Franquias Natalinas
Certo dia, Mamãe Noel foi receber o carteiro, e lá estava ela: mais uma carta direcionada para o seu marido. O remetente? Bem…
– Aí está, Noel, aí está! Mais uma!
– O que foi agora? – ele perguntou; estava sentado em sua poltrona natalina, onde cofiava a barba, quebrando a cabeça para conseguir entregar todos os presentes que teria naquele ano.
– Mais uma pessoa está processando você!
– Ai, minhas santas renas! Qual o motivo, agora?
– Parece que… Você deu um presente errado para um garoto.
– O que foi, exatamente?
Ele puxou a carta, colocou seus pequenos óculos na ponta do nariz e começou a ler.
– Puxa, vida! Eu troquei os nomes!
– Pois é…
– E o pai tinha que me processar só por causa disso?
– Você deu quinze dançarinas de cabaré para uma criança de cinco anos! – exclamou a Mamãe Noel.
– A culpa é minha se eles têm nomes praticamente iguais?
– Assim não dá, Noel! A gente vai à falência desse jeito. Não há royalties que paguem tantos processos!
– E o que você quer que eu faça?
– Eu já falei pra você. Faça uma consultoria com o Sebrae!
Ele resmungou um pouco, só para afirmar o seu ponto, mas, depois de alguns minutos, foi obrigado a concordar. Era o vigésimo processo daquele ano, e não tinham sequer chegado a fevereiro!
Por fim, Papai Noel cedeu, e um conselheiro de pequenas empresas foi fazer uma auditoria e ajudá-lo no que fosse possível.
– Você tem um sistema muito atrasado de registro de informações – disse o consultor.
– É, eu sei.
– Não é à-toa que você tem errado tanto!
– Não diga que é culpa da minha velhice! – exclamou o bom velhinho de volta. – É que antes, eram poucas crianças no mundo. Agora, vejam só, são mais de dois bilhões! Ainda resolveram aumentar o tempo da adolescência, e tem marmanjo dizendo que é criança, ainda!
– Eu sei, seu Noel, eu sei.
– É natural se confundir de vez em quando, não é?
– Com certeza. Por isso que você tem de investir em tecnologia. Chega de listas feitas a mão. A partir de agora, vai ser tudo informatizado.
– Certo.
– Cada pessoa vai ter um código, um QR-Code, e você vai colocar um destes no presente, também. Você vai ter registrado no seu servidor, aqui no polo norte, todas as informações a respeito da criança. Tudo o que ela recebeu nos últimos anos.
– Posso marcar também se ela foi uma boa criança?
– Pode, mas tome cuidado. Espionagem é crime.
– Ora! Mas eu…
– Pensando bem, melhor não marcar.
– E como eu vou poder diferenciar?
– Em épocas de boa vizinhança e politicamente correto, seu Noel, o mais seguro para evitar processos é dar presentes para todo mundo.
– Está falando sério?
– Totalmente – respondeu o consultor, bem sisudo.
– Mas… Como as crianças más vão saber que estão erradas? Quer dizer, se todo mundo ganhar presente…
– É melhor assim. Deixe a educação para os pais, para os professores, para o governo, para quem você quiser. O seu papel é entregar presentes, não educar crianças. Muitas empresas faliram, porque resolveram abraçar mais do que conseguiam.
– Ho, ho, ho – ele gargalhou, deprimido.
– Aliás, aproveitando a Lei Geral de Proteção de Dados, é melhor você sempre entregar um termo para eles assinarem. Pode ser por e-mail, você envia para os pais, pedindo para eles aprovarem a coleta de dados importantes, como endereço, idade, sexo, etc etc. Nada de processos por obtenção ilegal de dados.
– Ok… – choramingou o bom velhinho.
– Agora, vamos falar do seu sistema de entrega…
– Não venha me falar do meu sistema de entrega! Eu faço isso há dois séculos e nunca faltei com sequer um presente!
– Eu sei – o consultor falou. – Só que você gasta muito tempo fazendo desvios desnecessários. Além disso, em determinadas altitudes, você põe os aviões e helicópteros em perigo. Então, eu tracei uma rota aqui…
– Não acredito que você vai mudar até a minha rota!
– Com ela, você vai diminuir o seu tempo de entrega…
– Rudolph faz ela até de olhos fechados! Faz duzentos anos!!!
– Seu Noel, o senhor quer continuar recebendo processos por atrasos na entrega?
– É o horário de verão. Isso é o que me deixa louco. E as crianças que não vão dormir na hora certa… – Ele suspirou. – Está bem.
– Muito bom. Veja aqui o itinerário. Vamos reduzir o seu tempo de entrega em 25%. Nada mais de atraso.
– Mas a primeira criança vai receber o presente às dez e meia? Isso acaba com a graça!
– Não podemos fazer nada. O mundo está cada vez mais habitado, não é fácil estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
– Não, não, isso eu não aceito!
– Pois bem. Tenho outra opção.
– Qual?
– Abrir uma franquia.
– Acuma?
– Franquia. Dezenas, centenas de casas do Papai Noel espalhadas pelo mundo, com representantes regionais que possam receber os pedidos de presentes, produzi-los, embrulhá-los e entregá-los, sempre com precisão e exatidão. E, por sinal, chega de cartas; os pedidos serão feitos online, nos seus sites específicos. E, além disso, chega de dificuldades; você não vai mais precisar saber todas as línguas do mundo.
– Mas eu gosto de saber!
– Bom, você pode continuar sabendo, mas cada franqueado vai ser responsável pelas línguas locais. Sem mais erros ou enganos por causa de traduções feitas às pressas.
– Mas isso só aconteceu duas vezes!
– E as duas lhe custaram vários processos.
– Só porque Kuh em alemão quer dizer vaca, e não… Ah, está bem…
– Podemos traçar uma estratégia sobre as franquias? – indagou o consultor.
– Continue pensando no resto. Depois voltamos a falar das franquias.
– Está bem, seu Noel. Agora… – ele falou, aproximando a cadeira e começando a sussurrar. – Vamos falar dos seus funcionários.
– O que tem os meus duendes?
– Vamos começar por aí, mesmo. Você não pode mais chamá-los de duendes.
– Mas eles são duendes!
– Tecnicamente, sim, mas… O politicamente correto é Seres Mágicos de Baixa Estatura. SEMBES, na sigla.
– SEMBES?
– Isso.
– Que nome ridículo.
– Pois é… – disse o outro, factualmente. – Agora, vamos falar do regime de contratação deles.
– Como é?
– Contratação. Eles têm carteira assinada? São Cê-Ele-Tistas? Ou são contratos esporádicos apenas para as festas?
– Não, os meus duendes… Quer dizer, SEMBES… Eles sempre trabalharam de graça.
– Mas eles têm um contrato de trabalho voluntário?
– Não tem contrato nenhum!!!
– Então, isso é escravidão, seu Noel. Precisamos dar um jeito nisso, e um jeito rápido. Vamos fazer um contrato retroativo de trabalho voluntário… – ele falou. – E, já que vamos trabalhar com franquia, um contrato novo com registro em carteira, décimo terceiro, fundo de garantia, INSS, adicional de insalubridade, auxílio distância, cesta básica, convênio médico e férias remuneradas.
– E de onde eu vou tirar dinheiro para pagar tudo isso?! – interroclamou o bom velhinho, que já estava suando frio.
– Ora, dos seus franqueados. Aliás, acho que seria interessante o senhor considerar que, uma vez dono das franquias, não terá mais de entregar presente nenhum.
– Mas isso é o que eu mais gosto de fazer!
– É melhor não. E é melhor parar de pegar os biscoitos também, porque tivemos três boletins de ocorrência por furto de alimentos nos últimos anos.
– Isso não está acontecendo… Está tudo girando…
– Seu Noel! Seu Noel!!!
Papai Noel acordou alguns dias depois, em uma cama de hospital. Pelo que sua esposa lhe contou, tinha sofrido múltiplos infartos, complicados pelo excesso de peso, pressão alta e diabetes que tinha adquirido ao longo do tempo.
– O médico falou para você não fazer esforço por algum tempo. E começar uma dieta, com exercícios físicos monitorados assim que ele liberar.
– Mas… As crianças gostam de mim assim, gorducho e rechonchudo! Não vou ter o mesmo impacto se for magro e atlético!
– Noel, acho que está na hora de a gente conversar… – disse a Mamãe Noel.
Tudo isso aconteceu alguns anos atrás. Atualmente, Papai Noel está muito bem, obrigado, em uma praia caribenha. Aparou a barba, perdeu barriga, está bastante atlético e virou mestre do surfe. Enquanto isso, pelo mundo afora, centenas de franquias de papais noéis funcionam a todo vapor, preparando tudo para entregar, com a mesma perfeição e exatidão, presentes para todas as crianças do mundo, completando a obra que ele vem fazendo há 200 anos.
Talvez isso explique por que nem todo mundo vê o mesmo Papai Noel; por que alguns são mais altos, outros mais baixos, uns mais gordos, outros mais magros, alguns até com cara de mais novos.
Alguns estão até considerando fazer um sistema de entrega pelos correios, para facilitar a coisa. Mas eu acho que vai perder o charme.
Nota do autor, outubro de 2021: não gosto de histórias natalinas e, justamente por isso, quis fazer uma história natalina nem um pouco natalina. Ah, nada como imaginar um papai Noel fazendo consultoria porque estava sendo processado! E o melhor: agora ele é um surfista. Bom demais.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais