Bela e a Fera da Harmonização Facial
Nos confins da cidade, em uma casa muito pobre, vivia um trabalhador informal com seus treze filhos. Sim, treze; eram sete meninos e seis meninas. Sua esposa havia morrido após o parto de sua filha mais nova, e o mercador vivia viúvo desde então (pois quem lá seria doida de encarar cuidar de treze filhos?).
Quando a filha mais nova, chamada Isabela, mas apelidada de Bela, estava para fazer quinze anos de idade, ela era a única de quem o pai ainda cuidava; todo o resto já havia se casado e se mudado para as casinhas que havia logo ao lado.
– Bela – ele disse. – Vou para a cidade, comprar produtos para revender, devo voltar em dois, no máximo três dias. Como é seu aniversário, o que você quer de presente?
Suas amigas tinham celulares e roupas de última moda, mas Bela era simples e, acima de tudo, inteligente.
– Estou esperando o quinto volume desta coleção de livros policiais – ela disse. – Se já tiver chegado, você pode comprar para mim?
Assim, seu pai partiu para as compras. Moravam muito longe da capital do estado, para onde ele se dirigia, e ele chegou somente ao nascer do sol do dia seguinte. Fez suas compras, que duraram o dia inteiro, mas sequer teve tempo de se lembrar do presente de Bela; estava entretido demais discutindo preços, combinando entregas e fugindo de ladrões. Pois bem, ao final do dia, não havia mais ônibus disponível para voltar, e ele teria de passar a noite na cidade, só que não tinha dinheiro nem sequer para um hostel.
Começou a chover, e o pobre vendedor ambulante teve de se esconder no muro de um casarão.
Subitamente, a porta se abriu; curioso, o homem entrou naquela enorme mansão, cujos jardins eram tão grandes, que um carrinho de golfe, dirigido por absolutamente ninguém, parou ao seu lado para levá-lo para dentro.
Como o conto de fadas, o vendedor foi servido de uma refeição quente, ganhou uma troca de roupas e uma cama confortável – a mais confortável da sua vida! – para dormir. No dia seguinte, após um café da manhã digno de hotel cinco estrelas, ele caminhou pela enorme mansão e encontrou uma biblioteca; lembrando-se de sua filha, pôs-se a procurar o livro que ela tanto queria, e o encontrou. Havia uma etiqueta com código de barras na lombada do livro, como geralmente havia em uma biblioteca.
– Deve ser uma biblioteca pública! – disse, para ninguém em especial. – Acho que posso levar para Bela. Depois, quando ela tiver terminado, eu trago de volta.
Assim, saiu ele serelepe e pirilâmpico pela mansão e já estava cruzando a porta, onde havia aquelas torres de detecção, quando uma sirene tocou. Dois seguranças de preto apareceram do nada e lhe apontaram armas; o homem derrubou o livro e foi ao chão, de joelhos, com as mãos na cabeça.
Um par de joelhos apareceu à sua frente; quando ele levantou a cabeça, quase vomitou de tanto nojo.
O ser mais horroroso que já vira em toda a sua vida, um ser tão feio, que desafiava os limites da imaginação, olhava para ele.
– Como ousa… Como tem a audácia… Depois de tudo que lhe demos…
– Mas… Mas…
– Ia roubar o meu livro? Sabe o trabalho que tive para conseguir? Não está traduzido para o português, ainda. Mandei traduzirem para mim e fiz uma edição especial. Ninguém mais no mundo tem este livro!
– Desculpe! Desculpe! Achei que fosse uma biblioteca! Que podia levar e trazer depois!
– Você está vendo alguma bibliotecária aqui?! – gritou o homem. – Ahm? Tem alguma placa? Alguma coisa dizendo que você pode pegar o livro e ir embora?
– Mas também não tem nada dizendo que não pode – retrucou o vendedor.
– Cale a boca! Eu deveria acabar com a sua vida agora mesmo. Ninguém vai notar a falta de um vendedor ambulante…
Ele pôs as mãos às costas e começou a andar para lá e para cá.
– Não! Meu senhor, me desculpe, eu juro que não foi por mal… – retrucou ele, tremendo na base.
– Eu faço as leis aqui! – exclamou ele e apontou para os seguranças. – E eles executam!
– Não, senhor, não posso! Minha filha! O que será dela? Oh, a Bela! Quem vai cuidar dela?
– Você tem uma filha? – perguntou a fera, com súbito interesse.
– Na verdade, tenho seis, mas Bela é a mais nova, o livro era para ela…
Ele cofiou o queixo peludo.
– Uhm… Uma filha com bom gosto.
– Sim, sim, ela é muito inteligente! Vai ser uma pessoa importante um dia! Mas, nada disso vai ser possível, se eu não estiver lá para cuidar dela!
Ele pensou mais um pouco.
– Façamos o seguinte! Você volta para a sua filha. Quero ela aqui em uma semana; ela vai tomar o seu lugar.
– O quê? Não, não, isso não! Você vai matar ela no meu lugar?
– Não.
– Então, o que ela iria fazer aqui? Ficar com…
O homem se retorceu só de imaginar sua linda filha com aquele monstro horroroso.
– Ela só tem quinze anos!
A fera se aproximou e se agachou, de forma que o homem não podia se não olhar para a sua cara horrenda.
– Faça ela vir… Ou eu mesmo mando buscá-la. Semana que vem.
A fera se levantou.
– Pode levar o livro para ela. Diga que é um presente. E que tem muito mais de onde este veio.
Todos desapareceram de supetão, e o homem foi levado pelo carrinho de golfe, macambúzio, até a rua.
Voltou à sua casa e foi recebido com todo amor e carinho pela filha, que ficou especialmente surpresa com o presente.
– Nossa, pai! Não acredito que você conseguiu!
– Achei uma livraria muito especial lá na cidade…
– Livraria ou biblioteca? – questionou ela, olhando a lombada.
– Bem…
Ele achou melhor contar tudo; afinal, em menos de 7 dias, ela teria de estar lá, ou os capangas daquele monstro viriam buscá-la.
– Mas, o que ele quer comigo, exatamente, pai?
Ele a olhava, com dó de sua inocência.
– Talvez, ele só queria companhia. Não sei. Mas é um bicho tão horroroso! É inacreditável que seja realmente uma pessoa!
– E o que acontece se eu não for?
– Eles vêm pegar você. Ah, minha querida Bela! Me desculpe! O que sua mãe pensaria se visse o que eu fiz…
– Tudo bem, pai, a culpada fui eu. Eu que pedi o livro, mesmo sabendo que era quase impossível ter um desses à venda, já que ele acabou de lançar lá fora. Pode deixar, eu vou. Não pode ser tão ruim assim, se ele tem uma biblioteca com livros tão recentes.
A semana passou; Bela se despediu de todos, fez a sua mala e se dirigiu para a cidade. O pai não a acompanhou, pois não tinha dinheiro para pagar duas passagens, coitado.
Quando Bela chegou, já estava escuro; mesmo assim, os portões da casa se abriram, e o mesmo carrinho de golfe veio recebê-la e levá-la pelos jardins iluminados até a entrada da grande mansão.
– Que interessante! Tanta tecnologia nestes carrinhos!
A porta também deveria ter um sensor, talvez até mesmo de reconhecimento facial, e motores provavelmente a moveram para que se abrisse. Um robô humanoide, com uma face que reproduzia expressões humanas à perfeição, veio recebê-la e levá-la para a mesa.
Será que é esse o homem de quem papai falou?, pensou ela. Não é possível que papai não tenha percebido que é um robô, e não uma pessoa! E ele não é tão feio, assim… Talvez, eu esteja a salvo…
A mesa estava posta, com diversos pratos, tanta fartura, que Bela, que passara fome a vida toda, mal pôde acreditar.
Tanta comida! Espero que tenham para quem dar depois de mim, porque vai sobrar muito!
Ela comeu até se fartar; quando estava satisfeita, o robô se aproximou e, com a sua voz robótica, disse:
– Por favor, me acompanhe pelo tour guiado da mansão.
Ele mostrou todos os inúmeros banheiros, salões com as mais diversas funções, sala de jogos, quartos, varandas, jardins… Ela estava perdida.
– Ao final de cada curva dos corredores, tem um totem de localização – informou o robô. – Você nunca vai se perder aqui.
Ela encarou o robô.
– Quando vou conhecer o dono desta casa? – questionou ela.
– Quando for oportuno. Aonde gostaria de ir, agora?
Ela tirou o livro da bolsa.
– Gostaria de devolver este livro. Já terminei de ler.
O robô ergueu as sobrancelhas falsas.
– Gostou?
– É excelente! Maravilhoso!
– Posso sugerir outros títulos baseados na sua escolha – comentou ele, e os dois seguiram pelos corredores até a biblioteca.
Os próximos dias se passaram como pura embromação; Bela não fazia nada além de comer, ler livros e passear pelos jardins. Quando, afinal, o homem horroroso que era dono daquela mansão apareceria?
– Você acaba de receber uma mensagem – anunciou o robô, que já estava mais parecendo um amigo para ela.
No seu peito, uma tela brilhou, e uma mensagem de WhatsApp indicava:
“Esteja pronta para o jantar às 19h”.
Não mudava muito do horário em que ela sempre estava pronta, mas, enfim, por que não obedecer aos caprichos daquele bilionário esquisitão?
Assim, às sete horas da noite em ponto, após seguir as orientações dos totens de localização (ela ainda continuava se perdendo entre a ala leste e a norte da mansão), ela chegou à sala de jantar.
Sentou-se à mesa; a refeição já estava servida, mas, desta vez, havia dois pratos. Só que um estava no extremo oposto da mesa, que era tão longe, que Bela, com miopia, mas sem usar óculos, porque seu pai não tinha dinheiro para comprá-los, não conseguia enxergar direito.
– O que gostaria de beber? – perguntou o robô. – Vinho? Champanhe? Um drinque especial? O negroni da casa é espetacular.
Ela riu.
– Seu robô, eu tenho 15 anos. Não posso beber, ainda.
– Água mineral? Suco de laranja? Leite?
– Água está bom.
– Boa noite.
Ela deu um pulo; a voz grossa sugira do nada, às suas costas, conforme um par de mãos se apoiava em seus ombros.
– Não, não se vire.
A voz era bonita; parecia de um locutor de rádio, ou de um dublador.
– Eu sou o dono desta mansão.
– Como é seu nome? – questionou ela.
As mãos eram pesadas e, embora estivessem se movendo como se fossem fazer uma massagem em seus ombros, ela tinha medo de que decidissem, sei lá, quebrar seu pescoço do nada ou algo mais indecoroso. Talvez, estivesse lendo romances policiais demais. Isso era culpa do robô e seu algoritmo, claro!
– Belon.
– Bilom?
– Isso, a pronúncia é essa.
– Mas que nome diferente!
– Minha mãe era bem criativa.
– Por que não posso me virar?
– Porque ainda não é o momento.
O peso de suas mãos sumiu de seus ombros, e ela pôde ver as costas do homem, enquanto ele caminhava em direção ao seu lugar, no outro extremo da mesa. Ele era alto e atlético e usava um blazer azul escuro com uma calça combinando. Porém, estavam distantes de uma forma que ela não conseguia definir como era seu rosto; não passava de uma mancha disforme. Entretanto, uma caixa de som e um microfone permitiria que ambos conversassem normalmente.
– Então, Bela, o que está achando de sua estada aqui na minha mansão?
– Está sendo maravilhosa – disse ela; embora estivesse irritada, especialmente por não saber por que raios estava sendo mantida cativa, lá, ela sabia que não devia irritar um bilionário de nome excêntrico. Era assim que as coisas terminavam mal, com bombas atômicas sendo apontadas para pontos turísticos e guerras interestelares. – Sua biblioteca é impressionante.
– Que bom que gostou. Pensei em atualizar para livros digitais uns anos atrás, mas, quer saber? Não há nada como pegar o livro em mãos de verdade.
Por sua mente, uma lista de crimes passava: cárcere privado, abuso de menores, de incapaz, chantagem… Mas, de que adiantaria acusar a fera tecnológica de todos estes crimes, se ela não teria como chamar a polícia ou sequer sobreviver a eles?
– Qual foi o último livro que você leu, antes desse?
E, assim, começaram a conversar. Apesar de todos os temores de Bela, o jantar foi agradável; e, às nove horas em ponto, a Fera se retirou.
– Por favor, fique à vontade para fazer o que quiser, exceto sair deste terreno. Amanhã, gostaria de jantar novamente. O que acha?
– Será um prazer – ela respondeu. Não que tivesse escolha.
Os dias passaram e, apesar de tudo, eles se mostraram bastante divertidos; como Bela ainda estava na idade de ir para a escola, um robô tutor viera lhe ensinar o que faltava – o que foi bem melhor do que a turma de atrasados com a qual tinha de lidar todos os dias. Naquela velocidade, achava que acabaria o ensino médio ainda naquele ano! À tarde, ela ficava livre para fazer o que quisesse, e estava devorando os livros da biblioteca. À noite, as conversas interessantes com o tal de Belon, cujos conhecimentos eram vastíssimos e sabia falar de absolutamente tudo.
– Você criou estes robôs?
– Sim, cada um deles – ele respondeu.
– Inacreditável!
Certo dia, ela decidiu; estava curiosa demais, precisava saber como era o homem que a havia basicamente sequestrado.
– Belon, por que você não se aproxima? Estou curiosa. Nunca vi você de verdade.
– Você não vai gostar do que vai ver.
– Ah, depois de todo este tempo que estou aqui?
– Mesmo assim.
– As aparências não são tão importantes, assim.
– São, sim! – urrou ele, do outro lado. E, com isso, sumiu da sala.
Ele ficou alguns dias sem dar sinal de vida e Bela começou a ficar preocupada; tinha irritado o bilionário! Certamente, ele pensaria em alguma forma de dar o troco. Ela nunca sairia viva daquele lugar!
Porém, para sua surpresa, quando foi jantar uma semana depois, a mesa estava posta para duas pessoas – e o prato não estava no outro extremo da mesa, mas logo ao seu lado!
– C3PO… – era assim que ela tinha batizado o robô, que não tinha nome até então.
– Sim.
– Isso quer dizer que o Belon vem jantar?
– Sim.
– E vai ficar tão perto, assim?
– Creio que sim.
Ela ficou sentada, ansiosa, torcendo os dedos enquanto esperava o homem chegar. O tempo parecia congelado, e a comida, do jeito que ia, logo também esfriaria.
– Gostaria de mais um copo de água? – questionou o robô à sua direita.
– Acho que sim.
– Boa noite – disse uma voz, quase como de um apresentador de jornal noturno.
Ela deu um gritinho.
– Belon! Que susto! Você apareceu do nada!
Bela não sabia se deveria se virar para encará-lo ou não; continuava olhando para a segurança do robô, que se afastava para a cozinha, a fim de pegar a água para reabastecer.
– Perdão, não queria assustá-la.
Ela se virou lentamente; era aquele o momento. Finalmente, iria ver a Fera como ela era! Aprumou-se na cadeira, virou lentamente o rosto e…
Uma máscara!
Ele estava usando uma máscara, como a de um filme! Só havia um pedaço aberto, bem na altura da boca, provavelmente por onde ele poderia comer, e os buracos dos olhos que, como ela podia ver, era azuis claros.
Ele não podia ser tão feio assim; ela crescera no Brasil, e a regra lá era clara: não havia pessoas feias com olhos claros, isso era impossível!
– Quando vi este prato aqui, eu achei…
– Eu estive pensando – ele começou. – Sobre o que falou. Beleza, de fato, não é a coisa mais importante do mundo. Mas eu preciso que você me prove isso.
– Tudo bem. Tire essa máscara, então.
– Não agora. Você vai perder o apetite.
– Ah, vá. Não é possível. O que aconteceu com você? Um acidente terrível? Queimaduras? Caiu em uma piscina de ácido?
– Antes fosse! Meu sofrimento seria menor!
Ele apertou um botão; logo à frente deles, do teto, desceu um telão, e um projetor começou a mostrar fotos de um álbum de uma rede social.
Bela reconheceu os olhos.
– Este era eu – começou ele.
Belon era simplesmente… Maravilhoso. Definitivamente, a pessoa mais linda que Bela já havia visto. Um rosto perfeito, nariz perfeito, olhos, boca… Parecia um modelo estrangeiro. E ele sabia disso; ostentava títulos e mais títulos de concursos de beleza.
– Esta era a minha vida. Eu era lindo, rico e inteligente. Tinha tudo que uma pessoa poderia querer. Até que…
– Não vai me dizer que uma bruxa enfeitiçou você, por ser arrogante demais, e o prendeu neste castelo!
Ele a encarou por alguns momentos. Ela não conseguia ver ao certo sua impressão.
– É claro que não! Eu fui o culpado da minha derrocada…
Ela podia ver que seus olhos marejaram sob a máscara.
– Eu achei que poderia ficar cada vez mais bonito e comecei a fazer… Procedimentos.
– Procedimentos? Não vai me dizer que…
– Sim! Sim! – ele exclamou, exasperado. – Eu recorri a… – ele engoliu em seco. Não conseguia prosseguir.
– Charlatães?
– Sim… – ele falou, absolutamente derrotado. Sua postura se desmanchou, e ele desmoronou, apoiando os cotovelos nos joelhos e abaixando a cabeça. – Harmonização facial, toxina botulínica, preenchimentos, medicamentos para evitar quedas de cabelos e tudo o mais que você possa imaginar… Eu fui ficando progressivamente tão feio, mas tão feio, que ninguém mais queria falar comigo, ninguém mais suportava me ver! Os jornais só falavam disso, como podia alguém como eu arruinar tudo. E, assim, eu me isolei na minha mansão e me dediquei às minhas invenções.
Bela observou o cocuruto do homem, que aparecia por sob a máscara; o medicamento havia, ao menos, tido efeito, pois não havia qualquer falha de cabelos ali.
– Mas, eu não entendi, por que aquela história de ameaçar meu pai? Você não deixou ele entrar na sua mansão?
– Deixei. Eu só queria… – ele suspirou. – Uma pequena demonstração de poder. Só isso. É o pouco que me resta. Não tem graça mandar em robôs, eles sempre obedecem.
Bela balançou a cabeça. Homens. Todos iguais.
– Mas, por que então você quis que eu viesse ficar aqui?
A Fera ergueu a cabeça, olhando-a pela máscara.
– Seu interesse pelo livro… Eu queria companhia, só isso.
– Você não pensou em nada…
– Não! Nunca! Eu juro! – disse ele, pondo a mão no coração. – O tratamento teve uns outros efeitos colaterais que eu nem te conto.
Ela torceu o nariz, mas se controlou para não fazer alguma expressão facial que irritasse o homem.
– Você sabe que você não precisava disso tudo para fazer uma amizade.
– Você fala isso porque nunca me viu de verdade.
– Você é uma pessoa incrível. Aparência não importa.
– É claro que importa! Veja isso! Eu tinha mais de cinquenta milhões de seguidores! Eu estava indo numa onda, já, já ia ficar mais popular que a Kim Kardashian! Mas, veja agora. Agora, eu tenho… 5.000. Ninguém quer saber de um cara inteligente, mas feio igual a um demônio da Tasmânia.
– Olha, não é possível que…
– É, sim! – exclamou ele e, num arroubo de fúria, arrancou sua máscara.
Bela o encarou, aterrorizada. Ele estava certo; aquela imagem ficaria gravada em sua retina pela eternidade; ela seria assombrada por sua feiura toda vez que fechasse os olhos!
Ainda bem que não tinha jantado, ou poria tudo para fora.
– Meu Deus do céu – foi tudo o que pôde dizer.
– Eu disse! Eu disse! Eu sou insuportável! O ser mais horroroso do planeta!
– Não, não é isso – ela falou. – O problema é que… Você está parecendo uma versão humana do Ken da Barbie!
– Com uns pelos a mais, né?
– É, tem alguns crescendo nos lugares errados, isso é fato, mas nada que uma depilação não resolva.
– Eu já tentei de tudo! Tudo! Não tem o que fazer. Não tem! É o meu fim! O meu fim!
– Belon – disse ela, pegando a sua mão e reunindo toda a coragem que lhe restava. Ao encará-lo, tentava imaginar aqueles cachorros horrorosos que, de tão feios, mas tão feios, ficavam até bonitos, só que isso era mais fácil de aplicar em cachorros do que em humanos. – Eu tenho certeza de que você é inteligente o suficiente para criar algo como uma máscara artificial, feita toda de tecnologia para cobrir o seu rosto de forma natural…
– É isso! Essa é a solução! Eu sabia que estava certo em trazer você para meu castelo.
– Mas o mundo já está cheio de máscaras – ela prosseguiu, inexorável. – O mundo deve ver como você é. O que deu certo e o que deu errado. Leve ao mundo suas invenções. Mostre-se como você é. Se você era o homem mais lindo do mundo, bem, agora, você é o mais feio, mas ainda é o melhor nisso! Mude o seu mindset!
– Você andou lendo minha sessão de coaching? – ele questionou.
– Foi culpa das sugestões do C3PO. Desculpe.
Ele bufou.
– Mas, estou falando sério. Hoje em dia, as pessoas querem a realidade, por mais dolorosa que ela seja! Ninguém quer mais seres perfeitinhos da internet!
– Não, isso é mentira. Eles querem uma ilusão! Uma ilusão de perfeição! Elas querem ser enganadas, manipuladas! Elas querem achar que a vida delas é um lixo, enquanto pessoas desfilam vidas perfeitas nas redes sociais!
– Quebre isso! Quebre o ciclo! Saia da caverna e mostre às pessoas o que há no mundo fora das sombras!
– Caraca, isso foi profundo!
– Tinha um livro de Platão lá no meio.
– Ah, tá.
Ele cofiou a barba defeituosa, que era uma continuação bizarra dos pelos do peito, crescendo em direções totalmente aleatórias.
– Pode ser que… É. Talvez.
Ele se levantou, com as mãos para trás do corpo.
– Vou pensar nisso. Por favor, termine o jantar.
– Você não vai comer?
– Estou entretido demais com essa ideia para ter fome.
E saiu do salão; Bela respirou aliviada.
– C3PO, por favor.
– Sim, senhorita.
– Me mostre uns videozinhos de cachorrinhos fofinhos. Quero ver se consigo recuperar o apetite.
– Mas é claro, senhorita.
Ela sorriu; não tinha nada que fizesse mais sucesso que cachorrinhos fofinhos.
O tempo passou e Belon começou a ganhar espaço na internet como “O homem mais feio do mundo”. Bem, espaço, mais ou menos; ele nunca conseguiu chegar aos seus 50 milhões de seguidores que tinha antes e ficou feliz com seus 15 mil. De fato, as pessoas realmente queriam ser enganadas e ninguém ligava muito para a alegoria de Platão. Que sair das sombras, o quê? Para que, se iriam só ver coisas feias no mundo real?
Mas, do convívio entre os dois, Bela acabou estimulando Belon a investir em outras coisas; sua mais nova empreitada era, agora, tentar levar a civilização humana para outros planetas. Dinheiro e inventividade ele tinha de sobra; e, com a dica da depilação e um pouco de tempo para os efeitos das harmonizações passarem, até que as pessoas pararam de querer vomitar quando o viam por aí.
Muitos de vocês, leitores, provavelmente estavam shippando Bela com a Fera, mas, gente, é claro que isso não ia dar certo. Ela era muito nova, e ele, muito velho; ela prosseguiu com seus estudos, formou-se e se tornou CEO de uma das várias empresas de Belon. Depois, constituiu família e é uma pessoa muito feliz atualmente. Conseguiu ajudar seu pai e seus irmãos e hoje guarda com carinho o livro que causara toda esta mudança em sua vida. Que, por sinal, é o primeiro livro que irá para Marte, quando der certo o plano deles de colonizar o Sistema Solar.
Que coisa louca, não? Mas, assim é a vida. E, se eu puder deixar uma moral dessa história, é: fuja de charlatães. Ah, e, também, de preferência, não entre em mansões se elas abrirem seus portões em dias tempestuosos. Sério, não tem como isso dar certo. Nenhuma das duas coisas.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais