Data de validade
– E então, doutor, é grave? – em sua simples pergunta, podia-se sentir tudo. A ansiedade, a esperança e o pesar.
– Infelizmente, sim – o médico respondeu, balançando a cabeça.
– E não há nada que possamos fazer?
Uma negativa.
– Nem tentar o pneumotórax?
O médico sorriu.
– Agora, só um tango argentino.
Piada clássica para dois letrados, amigos de longa data, como eles eram.
– E… Quanto tempo eu tenho de vida?
– Na melhor das hipóteses, seis meses. Nunca vi ninguém durar mais do que isso.
O homem respirou fundo.
– E como será minha morte?
– Provavelmente, fulminante.
– E nada de ficar acamado antes disso?
– Não. Sua saúde será praticamente perfeita até o dia de sua morte.
O homem pensou um pouco.
– Está certo. Seis meses. Em 25 de junho, então, estarei morto.
O outro assentiu.
– Sinta-se convidado para o funeral desde já, doutor – ele respondeu, levantando-se e pegando seu casaco do encosto da cadeira.
– Sem dúvida, estarei lá.
E saiu do consultório.
Seis meses… O que faria ele com seis meses de vida? O que se poderia fazer com tão pouco tempo assim? Em seis meses, não poderia fazer nada. Nem mesmo um filho para sucedê-lo conseguiria.
Por outro lado, seis meses poderiam ser também bastante tempo. Poderia considerar como férias bastante longas. O que não poderia fazer nelas? As possibilidades eram inúmeras. Poderia conhecer todos os países do mundo que até então nunca conhecera. Poderia viver sem ter de se preocupar com o dia seguinte. Não tinha para quem deixar suas coisas; não tinha esposa, nem filhos. Os pais já estavam mortos havia anos. Seus amigos eram todos do serviço e um ou outro de infância, mas, na realidade, devia alguma coisa a eles? No máximo, uma cerveja. Não, devia mesmo é aproveitar ao máximo o tempo que lhe restava.
Por outro lado, seis meses… Tivera tanto tempo em toda a sua vida, tanto tempo para fazer tudo o que sempre quisera, mas, ao mesmo tempo, era isto que lhe faltava: tempo. Era sempre essa desculpa. E, justamente agora que lhe faltava tão pouco, já podia sentir inveja da época em que tinha muito. Sentiu-se culpado; poderia ter feito mais. Poderia ter constituído família.
Daria tempo? Poderia constituir uma agora? Em seis meses, acharia uma esposa que o amasse? Talvez, já com filhos, ou poria um em seu ventre?
Decidiu pôr tudo em dia. Vendeu todas as suas posses – o que não foi difícil. Cobrou por tudo preço de banana, pois não era naquele momento que queria se tornar rico, e saiu a viajar pelo mundo. Foram os primeiros meses mais felizes de sua vida. Ficantes achou aos montes; umas já com filhos, outras sem, solteiras, divorciadas, viúvas e até mesmo casadas. Se de alguma delas nasceria um filho seu, não poderia dizer; mas que tentara, ah, isso tentara.
Mas logo, depois que tal regalo parou de ser novidade e começou a correr mais rápido, em vez de aproveitar o tempo que lhe restava, ele, saudosamente, começou a contá-lo. Faltavam 60 dias; depois, 59, 58… Repentinamente, só faltava um mês. E aí? Que poderia fazer? Não sabia.
Que desespero horroroso, saber quando iria morrer e não poder fazer nada para impedir!
Tentou procurar outros médicos, mas todos eram peremptórios: era uma doença grave. Não podiam estimar quanto tempo lhe restava, mas, nos estudos, pacientes em geral não duravam muito, não.
Faltavam duas semanas. Decidiu gastar tudo o que lhe restara em um hotel 5 estrelas; fez festas todas as noites. Não parou um segundo; pouco lhe restava de vida, e não queria saber de dormir, pois era o que logo estaria fazendo.
Faltava uma semana; bateu aquele desespero, aquela depressão.
– Meu Deus, por favor! Só mais um ano! Um ano de vida!
Prometeu que melhoraria, que ajudaria os pobres, que assumiria a paternidade de todos os filhos recém concebidos.
Ficou de cama; não sabia o que fazer. No hotel, os funcionários ficaram preocupados. Em sua mente, só rodava a seguinte pergunta: E se…?
O relógio diante da cama tornou-se um martírio; em um ímpeto de desespero, arrancou-o da parede e o jogou pela janela. Deu-lhe certo alívio, mas não levou mais do que cinco minutos para ligar para a recepção e solicitar um novo.
O dia penúltimo chegou; como uma alma penada, ele caminhou até o restaurante e comeu por obrigação. Passou o dia pensando em como seria o depois. Iria para o Céu? Para o Inferno? Para o Limbo? Ou simplesmente cairia tudo no esquecimento?
Em um ímpeto, decidiu que iria mudar tudo; que iria deste mundo como um combatente, não como um combatido; sairia a andar por toda Paris, viver seus últimos instantes de vida.
Seu ímpeto, contudo, logo esmoreceu, e ele ficou em sua cama, sem conseguir fazer nada da vida. Que horas morreria? Ao bater da meia noite? Pela madrugada? Ou depois do almoço?
Quando deu por si, já era o dia seguinte, onze horas da manhã, mas ainda não havia morrido. Foi o dia mais angustiante de sua vida. A qualquer momento, agora, repetia incessantemente para si mesmo.
Desceu para a recepção e fez o checaute; deixou tudo acertado para o dia seguinte. Não queria ser um estorvo para ninguém.
Quando chegou a noite, o desespero foi ainda maior; tinha seis horas de vida, apenas. Ou menos, não tinha certeza. A ansiedade, porém, era demais para ele suportar, e decidiu por uma solução pouco heroica: tomaria um sonífero, daqueles bem fortes. Iria dormindo, sem sofrer com a ansiedade do momento que não chegava.
Porém… E se ele morresse no meio do caminho, antes mesmo de conseguir comprar o sonífero? Faria o quê?
Morto por morto, como o médico prometera, não iria sofrer. Era melhor, então, ao menos ocupar sua mente com a perspectiva de dormir durante sua morte, do que passar as próximas horas encucado com isso.
Desceu, perguntou onde era a farmácia mais próxima e foi caminhando. O farmacêutico lhe perguntou quanto queria; o mínimo que ele pudesse vender, ele respondeu. Só precisaria para aquela noite.
Foi saindo da farmácia com o pacotinho com quatorze comprimidos na mão que viu uma cena que nunca antes presenciara: uma senhorinha sendo assaltada. Um homem lhe apontava uma faca e puxava a sua bolsa; a velhinha gritava.
Ele não pensou muito; morto por morto, não corria qualquer risco naquele momento. Poderia até passar por morto como um herói, ao invés de um rato! Correu para lá, gritando:
– Largue essa faca e solte essa senhora!
O ladrão o encarou assustado, e o homem vinha com tanto ímpeto, que ele achou mais seguro abandonar o assalto e fugir. Deixando a bolsa, ele correu pelo beco escuro; a senhorinha agradeceu imensamente, ofereceu-lhe bolo e café em sua casa, mas ele teve medo de morrer na sua mesa, afundar a cara no prato e causar ainda mais trabalho para a senhora, e preferiu voltar para seu quarto de hotel, sentindo-se quase um batimam.
Deitado novamente em sua cama, ainda faltavam quatro horas; girava os comprimidos em suas mãos, pensando: realmente, já fizera de tudo. Poderia ir satisfeito. Mas, depois do seu ato heroico, aguentaria ficar acordado até a hora chegar? Ou tornar-se-ia novamente um rato?
Observou o relógio; o ponteiro nunca parecera levar tanto tempo para dar um minuto. Era a hora, definitivamente.
Tomou um; não funcionou. Depois tomou outro, e mais um; meia hora se passou, e nada. Deste jeito, morreria e não teria dormido, ainda! Desesperado com a perspectiva, pegou todos os outros onze comprimidos, colocou-os na palma das mãos, encheu um copo de água e tomou tudo de uma vez.
Não levou mais do que quinze minutos, e estava dormindo.
Gostaria de poder dizer que ele foi encontrado morto algumas horas depois, e que ninguém saberia afirmar se fora por causa de morte natural ou por sobredose de soníferos. A vida, contudo, queria pregar-lhe ainda mais uma peça.
Abriu os olhos; estava deitado em uma cama de hospital, com o avental branco e os alvos lençóis. Diante de si, havia um homem de jaleco, parado, encarando-o com as mãos nos bolsos.
– Estou morto?
– Não – o médico respondeu. – Ainda não.
– O que aconteceu? Que dia é hoje? – ele indagou, excitado, sentando-se na cama.
– Você tomou soníferos demais e está dormindo nesta cama há três dias.
O homem limpou os olhos, para enxergar melhor, e identificou o médico como aquele que predissera sua morte.
– Mas, doutor, eu não entendo! Eu não deveria estar morto?
– Aparentemente… – ele riu. – Eu errei.
– Mas… E agora? E a minha doença fulminante?
– Sumiu.
– E isso significa que…
– Eu não posso lhe dizer quando você vai morrer.
O homem ficou alguns segundos parado, olhando sem foco para os lençóis, absorvendo a imensidão daquela frase. Vivera os últimos seis meses sabendo o dia que morreria. Como poderia agora viver sem sabê-lo? Como poderia planejar sua vida sem saber quando acabaria?
Era angústia demais para uma pessoa só.
– Não, doutor! – ele implorou, puxando suas vestes. – Por favor, me diga o dia que vou morrer! Por favor!
– Não posso – ele respondeu. – Agora, com licença, tenho outros pacientes para ver.
E saiu do quarto.
E agora? O que ele faria de sua vida depois daquilo? Como poderia continuar, correndo o risco de morrer a qualquer minuto?
Ironicamente, depois de tudo isso, preferia que sua data de validade já tivesse expirado.
Nota do autor, setembro de 2021: e você, o que acha? É mais angustiante saber em que dia morrerá, ou não saber? O que faria, se soubesse?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais