Aurora Arboreal
– Vamos começar a nossa aula com uma piada. Por que o pinheiro nunca se perde na floresta? Ahm? Ahm? Alguém sabe?
Silêncio sepulcral.
– Porque ele tem uma pinha! Há! Entenderam? Uma pinha. Um mapinha! Há!
Claro, ninguém riu, mas era hábito do professor fazer este tipo de piada antes de iniciar a aula. Nunca nenhum aluno rira, e nenhum aluno riria, mas ele continuava fazendo mesmo assim. Pobre professor. Já estava velho e literalmente caducando, especialmente com a chegada do inverno.
– Muito bem, agora, vamos falar de coisas sérias: eu preciso que vocês entendam o nosso papel aqui, hoje. O grande plano.
– Sempre achei que o grande plano fosse não virar papel! – exclamou um dos alunos, pretenso piadista. Tinha potencial para ser professor, aquele ali.
– Há! Entendi! Excelente, excelente! – respondeu o professor. – Não virar papel. Boa.
– Mas, professor – respondeu outro, que era mais rebelde. – É fato que alguns de nós virarão papel.
– Um sacrifício necessário pela causa.
– Mas… Vão nos descartar como se fôssemos lixo! Especialmente… Depois de… Você sabe.
Todos se retorceram em asco.
– Não, não, não se preocupe com isso. Isso é irrelevante, irrelevante! Vocês foram criados para serem grandes, grandes, meus pequenos! Viverão por anos e anos a fio. Nada vai derrubá-los. O importante é mantermos o grande plano.
Os aluninhos suspiraram, fumaça se espalhando em meio à névoa da manhã; o sol sofria para cruzar as brumas daquele dia de fim de outono.
– O plano que eu gosto de chamar de “Aurora Arboreal!”. Pegaram, pegaram? Em vez de Boreal, Arboreal! Demais, né?
Eles não pareceram particularmente empolgados.
– Professor, me desculpe – começou aquele aluno revoltado. Ele sempre dava problema, e o pior é que não tinham a menor perspectiva de mudança de sala pelos próximos anos. – Mas é que este Grande Plano, a tal Aurora Arboreal – pontuou ele com sarcasmo – simplesmente não me parece fazer sentido.
– Como é?
– Olha, até uns milhões de anos, o planeta era basicamente só nosso. Daí, surgiram os animais. E, sério, a história de que nós os estamos cultivando para nos alimentar deles… Simplesmente não faz sentido!
– Mas é este o plano! – exclamou o professor. – Eles vão achar que estão ganhando! Que estão dominando o planeta! Mas, na verdade, eles são uma grande, uma enorme fazenda, que nós estamos cultivando para nos alimentar depois!
– Mas, professor… Não faz sentido! Eles se alimentam de nós! De nossos frutos, de nossas folhas e galhos… O desmatamento… Há cada vez menos de nós!
– Você precisa enxergar a longo prazo, meu menino… A longo prazo… Eles estão percebendo nossa importância! Veja, já estão nos replantando! Eles estão nos reproduzindo por nós mesmos!
– Mas, ainda assim, não compensa! Pense em quantos de nós viraram casas, papéis, objetos, papel higiênico…
– Isso não importa, não importa! Tudo volta à terra! Nossos irmãos voltam depois desta transformação! Mudados! Melhorados!
– Voltam, professor? Cadê eles? Eu nunca vi!
– O mundo é muito vasto.
– Professor, você sabe muito bem que podemos nos comunicar com qualquer lugar do mundo por meio do micélio. Nunca falei com ninguém que tenha encontrado qualquer um que voltou. Eles vêm todos mutilados… Sequelados… Acabados…
O professor suspirou. Eita, geração difícil! Era tão mais simples quando ele dizia para os jovens brotos sobre a Aurora Arboreal, o grande momento em que eles renasceriam, quando delicadamente movia seus galhos para que eles recebessem mais luz, quando observava aqueles que vingariam e aqueles que não, que seriam comidos por animais, ou não teriam raízes profundas o suficiente, ou que não conseguiriam pegar o suficiente do solo e do ar! Mas, agora… Aquela turma já estava crescida. Já tinham alguns anos de vida, já tinham enfrentado poucas e boas, claro, nada como ele, mas tinham… E agora estavam nesta fase questionadora.
– Professor, é sério. Não faz sentido este grande plano.
– É, os humanos são uns parasitas! – exclamou outro.
– Pensem neles como simbiontes – comentou o professor.
– É claro que não!
– Simbiontes não acabam com o seu colega!
– É verdade! Já estou superamigo deste líquen aqui.
– E esta bromélia sempre me ajuda ao atrair animais.
– Aliás, as abelhas este ano foram maravilhosas, o tanto que me polinizaram… Viram como fiquei carregado de frutos?
– Agora, os humanos!
– Humanos! – bufaram as outras árvores, balançando os ramos. – Humanos só nos destroem. Não dão o devido valor.
– Que apodreçam todos para comermos seus restos!
– É! – concordou o resto da classe.
– Brotinhos, brotinhos, acalmem-se! É questão de tempo. Não temos opção. Humanos são inevitáveis.
– Nós deveríamos ter caído em cima daqueles macacos quando tivemos a oportunidade, uns milhões de anos atrás – comentou um deles. – Nunca teriam ficado de pé de verdade.
– Não adianta chorar sobre o tronco caído – comentou o professor. – Só nos resta esperar que acabem consigo mesmos. É questão de tempo. E, então… Então! A Aurora Arboreal! Vamos consumir todos eles, que estamos criando há milhões de anos!
Os tronquinhos balançaram suas copas.
– Professor, esse discurso não engana mais a gente – comentou. – A gente sabe o que eles estão fazendo. A gente sabe que não está mais no comando. Temos só de torcer por nossas vidas.
– Isso é porque vocês não veem o grande plano. Nós vamos dominar o mundo de novo! Vamos nos alimentar de toda a matéria orgânica que há ao nosso redor!
– Quem tá mandando bem nisso são os fungos, professor – comentou um aluno mais ao fundo, que ele não conseguia ver ao certo quem era. – Talvez a gente devesse falar de uma Aurora Fungal.
Alguns alunos riram; o professor ficou bravo.
– Silêncio! Alguém se aproxima!
Os movimentos dos humanos eram rápidos para as árvores, que sempre faziam tudo muito lentamente; um grupo de capacetes se aproximou da grande árvore que era o professor; na sequência, um barulho de motor e uma dor lancinante na sua lateral. Ele só teve tempo de entrelaçar seus ramos e dar seu discurso final.
– Estou indo para a minha transformação! Voltarei na Aurora Arboreal! Lembrem-se do que lhes ensinei! – disse ele, pelo micélio, antes de ser cortado em pedaços e levado pela madeireira.
Os tronquinhos ficaram parados, em silêncio, apenas observando, tensos.
– Aqui vai ser um ótimo campo de futebol – disse um dos humanos. Eles falavam rápido demais para que as árvores compreendessem. – Bora arrancar tudo.
E, enquanto avançaram pelo terreno, devastando tudo, aquela arvorezinha revoltada só pôde pensar:
Aurora Arboreal o meu caule, professor!
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O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais