ficou aterrorizado, mas depois ficou impressionado: era uma lavadora voadora! Estava vendo a cidade inteira do seu alto, como se fosse uma nuvem ou um pássaro! Mal podia acreditar.
– Será que eu consigo controlar ela?
Ele mexeu nos botões e, rapidamente, descobriu como controlar a máquina, fazendo-a subir, descer e virar para os lados. Em pouco tempo, cruzou toda a cidade e chegou até a sua casa, onde aterrissou suavemente.
Lá, ele mostrou para sua mãe e seus irmãos o que havia ganhado de seu pai. E, como era muito esperto, resolveu usar aquilo para ganhar dinheiro – montou uma lavanderia de entrega a jato, que lavava as roupas sujas voando! E, ao mesmo tempo em que lavava as roupas de um cliente, ele também transportava outro para algum lugar da cidade, cortando todo o trânsito e chegando mais rápido do que qualquer carro ou ônibus.
Assim, em pouco tempo, Quelvim se tornou o garoto mais bem sucedido de toda a sua comunidade (chegaram até a fazer um funk da lavadora voadora!), e sua família nunca mais passou fome.
Nota do autor, setembro de 2021: escrevi este conto de fadas quando estava trabalhando com Tatiana Belinky na reescritura da coleção “Clássicos Recontados”, e acabei ficando inspirado por este estilo, em que o herói precisa passar por provações, encontra algo mágico e sobrenatural e resolve a sua vida com isso. Este conto segue bem o estilo.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais