Gaspar, o fantasminha burocrata
Certo dia, como todos nós devemos fazer em algum momento da nossa vida, Gaspar morreu. O motivo de sua morte não é relevante neste momento; o que importa é o que ele foi fazer logo após.
Despertada de seu sono que chamamos de vida, a alma de Gaspar seguiu para a sua vida de verdade, que nós chamamos de pós-morte. Livre do peso morto (literalmente) de um corpo, ela se espreguiçou e, vendo uma luz, imediatamente a seguiu – porque era a única coisa que fazia sentido, não era?
Do outro lado da luz, havia uma porta e, depois da porta, um grande salão, repleto de outras pessoas, como Gaspar (assim intitularemos sua alma também, por falta de nome melhor), porém translúcidas e das mais diversas cores. Ao observar suas mãos, por sinal, Gaspar notou que eram de um verde ácido, quase como um marca-texto, o que lhe desgostou, e muito – afinal, não era palmeirense, mas, sim, corintiano!
Ironias do pós-vida à parte, ele olhou para o que tinha diante de si: uma bela e muito organizada fila. O totem ao seu lado era bem claro: “Retire a senha e aguarde na fila”, dizia, em letras que constantemente mudavam, provavelmente com todas as línguas do mundo, para atender a todas as pessoas que morriam todo santo dia.
Uma alma grandona o empurrou, pegou uma senha e avançou na sua frente; outras vieram atrás e, antes que fosse passado por uma multidão, Gaspar pegou a sua e entrou na fila interminável.
Era enorme! Parecia serpentear pela eternidade e andava a passo de tartaruga. Gaspar, assim, teve esperar; se havia uma coisa que tinha de sobra, era tempo, então, para que a pressa?
O tempo passou; ele não fazia ideia de quanto. Sem relógio, sem celular, sem nada que lhe indicasse o tempo, tudo o que podia fazer era imaginar quanto havia se passado. Atrás de si, a fila aumentava, embora ele basicamente não tivesse se movido de todo – ela simplesmente ia se alongando, e o totem com senhas ia embora também.
Virou-se para uma senhorinha que estava logo atrás dele; pelo jeito, eles não tinham atendimento preferencial. Talvez, quando morressem, todos perdessem as preferências.
– Onde estamos?
– Não é a fila para receber a aposentadoria? – questionou a velhota, não em português, certamente não, mas em uma língua que ele compreendeu, a língua que todas as almas usavam para se comunicar.
– Tenho certeza de que não, porque a minha ainda está longe. Ou estava.
– É a fila do pós-vida – disse um homem que estava à sua frente, de uma cor roxa e translúcida. Apesar de ser uma alma, usava um turbante translúcido e tinha uma barba bem grande. – Os mártires têm de esperar ainda um pouco, antes de receberem seu prêmio de 72 virgens! Mas, o que é essa espera, para quem terá um harém por toda a eternidade?
– Ahm… Tá. Ok.
Achou melhor não perguntar mais detalhes, mas isso certamente explicava por que a fila tinha aumentado tanto logo atrás dele.
Depois de um tempo indeterminado, alguém passou vendendo coisas.
– Olha o refrigerante!
– Tem Coca? – perguntou Gaspar; não estava com sede, nem fome, nem sono, nem cansaço, mas puro tédio, e sentia que tomar algo ao menos ajudaria o tempo a passar.
– Temos somente Spirite de limão e Guaraná Jesus.
– Guaraná Jesus iria bem. Mas, como eu pago?
– Relaxa, a gente desconta da sua próxima encarnação.
– Então manda duas. E um pacote de Fantasmangos. É de queijo, né?
– Do mais puro gosto de chulé, como todo bom Fantasmangos.
– Ok, tá valendo.
E, segurando suas bebidas e seu salgadinhos feitos aparentemente de puro ar, Gaspar se pôs a comer. Era engraçado, porque ele se sentia mastigando e engolindo, mas a comida simplesmente desaparecia dentro de seu corpo, e ele não se sentia nem cheio, nem vazio.
Tentou fazer valer, comendo cada migalha do salgadinho como uma lentidão excruciante, mas tudo o que fez neste tempo todo foi dar três passos à frente. Quando acabou, as embalagens sumiram por conta própria (nada de lixo no pós-vida), e a fila se perdia por uma imensidão, tanto à frente, quanto atrás. Por fim, quando já estava cansado – não dava para conversar com o cara da frente, ele só falava das suas virgens, nem com a velhinha de trás, que ainda estava preocupada procurando seus documentos em uma bolsa que não trouxera –, tentou chamar o vendedor novamente.
– Mestre, onde estamos, exatamente?
– Vocês estão no limbo! – disse ele, animadamente.
– Você trabalha aqui?
– Sou apenas um vendedor ambulante.
Gaspar parou alguns momentos para pensar; se o vendedor pegava o pagamento diretamente da sua próxima encarnação, estaria ele acumulando dinheiro para a próxima? Será que ele já nasceria em berço esplêndido? Será que era esse o truque, fazer comércio no pós-vida? Talvez, fosse uma boa ideia. Bem que ele merecia nascer de novo em uma família mais rica!
– Como faço para ser um vendedor ambulante?
– Ah, não foi fácil. Tive de pedir uma licença, que demorou uma eternidade!
– Como faço para pedir a licença?
– Primeiro, você precisa passar desta fila.
Ele olhou para a serpente aparentemente infinita de pessoas e, como finalmente andou, deu um passo à frente.
– Mas, o que estou fazendo aqui exatamente?
– Quando você chegar ao final desta fila, os juízes vão decidir para onde você vai. Céu, inferno, limbo ou ficar na… No seu planeta, como um fantasma.
– Sério, mesmo? Dá para acontecer isso?
– Ah, dá, sim. Tenho vários amigos que ficaram como fantasmas.
– E essa história da reencarnação?
– Ah, isso depende do partido em que você vota.
– Como é?
– Quero dizer, a religião que segue. Você é cristão?
– Sim.
– Pfff, como a grande maioria. Enfim. Sem reencarnação para você. Só céu ou inferno. Ou fantasma.
– Ou limbo?
– Ah, dá pra dar uma choradinha no guichê e ficar por aqui para angariar dinheiro, se quiser, mas não faz muito sentido se você não vai voltar.
A alma do vendedor se aproximou dele, como se fosse contar um segredo.
– Você vê, eu sou hindu. Estou fazendo tudo certinho. Tenho certeza de que dessa vez não vou voltar como pedra, nem como dalit. Vou voltar na casta certa. Rico! Rico como um Marajá!
– Entendi…
Ele olhou em volta e deu mais um passo.
– Será que posso mudar meu partido? – murmurou.
O vendedor o olhou assustado.
– Agora? Nos segundos finais do jogo? Não, meu amigo, não dá.
– Mas, e a história de que Jesus pregou no inferno e tal?
– Funciona para mim. Você já é cristão, não rola. E Vishnu não quer novos adeptos, já tem o bastante, se é que me entende.
Gaspar bufou; estava totalmente perdido, e aquela conversa não fazia o menor sentido!
– Quanto tempo você levou na sua fila?
– Não faço ideia.
– Elas poderiam ser separadas por local da Terra, não é? Quer dizer, de onde eu vim, não tinha tanta gente assim morrendo.
– Meu amigo – disse ele, colocando sua mão etérea no ombro translúcido de Gaspar –, seria ótimo se eles restringissem essa fila somente à Terra. Mas, infelizmente, não.
Um berro lá atrás e uma garra se ergueu no ar.
– Opa, cliente! Esses caras de Blorp são ótimos, posso cobrar os olhos da cara, que eles pagam! Vou ficar rico! Rico!
E correu pela fila atrás do seu novo cliente.
Leitor(a), não vou gastar seu tempo falando do tempo infinito que Gaspar gastou na fila; pulemos direto para a parte importante, quando, finalmente, ele chegou à sua audição. Digamos apenas que isso levou tanto, mas tanto tempo, que Andrômeda já estava consideravelmente mais perto da Via Láctea quando isso aconteceu.
– Próximo! – chamou um homem de chapéu, óculos e bigodinho, de coloração azulada. Estava sentado a uma mesa, com um gigantesco livro, no qual escrevia.
– Sou eu! Gaspar Cho. Se você ler rápido, vai parecer uma bebida espanhola – falou ele, rindo de nervoso.
– Ceeeerto – disse o escrivão. Não poderia se importar menos.
Ele olhou ao redor; não conseguia ver absolutamente mais nada, além dele e do homem sentado à escrivaninha diante de si.
– Me diga uma coisa, senhor…
– Alceu Dispor – disse o escrivão. Só podia ser uma piada.
– Alceu. Certo. É sempre demorado assim?
– Estamos em operação padrão – ele respondeu, com enfado.
Ele não soube o que isso queria dizer, mas fingiu que entendeu.
– Muito bem, senhor Cho… Brasileiro, cristão, 43 anos, morto por infarto após ver os resultados das eleições, correto?
– Infelizmente. Sempre tive um coração fraco.
– Vamos avaliar isso. Fique parado um instante, por favor.
O senhor Alceu se levantou e, com um movimento rápido, enfiou a mão direita no peito de Gaspar; este teria dado um pulo, se não estivesse como se paralisado, preso ao chão. Alceu puxou sua mão, e lá estava um coração verde translúcido, pulsando.
– Muito bem, muito bem, vamos para a pesagem – ele falou.
– Pesagem?
De repente, uma balança antiga surgiu, sobre o prato da qual o escrivão colocou o coração.
– Para ver se está tudo bem?
– Não, não, meu caro, isso aqui vai definir o seu destino.
– Destino?
De repente, logo ao fundo, surgiu um ser enorme, sentado em um trono dourado. Ele se parecia muito com pinturas egípcias que Gaspar vira em um filme.
– Aquele é Osíris.
– Mas… Ele não é um deus egípcio? – questionou a pobre alma.
– Sim.
– Mas eu sou cristão!
– Sabe como é funcionário público concursado – comentou Alceu, e se aproximou para murmurar. – Nunca querem largar o osso, sabe? Vai continuar fazendo isso pela eternidade. Ele adora!
O escrivão, depois deste comentário, colocou uma pequena pena no outro prato; não fazia o menor sentido! Era óbvio que o coração seria mais pesado!
– É isso que vai definir se vou para o céu ou para o inferno?
Alceu o encarou.
– Não, não, tire essa bobagem da sua cabeça. Não serve para isso, não.
Gaspar suspirou, aliviado.
– Serve para definir se você vai prosseguir para o outro mundo, ou se vai continuar no seu planeta como um fantasma.
– Como é?
O prato com o coração afundou; ao fundo, ele pôde ver Osíris sorrindo e fazendo um “Yes!!”, comemorando com uma dancinha egípcia.
– Muito bem, mais um fantasma – disse o escrivão, sem um pingo de animação.
A balança e Osíris despareceram, e de repente sobraram apenas os dois. Alceu começou a entregar diversos papéis translúcidos para Gaspar.
– Aqui está, seu Gaspar.
– Eu não estou entendendo o que está acontecendo! – exclamou ele.
– Não se preocupe, vocês nunca entendem. Mas, quer saber o lado bom? Vai ter toda a eternidade para entender! Se é que me entende! – comentou ele, forçando uma risada e lhe dando um tapa no ombro. – É o seguinte: se você tem muito peso no seu coração, muitas coisas que o prendem ao seu planeta, você fica como se acorrentado a ele. Um fantasma, como vocês gostam de dizer. Então, aqui está o seu guia…
Gaspar olhou para um calhamaço: “Virei fantasma, e agora?”.
– Como eu faço para deixar de ser fantasma?
– Está tudo explicado no seu guia.
Gaspar o encarou com uma expressão de gato de botas, com os olhos fantasmagóricos arregalados e fofinhos; Alceu não resistiu, e era justamente por isso que a fila demorava tanto.
– Tá bom, tá bom, não dá pra recusar ajuda pra essa cara… É o seguinte, para não ser mais fantasma, você precisa se livrar de tudo o que o prende ao seu planeta. Tem algumas opções. A melhor de todas… – disse ele, entregando-lhe um panfleto. – É fazer terapia.
– Terapia?
– Exatamente. Freud ficou por aqui, depois de sua morte, ajudando as pessoas a superar o pós-vida. Jung também, mas os dois continuam não se bicando, então eu recomendo que você não mencione a existência, quer dizer, a não-existência de um para o outro.
– Ok.
– Outra opção é mudar de religião, para uma religião que não tem fantasmas – disse ele, entregando ainda outro panfleto.
Estava escrito: “Cansado da sua religião? Ela, ao contrário de você, não precisa ser eterna! Mude agora!”.
– Você também pode se tornar ateu… Charles Darwin ficou aqui para isso.
– Sério? – perguntou Gaspar, surpreso.
– Não – Alceu retrucou, rindo. – Mas Nietzsche deixou uns discípulos, caso queira.
– Não faz sentido. Tem ateus aqui instruindo pessoas a se tornarem ateias?
– É, eu sei, nada nessa coisa faz sentido, mesmo. Não tente entender, é tudo muito quântico. Ah, sim, você pode usar um coach quântico, também! – exclamou ele, entregando ainda outro panfleto.
– Ajuda?
– Não. Mas tem gente que gosta. Vende bem.
Gaspar bufou, e era como se um balão se esvaziasse, o que era muito estranho.
– Bem, tem outras pessoas que dedicam o seu pós-vida como fantasma para se vingar. Os mais irritados viram aqueles Poltergeists, sabe?
– Mas, isso ajuda?
– Na verdade, não, você acaba ficando ainda mais preso ao seu planeta. Mas eu preciso te dar todas as opções, não é?
– E como eu faço para me tornar um vendedor aqui e reencarnar, como aquele indiano que estava me vendendo coisas na fila?
– O Raj continua por aqui? – indagou Alceu, com um suspiro cansado. – Toda vez… Não, você não pode fazer isso, é ilegal.
– Mas, ele disse que conseguiu uma autorização!
– É mentira dele.
– Mas…
– Você não comprou nada dele, não é?
– Dois guaranás Jesus e um Fantasmangos.
Ele passou as mãos pelos cabelos, evidentemente exausto.
– Todo dia essa caca…
Gaspar olhou para os seus panfletos; como tudo era burocrático, até mesmo no pós-vida!
– E, quando eu conseguir deixar de ser fantasma…?
– Vamos pesar seu coração de novo e ver para onde você vai.
– Eu vou para o céu, certo?
– Isso, só a balança dirá.
– Mas, você não disse que ela servia para mostrar se eu ia prosseguir ou ficar preso?
– Ah, isso também. Mas estou falando de outra balança. A gente tem uma digital, mais moderna. Funciona melhor.
Gaspar parou.
– E se eu não for para o céu?
Alceu deu de ombros.
– Talvez seja melhor continuar como fantasma… – conjecturou o pobre e confuso Gaspar, o fantasminha burocrático.
– Tem só um único jeito de resolver tudo isso. É muito raro, mas eu sempre gosto de falar, porque, de vez em quando, acontece.
– Certo!
– Você pode voltar à vida.
– Como?
– Às vezes, enquanto você está aqui, os médicos lá no seu planeta estão tentando salvá-lo. E, aí, se der certo, você volta à vida e tem a oportunidade de corrigir esses pequenos problemas para que o seu pós-vida siga nos conformes.
Gaspar pensou por alguns instantes.
– Se isso acontecer, eu poderia mudar de religião?
– Sim.
– Escolher uma em que eu reencarne, por exemplo?
– Sim.
– Talvez virar ateu?
– Sim.
– Mas, se eu virar ateu, como vai ser o meu pós-vida?
– Você ser ateu ou não não vai mudar o fato de que você tem uma alma. Então, você só vai ficar no tanque das almas, lá no esquecimento, em silêncio, pelo resto da eternidade. Como se estivesse dormindo.
– Não parece ruim.
– Não é mesmo. Só é chato. Quer dizer, tanta coisa legal pra fazer por aqui, as festas de Baco, as batalhas das Valquírias, em breve teremos o Ragnarok, não dá pra perder, Betelgeuse está para explodir a qualquer momento…
De repente, Gaspar sentiu como se fosse um choque em seu corpo.
– O que é isso?
– Ah! Não acredito! Osíris, Osíris, volta aqui! Você não pode perder essa!
O gigante egípcio surgiu novamente, e até mesmo Anúbis, com sua cara de cão, apareceu para dar uma olhadinha. Sorrindo, os três olhavam para Gaspar, que sentia choques percorrendo todo o seu corpo.
– Afastar! – ele pôde ouvir.
Outro choque; seu peito saltou.
– Adoro quando fazem isso! – exclamaram os deuses.
E, quando deu por si, Gaspar estava de volta ao seu corpo; não mais translúcido, não mais verde e definitivamente corintiano.
Gaspar fora salvo pela equipe médica. Seu coração estava bom de novo e, contanto que ele não prestasse atenção ao noticiário sobre a situação do país, ele provavelmente ainda teria muitos anos pela frente, anos que seriam valiosos para se preparar para o pós-vida.
Só tinha um problema: a conta do hospital fora bem alta, e ele provavelmente estava devendo até a sua próxima encarnação. – Maldito Raj, eu ainda te pego! – exclamou ele, erguendo o punho para os céus.
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O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais