As Ruas da Fortuna
Era uma cidade bastante pequena, daquelas de interior, que ainda possuem casas, em vez de prédios, poucos ou nenhum semáforo, em que as pessoas deixam os carros destrancados e as portas das casas abertas, convidando os passantes para um cafezinho. E tinha algo muito interessante: um bairro chamado “Praça das Alegrias”, e outro, no canto oposto da cidade, chamado “Largo da Tristeza”. Ninguém sabia de onde exatamente estes nomes haviam vindo, nem ao menos quem tinha tido esta ideia, mas fazia sentido haver um de tristeza, já que havia outro de alegria, e ninguém reclamava.
Até que…
Começou como um rumor, um daqueles diz-que-diz que, na boca do povo de cidade pequena, logo se torna verdade absoluta, mais rápido do que o tempo de ferver o café ou assar o bolo para contar a fofoca. Alguém estava dizendo que, na Praça das Alegrias, onde havia ruas como “Travessa da Felicidade”, “Rua da Boa Sorte”, “Rua da Boa Esperança”, “Alameda dos Sonhos” e coisas parecidas, os moradores estavam… Bem, não tendo seus sonhos realizados, mas quase isso. Todos da Travessa da Felicidade eram felizes; aqueles da Boa Sorte nunca haviam passado necessidades; os da Boa Esperança sempre insistiam veementemente que o país tinha solução; e os da Alameda dos Sonhos, além de serem verdadeiros sonhadores (e muitos dorminhocos), não podiam dizer que seus sonhos não se tornavam realidade.
O que não seria de todo ruim, se quem começou este rumor não o tivesse começado justamente no Largo da Tristeza. Lá, havia ruas como “Rua da Discórdia”, “Travessa do Asco”, “Alameda das Lamentações” e, é lógico, a famosa “Rua da Cobiça”. Foi nela que mais se espalharam todos estes rumores, e foi nela que a primeira reunião de moradores se formou.
– Ouvimos falar que os moradores da Praça da Alegria não passam nunca nenhuma necessidade. Eles são felizes, têm dinheiro, carros chiques e tudo mais, enquanto nós moramos aqui, nestes muquifos! – anunciou um morador da Alameda das Lamentações.
Tudo bem, as casas não eram lá essas coisas, mas também não eram barracas de madeira. Precisava se lamentar tanto?
– Nós merecemos coisas, no mínimo, iguais! – opinou um da Rua da Cobiça.
– Mas, vocês acham que realmente é por causa do nome das ruas? – perguntou um da Rua da Discórdia.
– Mas é lógico! – responderam um desta mesma rua e outro da Cobiça. – De onde mais você acha que eles tiraram tantas coisas boas? E a gente, tanta coisa ruim? Um amigo meu, da esquina da Luxúria com a Presunção, já está com a quinta esposa diferente e pagando pensão para todas elas. Veja se alguém lá na Praça da Alegria alguma vez já se divorciou!
– Também, os casais lá parecem todos modelos… Quem é que vai se divorciar? – opinou um da Ponte da Inveja.
– Acho que nem devem ter se casado, para começo de conversa – comentou alguém das Lamentações. Mas os da rua da Solidão murmuraram que isso também não trazia felicidade.
– Precisamos dar um jeito nisso! – falou um da Presunção, assumindo seu posto como líder não eleito. – Acho que a solução é fazer uma petição para a prefeitura, para que mudem os nomes das nossas ruas!
Todos concordaram, exceto pelos da Discórdia, que eram mais favoráveis a fazer um movimento dos sem-terra e desalojar todo mundo da Praça das Alegrias. Os moradores da rua da Procrastinação ficaram responsáveis por redigir o texto, mas logo os da rua da Avareza acharam que não seria lá muito produtivo e tomaram a missão para si, redigindo um texto bastante sucinto, de duas páginas. Os da Avenida do Engodo, então, pegaram o texto original e fizeram algumas modificações, para torná-lo mais palatável. Levaram muito tempo, pois eram uma paralela da Rua da Procrastinação, mas conseguiram redigir uma petição que precisou ser encadernada de tão grande. Os da Rua do Orgulho foram lá entregar.
A prefeitura, porém, deveria ficar em uma travessa da Procrastinação com a Rua do Descaso, pois sequer se deu ao trabalho de responder. Só quando os moradores da Travessa da Teimosia fizeram um piquete na frente do prédio municipal é que o secretário adjunto do assistente do vice-sub-prefeito levou um memorando anunciando que a petição havia sido indeferida. Os da Rua da Ira depredaram os jardins da prefeitura e acabaram todos presos.
Uma nova reunião foi marcada no Largo da Tristeza, onde a situação foi apresentada a todos. Logo, a ideia dos moradores da Discórdia começou a ganhar força (mas, ironicamente, quando se tornou uma concórdia, os da Discórdia decidiram que não queriam mais participar), e os moradores organizaram uma invasão de terras. Colocaram à venda suas casas, todos na mesma imobiliária, que ficava na rua da Avareza, e foram marchando pelas ruas, de uma parte da cidade à outra, até chegarem à Praça das Alegrias, que brilhava ao sol, ao contrário do Largo da Tristeza, onde todos os dias eram escuros.
– Viemos exigir nossos direitos! – anunciou o líder da horda. – Não aguentamos mais viver em um bairro tão triste! Queremos viver neste recanto de alegria!
Ora, os da Cobiça, do Orgulho, da Discórdia, da Inveja, entre outros, já estavam com armas em mãos – facões, foices, enxadas, pás, fosse o que fosse –, prontos para uma ação violenta, se fosse necessário (sorte que todos da Pinguela Violência estavam presos ou foragidos), quando os da Rua da Bondade, da Travessa da Humildade e da Avenida do Amor os receberam de braços abertos, oferecendo cama confortável, comida agradável e um banho quentinho.
Só que não havia espaço para todo mundo. Os da Humildade até tentaram se espremer, dormindo no chão para deixar os visitantes nas camas e sofás, mas logo os das Lamentações e da Discórdia passaram a reclamar, reclamar, e a situação ficou insustentável. Juntaram-se aos que ainda não tinham conseguido alojamento, e começaram a invadir os terrenos adjacentes à Praça das Alegrias. Derrubaram as árvores, aplainaram os terrenos, e rapidamente construíram suas casinhas, chamando as ruas de coisas mirabolantes, como “Alameda dos Três Desejos”, “Rua do Sucesso” e “Avenida dos Milagres”. Entre outras coisas.
Não demorou muito, e as casas começaram a ser vendidas, lá no Largo da Tristeza; parecia que um grande investidor, interessado em fazer um bairro planejado, queria comprar todas as casas, derrubar tudo e começar do zero. Coitado! Mal sabia ele do triste destino daquele lugar, pensavam todos.
Os primeiros a terem suas casas vendidas foram aqueles que estavam dividindo as casas com os moradores da Praça das Alegrias; obviamente, o pessoal do novo bairro – que haviam chamado de “Recanto da Felicidade” – ficou bichado, especialmente os da Rua do Pessimismo, que diziam que as coisas realmente nunca iriam melhorar, que nunca iriam vender suas casas e coisa parecida.
Entretanto, logo até estes conseguiram ter suas residências vendidas, por um preço bem abaixo do que deveriam – pois, logicamente, os pessimistas ficaram tão felizes que haviam conseguido vender, que mal se preocuparam com o valor. E logo todos começaram a achar que a vida realmente havia dado uma guinada e tudo iria para melhor.
Isso não durou muito, porém; os meses foram passando, e os sonhos e desejos do Recanto da Felicidade não se tornavam realidade, enquanto os da Praça das Alegrias, especialmente os do Boulevard da Prosperidade, cresciam a olhos vistos. Até mesmo os novos convidados moradores destas casas estavam se dando bem, entrando na onda dos donos das propriedades!
Foi aí que os da Inveja ficaram ressabiados e decidiram intervir; não era justo! Deveriam fazer um rodízio, ou alguma coisa do gênero, para que todos ficassem algum tempo lá e conseguissem ir, gradualmente, melhorando, já que o Recanto da Felicidade não tinha nada de feliz.
Mais uma vez aquela horda furiosa do Largo da Tristeza achou que a solução era acabar com tudo e, munidos novamente de suas armas, prepararam-se para invadir a Praça das Alegrias. E tudo teria terminado em tragédia, se um morador da Travessa da Sorte, que antes era morador do Beco da Fofoca, não tivesse vindo trazer a seguinte notícia:
– Gente, gente! A prefeitura no final acatou a nossa petição e decidiu mudar o nome das ruas do Largo da Tristeza!
E um vizinho, que era da Pinguela do Exagero, logo completou:
– Parece que chamaram uma das ruas de “Rua da Fortuna”, e um novo morador, enquanto foi capinar o jardim, encontrou petróleo!
Ao que um grupo da Cobiça respondeu:
– Vamos pegar nossas casas de volta! Rápido!
E foi a maior correria. A imobiliária responsável pela venda de todos aqueles imóveis nunca ficou tão lotada quanto daquela vez; todos queriam comprar suas casas de volta, ou desfazer o negócio anterior, o que era logicamente impossível, até porque os da Luxúria já haviam gastado todo o dinheiro.
Para sua sorte, porém, o investidor havia transformado tudo em um bairro fechado. Bem, na verdade, tudo o que ele fez foi cercar o Largo da Tristeza, deixar as casas exatamente como estavam, renomear todas as ruas e chamar o bairro de “Alto das Maravilhas”.
Foi uma briga, mas, finalmente, ao custo de financiamentos quase eternos, todos conseguiram se realocar no bairro. A maior disputa foi por causa da Rua da Fortuna, pela qual todos brigaram (exceto pelos da Discórdia, que preferiram a Rua da Concórdia), mas os preços eram tão exorbitantes, que nem mesmo os da Luxúria se arriscaram a pedir o financiamento e foram para outras ruas menos esplendorosas (quer dizer, exceto pela Rua do Esplendor, onde ficaram os que antes moravam no Orgulho).
No final, esta rua ficou vazia, e quando os da Procrastinação, que haviam deixado todos irem na frente, chegaram ao bairro para reaver suas casas, ora, só havia aquelas! Que mais outra opção, além de fazer o sacrifício de morar em uma rua onde choviam diamantes, como diziam por aí?
No final, tudo até que deu certo. Não vou dizer que milagres começaram a ocorrer, nem coisa parecida, mas os novos antigos moradores começaram a ver a vida com outros olhos, agora que residiam no Alto das Maravilhas, e as coisas lentamente passaram a melhorar. Não eram como o que acontecia na Praça das Alegrias, logicamente, mas eles preferiam nem olhar por cima da cerca – por sinal, haviam saído de lá sem nem sequer agradecer pela hospitalidade!
Contudo, no centro da Rua da Fortuna, esquina com o Beco do Mistério (único beco de nome obscuro no bairro, mas que significava muito, muito mesmo) morava um homem realmente rico; ele tinha uma mansão, e ninguém sabia quem ele era. Alguns diziam que era o dono do bairro; outros, o dono da corretora. A teoria conspiratória mais aceita, porém, divulgada pelos antigos moradores do Beco da Fofoca, era de que ele era, ao mesmo tempo, dono do bairro, da imobiliária e marido da prefeita, e que tudo aquilo havia sido parte de um plano mirabolante para ele alcançar sua fortuna de forma misteriosa.
Bem, se fosse verdade, significava que a mudança dos nomes das ruas estava dando certo. Então, por que reclamar?
Nota do autor, setembro de 2021: algumas sacadas muito engraçadas à parte, esta crônica é mais para uma reflexão: o quanto deixamos rótulos dominarem a nossa vida? Será que o pessoal do Largo da Tristeza era realmente tão triste, ou será que era apenas porque eles assim se sentiam, uma vez com este rótulo?
O que você achou, chegando ao final da crônica? Concórdia ou discórdia?
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O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais