A revolta de Zebrildo – Versão estendida
Certo dia, as faixas de pedestre se revoltaram. É, é isso mesmo, revoltaram-se. Vou lhes contar como aconteceu: na avenida principal da cidade, quando um grupo de pedestres estava se digladiando para conseguir atravessar a rua dentre os carros que ou estavam parados sobre a faixa, ou estavam tentando passar, mesmo com o semáforo fechado. E foi aquela gritaria: “O farol tá fechado!”, “Presta atenção!”, “Olha a faixa!”, “Tô passando!”, isso sem falar nos xingamentos. E tinha freadas e guinadas e gente pisoteando e cachorro latindo e lixo no chão e tudo mais. E aí uma faixa, que por sinal se chamava Zebrildo (temos de chamá-las pelo nome certo!), decidiu se manifestar.
Primeiro, acharam que era um terremoto; depois, acharam que era uma ilusão de óptica; por fim, todos viram a faixa se erguer na vertical, aquela estrutura de duas dimensões, de listras brancas flutuando, com alguns espaços vazios, todos unidos por algo etéreo, que mantinha aquele ser vivo.
– Estou cansado de todos vocês! – ela gritou, e sua voz era, de alguma forma, meio asfaltada. Se é que vocês entendem o que eu quero dizer.
Todo mundo ao redor fez silêncio; o trânsito parou. Até mesmo o semáforo se esqueceu de mudar para o verde, só para poder olhar o que estava acontecendo bem ali.
– Estou cansado disso! Todo dia é a mesma coisa! Vocês ficam aí, brigando por causa da faixa! Quando não é o carro brigando porque o pedestre está cruzando na hora errada e acha que é o dono da rua, porque se for atropelado, a culpa é do condutor, é o pedestre reclamando do carro, que pára em cima da faixa ou cruza na hora errada. Isso quando os dois não estão errados!
Do outro lado da rua, no sentido contrário, os carros também pararam para ver aquele acontecimento singular. Era um holograma? Alguém fantasiado de faixa? Mas não, não era! Dava para ver as marcas do chão, como se ela realmente tivesse sido arrancada de lá!
– Eu estou cansado disso. Ninguém se importa comigo. Me pisoteiam, me deixam marcas, me jogam lixo… Eu sei, eu sei, eu nasci para isso, não estou reclamando do meu trabalho. É assim mesmo. Mas… Vocês bem que poderiam ter um pouco de consideração! Não comigo, mas um com o outro! Isso ia deixar o meu dia tão mais fácil, tão mais simples… Veja, aqui estou eu, com o meu amigo semáforo para me ajudar a organizar o trânsito…
O semáforo fez uma reverência.
– E ele é super educado, marca direitinho quando abre e quando fecha, sempre dá tempo até para aquela senhorinha passar.
– Eu sempre tento deixar elas passarem antes de fechar novamente – ele falou, educadamente.
– E a minha amiga calçada também está sempre aqui, pronta para apoiar vocês enquanto esperam a hora de cruzar – a faixa prosseguiu.
– Isso aí – disse a calçada, usando o seu buraco na sarjeta que tudo engole como boca. – É só não ralar a roda do carro em mim, nem ficar jogando bituca de cigarro, que estou aqui para ajudar quem quiser.
– E eu, por fim, estou sempre aqui, pronto para ajudar. Com irmãos por todas as partes da cidade, alguns sozinhos, outros com a calçada, outros também com semáforo, sempre demarcando o lugar de atravessar. Mas vocês… Ora, vocês! Simplesmente me ignoram! Os carros param em cima de mim quando não devem, os pedestres cruzam quando não devem, ou às vezes me ignoram totalmente! Puxa vida, quantos acidentes já não vi, nestes mais de cinquenta anos que existo aqui? Tudo porque não cruzaram aqui, com a minha assistência! E quantas vezes não vi pessoas se xingando bem em cima de mim? Puxa, quando o senhor, que é condutor, sai do carro, não é pedestre também? Não tem de cruzar em cima da faixa? E o senhor, quando pega seu carro, sua moto, seja o que for, não tem de respeitar os pedestres e dirigir de forma segura?
Todos na rua estavam boquiabertos. Repórteres tiravam fotos, pessoas filmavam para colocar na internet.
– Querem saber de uma coisa? Chega! A partir de hoje, estamos em greve! Irmãos! Levantem-se!
Um terremoto se espalhou por toda a cidade, iniciando por aquela avenida e indo até os confins da periferia, conforme as faixas brancas intercaladas por espaços vazios se erguiam e começavam a caminhar.
– Vamos fazer uma passeata pelo respeito às faixas de pedestres!
E aqueles seres bidimensionais foram se juntando, se juntando… Como conseguiam passar por todas as frestas e andavam rápidos como a luz, logo já havia um conglomerado naquela avenida; os motoristas, assustados, passaram a desviar, tirar seus carros, tentando dar espaço para a passeata faixal; entretanto, como não havia mais nenhuma para demarcar onde parar, o trânsito se tornou infernal, pois havia pedestres, ciclistas, motociclistas, ônibus e caminhões, todos desorientados e querendo cruzar ao mesmo tempo, onde bem entendessem.
– Vamos, irmãos! À caminhada!
E lá foram as faixas, em fila indiana, flutuando sobre o chão, gritando pelo respeito a elas. Havia milhões e milhões! Helicópteros de reportagem logo se juntaram sobre a avenida, filmando o acontecimento histórico; professores de física, química, metafísica, filosofia e artesanato (estes ninguém sabia bem por quê) foram convocados para dar explicações: o que era aquele fenômeno?
Por fim, a polícia militar e os bombeiros foram convocados. Mas, quem disse que eles conseguiam chegar, diante de tanto congestionamento?
Apenas quando as faixas já estavam na metade da avenida, caminhando a passo lento, a brigada da polícia chegou, com seus escudos e cassetetes, e formou um círculo em torno deles. Mas, o que iriam fazer? Acertar faixas com bastões? Usar armas de tinta? Não sabiam!
– Parados aí!
– Isto é uma manifestação pacífica pelos nossos direitos! – redarguiu Zebrildo
Os policiais se entreolharam.
– Vocês são faixas de pedestres! Não têm direito algum pela constituição! – gritou de volta. – Eu acho – murmurou.
– Estamos dentro dos nossos direitos como trabalhadores! E como seres vivos!
Pouco depois, chegaram os caminhões de bombeiros, fazendo o maior estardalhaço.
– Parem o que estão fazendo e voltem para os seus lugares de origem, ou vamos ter de usar a força bruta!
Zebrildo, porém, comandando a sua tropa de faixas, prosseguiu inexorável em sua marcha.
– Nós avisamos…
E, ao mesmo tempo, todos os caminhões que haviam circundando a passeata ativaram suas mangueiras e despejaram litros e litros de… Removedor de tinta.
– Nããããããããããããããooooooo! – gritaram elas, conforme se desfaziam e escorriam pelos ralos da sarjeta.
As calçadas e os semáforos ficaram bem quietinhos; não queriam passar por isso também.
Os policiais e bombeiros se congratularam; haviam cuidado bem do problema. Agora, só faltava pintar faixas novas por toda a cidade…
– Mas, desta vez – sugeriu um bombeiro – vamos misturar cola na tinta, para ter certeza de que elas não vão conseguir desgrudar.
E, apesar de toda esta balbúrdia ocasionada pelas faixas, logo tudo voltou ao normal, e elas nunca mais fizeram nenhuma manifestação. Talvez por isso mesmo, todos continuam sem respeitá-las até hoje…
Nota do autor, setembro de 2021: esta é a versão estendida desta crônica; a versão anterior acaba com Zebrildo falando que tinha um sonho, a estilo Martin Luther King, de que poderiam trabalhar todos como irmãos. Acho que gostei mais desta versão revoltada!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais