Da Madrasta Má e Tirana e da Exploração Infantil
Era uma vez, em uma pequena casa da Zona Leste, uma singela família de pessoas muito felizes. Havia o pai, já em seus cinquenta anos, que todo dia ia trabalhar de metrô do outro lado da cidade, a mãe, de mesma idade, que ficava em casa todos os dias e não só fazia tudo para os seus filhinhos como lhes dava biscoitos todos os dias, e João, Maria e Zenilde, os três filhos amados, que iam para a escola todos os dias.
Eles viviam muito felizes, na mais completa paz, naqueles moldes dos anos cinquenta, no qual o pai traz o dinheiro, a mãe mantém a casa em ordem e os filhos bagunçam tudo quando não estão na escola.
Entretanto, um dia, a mamãe teve um ataque do coração fulminante e morreu, por não tomar as estatinas que o seu médico sempre lhe recomendava, mas ela sempre desobedecia, e por não controlar a sua diabetes (ele tinha avisado que fazer biscoito todo dia ia dar ruim). Por causa disso, as crianças ficaram sozinhas por um tempo, tendo de cuidar de toda a casa; João varria, passava pano e lustrava os móveis, Maria lavava a louça e as roupas, e Zenilde passava e cozinhava, levando seu ursinho de pelúcia para todos os lados.
Depois de um tempinho, o pai, cansado de ficar sozinho, conheceu uma moça no seu escritório, com menos da metade da idade dele, e em pouco tempo, ambos estavam casados, felizes e contentes.
Por um mês, estava tudo bem, com a nova mamãe, apesar de trabalhando, contorcendo-se para fazer tudo para os filhinhos postiços. No entanto, quando chegou dezembro e o pai viu todas as contas que tinha para pagar, morreu de desgosto. Os médicos disseram que foi uma úlcera que rompeu, mas enfim, o que importa é que, dois dias depois, ele estava embaixo da terra e as crianças e a nova viúva nova estavam vestidos de preto, sob guarda-chuvas, enfrentando o temporal característico de enterros tristes que preconizam um futuro sombrio.
Assim que voltaram para casa, a madrasta má se tornou uma verdadeira tirana; pegou todo o dinheiro que recebera do seguro de vida e transferiu para a sua conta; os outros 50% do valor total, contudo, ficaram em uma conta para os filhos em que ninguém poderia mexer até a maioridade da mais velha, Maria. Aproveitou o dinheiro para se encher de joias e roupas dos mais diversos tipos e viver do bom e do melhor; largou o emprego e ficava o dia inteiro em casa, em um divã, cada dia trazendo um homem diferente para passar a noite. E, quanto aos filhos, colocou-os como empregados domésticos.
Sem lhes dar biscoitos.
O dia inteiro ela lhes pedia coisas, como comida, uma almofada, um copo d’água, virar a página do livro, mudar de canal (ela jogara fora o controle especialmente para isso), comprar o novo DVD do Chaves…
– Mais a gente num tem dinheiro pra isso! – exclamaram eles, inconformados.
– Então se virem pra consegui! Ceis têm dois dia!
Zenilde, então, começou a chorar, segurando o seu ursinho.
– E podi largá esse ursinho! Quantos anos cê tem, ô garota! – reclamou a madrasta, agarrando o bicho e arremessando-o pela janela.
As pobres crianças, então, foram para o lado de fora da casa, sentaram-se na escada de entrada dela e ficaram esperando algum milagre, como o dinheiro (ou o DVD) cair do céu ou algo do gênero.
Tudo que eles conseguiram, porém, foi um varredor de rua que parou ao ver Zenilde chorando.
– Qui qui aconteceu, minha fia?
– Eu perdi meu ursinhu…
– Essi aqui?
Ele lhe entregou o ursinho que achara caído no chão, enquanto varria a calçada, e a garota o abraçou como louca, chorando de felicidade.
– Mais o qui aconteci, puquê voceis tão tão tristis dimais assim?
Eles lhe contaram a história, então, e o varredor de rua, enquanto enrolava seus bigodes brancos, falou que, quando eles menos esperassem, alguém apareceria para lhes ajudar.
As crianças, então, voltaram para casa e continuaram arrumando a casa, cantando “Yo-ho-ho, ho!”.
Quando a madrasta tirana estava fora de casa, um homem bateu à porta deles, vestindo um terno e carregando uma maleta. Ele se apresentou, dizendo que era um advogado, e que o varredor de rua falara com ele, e que ele iria ajudá-los. Assim, toda noite o homem voltava para a casa deles para falarem sobre o processo e, depois de um tempo, os filhos entraram com uma ação contra a madrasta, acusando-a de exploração infantil, trabalho escravo e dezenas de outras coisas que elas não entendiam.
Ela ficou inconformada com aquilo e expulsou as crianças de casa; estavam os três, então, mais uma vez à escada, quando o varredor de rua novamente apareceu. Eles lhe contaram a história e ele, tocado no fundo de seu coração, disse que eles poderiam ficar em sua casa, sem problemas.
Depois de dois meses de julgamento (sim, é uma história de contos de fadas, até os julgamentos vão rápido), os garotos saíram vitoriosos; todo o dinheiro e a casa do pai foram passados para ele, muito embora não pudessem acessar a conta até a maioridade da mais velha, e a madrasta foi presa por exploração infantil e tantas outras queixas mais. E, quando o advogado foi lhes cumprimentar, torceu o bigode branco de um jeito inconfundível.
– Você é o varredor de rua! – exclamaram.
Ele concordou e as abraçou, e todos voltaram para a casa do varredor, felizes para sempre.
De dentro da cadeia, porém, a madrasta berrava: Eu vou me vingar!
Nota do autor, setembro de 2021: eu não me lembro exatamente de onde veio esta ideia, mas acho que tem um quezinho de revolta adolescente de quando minha mãe me mandava arrumar algumas coisas da casa! Rsrsrsrs Não era mais do que a minha obrigação, afinal, eu também morava na casa e não era nenhuma criança, maaaaaassss…. Enfim, a ideia destas crônicas, assim como todas as outras dos Contos de Fadas Modernos (ou Urbanos) é trazer este contexto de contos de fadas para a nossa época, com estas histórias sem pé nem cabeça, mas na nossa realidade. Eu devo dizer que adoro essa coleção!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais