As Luvas Mágicas
A cidade inteira parou.
Aliás, o país inteiro parou.
Era domingo, quatro horas da tarde; estava para começar a partida final da Copa do Mundo, que definiria o campeão, lá no Maracanã, estádio reformado, novinho para receber os turistas, brasileiros e jogadores.
Os times: Brasil e Espanha. Brasil, pentacampeão mundial; Espanha, campeã, que vinha tendo um desempenho surpreendente nos últimos anos e, de todos os outros que não brasileiros, era a favorita.
Começou o jogo; bola para cá, bola para lá, jogadas rápidas, a rede balançando…
Marco Aurélio estava lá na sua casa, junto de toda a sua família, usando suas luvas da sorte. É, luvas da sorte, mesmo – porque, em uma das copas, ele não sabia qual, exatamente, ele foi ao exterior ver a final da copa, e o Brasil ganhou. E estava tão frio, mas tão frio, que ele teve de usar luvas o tempo inteiro.
Mas, depois do jogo, seu pai guardou as luvas da sorte, e elas ficaram perdidas no seu armário, até que ele morresse e, quando sua mãe estava arrumando tudo, encontrou-as e devolveu ao Marco. O ano era 2002 – e, com a recém-recebida luva, que ela devolveu bem no dia da final, o Brasil ganhou!
Depois, disso, porém, não houve mais oportunidade. E, agora sim, era a sua chance! De luva na mão, com o jogo no Maraca, era só ficar lá e esperar a magia tomar conta do jogo. Mesmo sentindo o maior calor, mesmo sentindo suas mãos suarem dentro das luvas e mesmo sem conseguir pegar batatinhas ou amendoins, de tão grossas que elas eram.
Porém, pareceu que a luva já tinha perdido seus efeitos… Foi 1 a 0 para Espanha. Depois, 2 a 0. O Brasil se recuperou, 2 a 1, não ia se deixar perder, não em casa, não no Maraca, 2 a 2 e, nos 47 minutos do segundo tempo… Pênalti. Para a Espanha.
Foi aquele furdúncio. Não poderiam deixar marcar, não, de forma alguma!
Mas o jogador foi… Posicionou a bola… Arrumou-a… Respirou fundo, olhou para o gol, olhou para a bola, olhou para o pé, olhou para o goleiro… Sentiu que, se marcasse, voltaria para sua nação com a glória de um general romano. Já podia se ver usando os louros nos cabelos.
Pegou velocidade, deu um trotezinho, fingiu uma paradinha e chutou.
Todos na casa pularam junto com o goleiro, como se fosse para lhe dar forças para ir para a direção certa.
Mas não adiantou.
Foi gol.
O Brasil tinha mais 10 segundos, 10 segundos de jogo que foram gastos na comemoração da Espanha, bicampeã mundial. Sem chance. O juiz apitou, a partida acabou, e o Brasil perdeu.
– Não! Não, não, não! Droga!!!
– Cadê a sorte das suas luvas, Marcão? Caramba! Perder a copa em casa! Fala sério!
– Não, sei, sumiu! Luvas idiotas!
Ele as arrancou das mãos (que deram graças por finalmente poderem respirar) e arremessou no chão; em seguida, pulou em cima, pisoteando-as.
– Foi só uma coincidência, mesmo.
Pelo país, era como se alguém muito importante tivesse morrido. Estavam todos de luto (e a presidente efetivamente decretou estado de luto nacional, com folga de uma semana para todos. Se tivéssemos ganhado, seria estado de júbilo nacional, e a folga seria de um mês! Isto só piorou os ânimos de todos…).
Quando todos foram embora, e Marco Aurélio foi recolher o que sobrara de lixo, lá estavam as luvas, caídas no chão, esquecidas. Enquanto as pegou, olhando-as fixamente, ele suspirou.
– Ah, se eu pudesse voltar no tempo! Se tivesse alguma forma de voltar e, sei lá, fazer o jogador chutar pro outro lado, avisar o goleiro… Ai, ai, ai… Daria tudo para voltar e ver o meu Brasil ganhar.
Jogou as luvas na mesa, pois depois as doaria para algum morador de rua, e foi dormir. Não tinha mais ânimo para nada.
No dia seguinte, acordou com o telefone tocando.
– Ô, Marcão, e aí? Que horas vamos aí pra assistir o jogo?
– Jogo? Mas o jogo foi ontem!
– Que jogo ontem, o quê, Marcão? A final é hoje!
– Do que cê tá falando, Reinaldo? Foi ontem, Espanha ganhou de 3 a 2 com um pênalti nos 47 do segundo!
– Para de rogar praga, Marcão!
– Mas…
Ele olhou para o relógio no seu quarto, que mostrava também o calendário: realmente, ainda era domingo. Havia sido tudo um sonho? Bom, isso ele só saberia, quando viessem todos assistir.
E, por via das dúvidas, achou melhor não colocar as luvas. Vai que davam azar?
O pessoal se reuniu; o país parou de novo; o jogo começou, desenrolou-se da mesma forma, e, aos 47 minutos do segundo tempo, a Espanha cavou um pênalti. Todos olharam para o Marcão. Até ele teria se olhado com os olhos esbugalhados, se pudesse.
Marcaram novamente. Porém, em vez de xingar e reclamar, saíram todos para bater no pobre homem.
– Eu falei para não rogar praga! Eu falei!!!
E lá se foram todos embora, chateados como nunca.
Marco Aurélio foi para o quarto, onde pegou as suas luvas da gaveta e as encarou. Tinha sido tudo um sonho? Uma premonição? Ou seria possível que… O dia tinha se repetido?
– Ah, deve ter sido um sonho, mesmo. Coincidência. Imagine, voltar no tempo…
Porém, no dia seguinte…
– Ô, Marcão, e aí? Que hora vamos aí pra assistir o jogo?
– SantamãedeDeus! – ele disse e desligou.
Era domingo, novamente. Dia do jogo. Isto só poderia significar uma coisa.
– Estou em um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho!
Ou, o que seria mais óbvio, que ele só percebeu depois:
– Meu desejo se realizou! Agora tenho a chance de reverter isso!
Mas, para isso, precisaria pôr o seu plano em prática: iria comprar uma passagem para o Rio de Janeiro, dar um jeito de entrar no Maracanã, custasse o que custasse, e falar com o técnico da seleção. Precisava avisá-lo para o goleiro cair para a direita.
Voou para o aeroporto; quando lá chegou, já eram onze horas da manhã. Tinha apenas cinco horas.
– Preciso ir para o Rio de Janeiro, já! – ele disse, no guichê das companhias.
– Só temos voo para as duas da tarde, e é o último.
– Não tem nenhum mais cedo?
– Não.
– Então, tá bom. Quanto é?
Saiu os olhos, os ouvidos, o nariz e a boca da cara, mas ele pagou, de bom grado. Era a sua chance de mudar os rumos do país! De tornar o Brasil hexacampeão!
Ficou ansiosamente esperando o voo, planejando e planejando como faria para conversar com o técnico.
Quando afinal pousou no Rio de Janeiro, tentou chamar um táxi – mas, quem disse que havia algum?
– Tá todo mundo parado, mermão! – um homem nem um pouco confiável respondeu. – Todo mundo tá vendo o maraca nos telões! Cê acha que alguém vai trabalhá na final da copa?
– Ai, meu Deus!
Não teve escolha. A cidade estava paralisada desde as onze horas da manhã!
Ficou lá no aeroporto, mesmo, sabendo da derrota humilhante que o Brasil sofreria. Não queria nem ver! Se pudesse, naquele momento estaria em um avião, voltando para casa, mas… Não havia mais voos!
Porém, e se ele dormisse lá? Se já acordasse no Rio, teria bastante tempo para ajeitar tudo, não?
Contou os minutos até dar meia noite, mas foi afetado por um sono incontrolável, dez minutos antes, e capotou, sentado nas poltronas duras do aeroporto.
Acordou de um pulo, meia hora depois, na sua própria casa, em São Paulo. No calendário, era domingo novamente.
– Preciso ir para o Rio! – exclamou. E foi para o aeroporto.
Mais preparado desta vez, Marco Aurélio chegou bem cedo à sede da final da copa, pegou um táxi e ficou lá no Maracanã. As filas eram enormes, a animação, imensa, e a todo tempo ele pensava: como faria para entrar lá? E, uma vez lá dentro, como entraria em contato com o técnico?
– Psiu! Ei! Ei, mano! Quer um ingresso para a final da copa?
Marco se virou; era um cambista. Sabia que era ilegal, sabia que não estava certo, mas… Faria de tudo para ver o seu país virar hexa.
– Quanto?
Desta vez, não eram só partes da cara, era a cara inteira, mesmo. Com aquele preço, poderia comprar uma moto usada – mas valeria a pena, ah, se valeria! Retirou o dinheiro do banco, pagou o cambista e foi feliz assistir ao jogo.
Para a sua surpresa, o ingresso era de verdade.
Uma vez lá dentro, identificou a parte do campo onde ficavam os técnicos. Tinha de achar uma forma, tinha de achar um jeito de avisar! Mas, como? Como poderia chegar até lá?
Daria uma de louco. Enquanto o estádio inteiro estivesse entretido, sofrendo com o primeiro gol da Espanha, ele poderia correr e se jogar lá, onde os técnicos ficavam. Precisava de um minuto, somente um minuto…
E assim o fez; quando a Espanha marcou o primeiro gol, ele saiu correndo, pulou o gradeado e se jogou por cima da cobertura da equipe técnica. Seguranças imediatamente vieram correndo, mas ele se jogou e parou diante do técnico.
– Me escute, me escute! Nos 47 minutos do segundo tempo, a Espanha vai cavar um pênalti! O goleiro tem de cair para a…
Mas ele não concluiu; os seguranças investiram, como se estivessem jogando futebol americano, e o levaram embora.
– Não! Eu preciso falar! Se não, o Brasil vai perder!!! Nãããooo!
E assim ele foi levado. Virou a noite na prisão, exausto. Sabia que acordaria no dia seguinte, na sua casa, assim, apenas esperou.
Acordou no meio da madrugada, de volta em sua cama. Era hora de agir; mas, desta vez, já tinha uma boa ideia de como abordar o técnico.
Voou para o Rio, comprou o ingresso do cambista, entrou no Maracanã, foi ao banheiro e… Saiu de lá vestido como se fosse um segurança. Havia até cortado o fio de telefone para, junto com um pedaço de massinha, colocar no ouvido e fingir que era um daqueles fones de gente importante.
Quando julgou oportuno, saiu andando como se realmente mandasse no lugar e foi em direção à cabine técnica. Chamou o técnico.
– Me escute, e me escute bem. Eu tenho informações do que vai acontecer no jogo.
– Quem é você? – o técnico perguntou.
– Não importa. Ouça, e ouça atentamente. Em dez segundos, a Espanha vai marcar um gol.
– Para de me azarar! Quem é você? Você não é segurança daqui! Ei, segurança, segurança!
E o técnico estava virado, tentando chamá-lo, quando ouviu o “uuuuuuh!” da torcida.
Ele tinha acertado!
– Agora, acredita em mim?
– Fale o que você sabe.
Marco Aurélio explicou tudo, nos mínimos detalhes. Avisou como seria o próximo gol da Espanha, como o Brasil viraria o jogo e, por fim, como seria o pênalti fatídico no final do segundo tempo. Depois disso, ia voltar ao seu lugar, para continuar a assistir ao jogo, esperançoso de que finalmente veria a vitória do seu tão amado time, mas o técnico o segurou.
– Fique aqui. Quero que você fique junto, Bidu.
A partida prosseguiu como ele havia descrito. E, quando a Espanha cavou o pênalti…
– Não acredito! – exclamou o técnico. – Para a direita, você disse?
– É.
Ele passou a informação adiante; rapidamente, chegou aos ouvidos do goleiro da seleção, que apenas olhou para o técnico, mesmo dezenas de metros distante e, com uma concordância, aceitou. Cairia para a direita.
A Espanha chutou; o goleiro foi… E pegou! Miraculosamente, o goleiro previu para onde iria o chute e salvou o Brasil de uma derrota humilhante! Todos comemoraram na cabine técnica como se praticamente tivessem ganhado a copa.
Mas ainda havia o tempo complementar, para poderem decidir, afinal, quem ganharia o jogo.
– E aí? O que vai acontecer agora? – ele perguntou.
– Não sei – disse Marco Aurélio. – Minha função era impedir que marcassem o gol no pênalti. Não sei o que mais acontece agora.
– Nenhuma ideia? Nenhuma dica, Bidu?
– Nenhuma, professor. Isso era tudo que eu sabia.
E lá vieram os tempos complementares. Foram os quinze minutos, depois o intervalo, e mais quinze minutos e…
– Não acredito! Vai para os pênaltis!
Todos deram as mãos. Todos se prepararam, rezaram, esperando. As unhas do Marco já haviam virado apenas um toco.
Chutava um, chutava outro… Espanha, 1 a 0. Depois, 1 a 1. 2 a 1. 2 a 2. O goleiro pegou. Depois, Brasil acertou. 2 a 3. O goleiro pegou novamente! Em seguida, o goleiro da Espanha pegou. Era o último chute da Espanha; ele preparou, chutou… O goleiro achou que cair novamente para a direita daria sorte, mas… Não deu. 3 a 3.
Faltava apenas um chute, um chute!
Estavam todos abraçados e ajoelhados na equipe técnica. Tinham de marcar! Tinham de marcar!!!
O goleiro se esticou para cá e para lá. Da última vez, o goleiro tinha caído para a direita, o espanhol tinha chutado para a esquerda do gol, tinha marcado. Provavelmente, os brasileiros iriam achar que ele iria cair para a esquerda, para compensar, e iriam chutar para a direita do gol; assim, ele iria cair para a direita também.
Mas, e se eles previssem isso, e fizessem o oposto?
Ah, o jeito era confiar no seu instinto.
Enquanto isso, o camisa 10 brasileiro preparava a bola, girava para cá e para lá, ajeitava tudo e pensava as mesmas coisas. Chutaria para esquerda ou direita?
Confiaria no seu instinto.
O brasileiro voltou um pouco… Chutou o chão… Ouviu o apito… Correu… Deu um trote… Deu uma paradinha… E chutou.
– GOOOOOOOOOOOOOOOOL! – gritou o locutor.
Brasil ganhava nos pênaltis. 4 a 3. Marco Aurélio mal podia acreditar! Tinha visto o Brasil se tornar hexacampeão, na cabine do técnico, em pleno Maracanã!
Tirou as luvas dos bolsos – havia trazido por via das dúvidas, pensando em colocá-las durante o jogo, mas, na pressa, acabou esquecendo.
– Obrigado, luvas! Obrigado!
A equipe técnica corria pelo campo, todo o time se abraçava. Tocava a música de comemoração, e todos no país se preparavam para um mês de folga. Que maravilha!
Marco Aurélio foi recebido com honras por toda a equipe, no jantar de comemoração.
E, quando deu meia-noite…
Não aconteceu nada. Ele continuou na festa e, quando voltou para casa, tinha uma história inacreditável para contar.
Mal podia esperar pela próxima copa. Enquanto ele tivesse aquelas luvas, e o instinto do jogador brasileiro continuasse impecável, o Brasil nunca mais perderia uma final!
Nota do autor, setembro de 2021: escrevi esta crônica antes da copa de 2014, que foi no Brasil – e na qual tivemos o apagão, a derrota humilhante de 7 a 1 para a Alemanha. No entanto, antes disso, essa era a grande expectativa: Brasil e Espanha, final no Maracanã. Seria demais!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais