Modernella
Cinderella era criança quando seu pai perdeu a sua mãe para uma doença. Ele se casou, e, com a nova esposa, vieram suas duas meias-irmãs mais velhas de um casamento anterior. E, infelizmente, quando Cinderella estava para fazer dezesseis anos, seu pai também faleceu, como toda história triste deve começar.
O nome de Cinderella, claro, não era este; ela se chamava Ella. As irmãs, como todo irmão tem de ser, faziam bullying sempre que possível e adoravam chamá-la de Cinderella (com todo o sarcasmo do mundo, porque diziam que o que ela tinha de inteligente, ela tinha de feia, e, devo dizer, ela era inteligente mesmo).
Mas, para elas, inteligência não significava nada; o objetivo das suas vidas, conforme traçado pela sua mãe, era que crescessem, ficassem o mais lindas possível e atraíssem maridos ricos, riquíssimos, para garantir seu futuro. O pai de Cinderella era um pobretão, ou seja, isso claramente não tinha dado certo para a sua madrasta, mas ela tinha fé de que funcionaria para as suas filhas. Quanto à Cinderella? Bem, era feia e inteligente; coitada! Não teria nada de bom no futuro para si!
Assim, enquanto as irmãs passavam o dia se preparando para se casarem (aprendendo como cozinhar, ou melhor, como ordenar que funcionários cozinhassem, a limpar, ou melhor, como ordenar a funcionários que limpassem, a costurar, ou melhor, como escolher uma empresa que costuraria para elas, a… Bem, acho que você já pegou a ideia, né?) e fazendo todos os tratamentos de beleza que o dinheiro da sua mãe poderia lhes pagar, Cinderella servia de criada para todas essas coisas, cozinhando, limpando, costurando. Afinal, elas tinham de aprender a mandar em alguém, né?
Mas, enquanto elas se dedicavam por horas a cremes e fatias de pepinos nos olhos, a pobre menina aproveitava seu tempo para ler e estudar, já que a sua madrasta a tirara da escola para poder cuidar da casa. O lado bom é que havia uma biblioteca pública no caminho entre sua casa e o mercado; assim, ela sempre conseguia passar lá, escondendo os livros em sacolas de compras, para que ninguém percebesse quando chegasse à sua casa.
Certo dia, a família estava em alvoroço; haveria uma festa! Sim, uma festa do príncipe, que, pelo que diziam por aí, estava em busca de uma moça de bem para se casar. Lógico, quem viria à festa seriam princesas de outros lugares, elas que concorreriam para se casar com a realeza, porque, quem já viu príncipe se casar com plebeia? Só em filmes! Mas, de qualquer forma, para a madrasta de Cinderella e suas irmãs, seria uma baita de uma oportunidade para encontrar outros homens tão ricos e tão bonitos quanto o príncipe.
A madrasta fez de tudo para conseguir convites e chegou triunfante com três na mão; iriam as três, enquanto Cinderella ficaria arrumando a casa, claro, com direito a preparar banho quente e salmouras para os pés das moças, que voltariam certamente exaustas e felizes ao terem conhecido seus príncipes encantados, que lhes garantiriam um futuro brilhante. As três passaram o dia se arrumando, enquanto Cinderella passou o dia arrumando a casa; e, por fim, quando eram sete horas da noite, todas se foram.
A menina deu graças a Deus; finalmente, estava sozinha, sem ninguém para perturbá-la! Poderia ficar de pernas para o ar, lendo o quanto quisesse seu livro favorito, “Cosmos”, de Carl Sagan, enquanto elas estariam lá na sua festa.
Porém… Logo, ela começou a ficar curiosa. Como seria esta festa? Seria, de fato, tão maravilhosa quanto elas diziam? Será que haveria alguém interessante, por lá? A garota havia conhecido poucas pessoas – quase ninguém. Seus únicos amigos eram os livros e a bibliotecária que os carimbava.
– Bem que poderia ser como naquelas histórias de criança – comentou ela. – Já me chamam mesmo de Cinderella… Por que não uma fada madrinha que transformasse uma abóbora em carruagem, ratos em cavalos e estes trapos em um vestido de verdade?
E eis que, de fato, ela apareceu; uma fada madrinha!
– Mas… Você está meio diferente para uma fada, não?
– O que tu imaginava?
– Algo um pouco mais… Delicado?
A fada na verdade era do tamanho de um dedo; tinha asas como as de uma libélula, mas o corpo de uma mulher. No entanto, ao contrário do que esperaria a imaginação popular, ela usava um moicano, vários piercings e era repleta de tatuagens.
– Saca a borboleta que eu tenho no tornozelo – ela falou, abrindo o zíper do coturno para mostrar uma borboleta azul e bem delicada, pousando em uma caveira, de cujos olhos saía uma cobra.
– Bem delicada, mesmo – comentou Cinderella.
– Então, teu sonho é ir àquele baile ridículo, é?
– Não diria um sonho, mas seria legal, nunca fiz nada do tipo.
– Miga, vou te dizer, tu vai se decepcionar. Só tem gente babaca, lá.
Cinderella deu de ombros.
– Em casa está cheio delas, também.
– Ok, ok. Eu vou te ajudar. Mas só porque as coisas vão ser bem diferentes do que tu imagina.
Assim, balançando a sua varinha de condão (que parecia ser feita do osso de algum animal), ela transformou Ella em uma princesa digna de filmes. No entanto, claro, com um ar moderno, porque ninguém merecia aqueles vestidos bufantes cheios de tule que suas meias-irmãs tinham vestido. E, do lado de fora, em vez de uma carruagem de abóbora, uma limusine com um motorista.
– Sério, quem é que vai de carruagem nessas festas? – ela comentou. – Ah, sim, claro, não vamos nos esquecer dos sapatos.
Ela fez surgirem sapatos de salto comuns.
– Nada de cristal?
– Cristal quebra, miga. Não sei quem foi o idiota que teve essa ideia. Imagina se o sapato quebra e tu corta teu pé? Tu iria me processar, e eu não tenho como pagar um advogado.
– Muito justo – ela respondeu.
– Agora, a verdadeira magia está lá dentro. Coloca!
Ela vestiu e, quando ficou de pé, teve a sensação de que pisava em nuvens.
– Vou te dizer, não tem sapato mais confortável que esse. Conforto em primeiro lugar, nada de ficar tirando sapatos no final da festa!
– Fadinha punk, você é demais – disse a Modernella.
– Agora, vai lá, vai para a tua festa chata e depois me conta o que deu.
A fada desapareceu, e a garota entrou na limusine, sendo levada para a festa que ocorria no castelo da cidade. Ninguém lhe pediu um convite; como mágica, como se soubessem que ela merecia estar lá, simplesmente abriram-lhe as portas e ela entrou, embasbacada com a beleza do local.
Olhou-se no espelho; não estava feia. Não, não! Estava linda! Ainda mais linda do que as suas irmãs! Elas nunca conseguiriam reconhecê-la!
Bem, lá se foi Modernella, aproveitar a festa; quem sabe, conheceria alguém que poderia mudar sua vida? De repente, o plano de vida de suas irmãs não lhe parecia tão ruim. E se realmente encontrasse alguém legal e se casasse com ele? Poderia sair da casa da sua madrasta, parar de ficar apenas limpando e cozinhando, fazer algo da vida, por que não?
Mas, depois de muito passear e com muitos conversar, ela logo chegou à mesma conclusão de que a fada: eram todos uns babacas. Cansada, sentou-se a uma mesa e cruzou as pernas, apenas aproveitando o conforto da cadeira; encontrara suas irmãs e sua madrasta várias vezes, sempre cercando algum nobre, rindo desesperadamente de qualquer comentário, tentando agradar, porém, claro, sem sucesso. Elas não a reconheceram em absolutamente nenhuma das vezes.
– Você é a primeira moça que eu não vejo tirar o sapato.
– Como é? – perguntou ela, surpresa; quem estava falando com ela?
Era um homem de terno, com bigode e óculos, na casa dos trinta anos. Havia se sentado do outro lado da mesa, onde tomava uma taça de champanhe e comia uns doces.
– Geralmente, quando as moças se sentam, tiram os sapatos e massageiam os pés, porque vocês têm essa mania de usar esses sapatos horrorosos que não fazem o menor sentido anatômico!
– Ah! – ela falou e riu. – Sim. Mas, esses são maravilhosos, sinto que estou pisando em nuvens!
– Ah, isso é um sonho de consumo. Vou dizer, gostaria de sapatos assim para mim. Canso de ficar em pé o dia todo.
– O senhor trabalha com o quê?
– Sou o pesquisador-chefe do Instituto de Física da Sua Majestade.
– Puxa vida! Um físico de verdade?
– Sim. Acho que você talvez nunca tenha visto um. Bom, talvez, na escola. Somos uma espécie rara – ele falou, piscando.
Modernella se aprumou na cadeira. Um físico! Finalmente, encontrara alguém com quem poderia tirar algumas dúvidas que tinha dos livros que lera sua vida toda!
– Desculpe incomodar o senhor, mas, eu nunca tive essa oportunidade… Posso tirar uma dúvida?
– Mas, claro!
– Como podemos ter certeza de que nada, absolutamente nada, é mais rápido do que a luz?
Foi a vez de o pesquisador se aprumar na cadeira.
– Ora, essa é uma excelente pergunta! Veja…
E, assim, eles passaram horas e horas conversando, até que Modernella viu, pelo canto do olho, que sua família estava saindo da festa. Ela precisava ir embora! Precisava chegar antes delas!
– Desculpe, senhor, preciso ir! Foi ótimo conversar!
E saiu voando pelo salão.
O lado bom é que suas irmãs tinham gastado tanto dinheiro se embelezando, que acabaram ficando sem dinheiro para táxi, então, tiveram de esperar o ônibus chegar ao ponto. Modernella, assim, voou pelas ruas com sua limusine, chegou à sua casa, trocou de roupa, tirou a maquiagem e se sujou de fuligem novamente. Depois disso, deitou-se e fingiu que estava dormindo.
Quando o resto da família chegou, ela desceu e fingiu curiosidade com a festa, que todas diziam que fora espetacular.
– Tenho certeza de que conheci meu príncipe encantado – disse uma das irmãs, que era um ano mais velha do que ela.
– Já tenho meu futuro garantido – disse a outra, dois anos mais velha.
– Meninas, meninas! – exclamava a madrasta. – Agora, é só não deixar a peteca cair!
O tempo passou, no qual Cinderella ficou se lembrando da noite maravilhosa que tivera, até que, subitamente, começou a circular a notícia de que o príncipe estava atrás de uma das moças da festa, cujo nome e endereço ele havia perdido. Assim, todos os dias uma carruagem real seguia pelas ruas, de casa em casa, buscando a moça que satisfaria o príncipe. Era o maior furdunço! Filas e filas de mulheres empolgadíssimas! Até mesmo senhoras de meia-idade e velhas, todas maquiadas, tentavam enganar o príncipe, cujos olhos, é claro, não seriam tão facilmente enganados. Quando finalmente chegou a vez da rua de Cinderella, suas irmãs estavam emocionadíssimas.
– Vamos, deixe a casa um brinco para o príncipe! – disse sua madrasta. – E, depois, suma daqui!
O príncipe chegou ao final do dia, acompanhado de um homem de terno.
– Estamos procurando uma moça – disse o príncipe. – Que não tirou o sapato ao final da festa.
– Nós não tiramos! – mentiram as irmãs.
– Muito bem, poderíamos ver estes sapatos? – indagou ele.
A madrasta apenas encarou Cinderella, que estava escondida na cozinha, e ela disparou para o andar de cima, de onde voltou com os sapatos das meias-irmãs.
O príncipe os entregou para o homem, que os observou cuidadosamente e os devolveu.
– Não, não são estes que estou procurando – ele comentou. E, de repente, virou-se para a moça vestida de trapos. – E você, garota? Por acaso, esteve na festa?
Os olhos de Cinderella brilharam; era o físico!
– Ela? Há! – disse a madrasta. – É impossível, passou a noite em casa, limpando tudo!
Aquela era a chance de Modernella!
– Estive, sim. O senhor é o físico, não é? – ela respondeu, ignorando sua madrasta, que a encarou com indignação.
– Exatamente – ele disse. – Estou procurando por uma moça muito inteligente que me fez dezenas de perguntas intrigantes. E, particularmente, que me descreveu o seu sapato de uma forma muito peculiar…
– Como se estivesse pisando em nuvens?
– Exatamente! E, na sequência, perguntou-me…
– Como podemos ter certeza de que não há nada mais rápido do que a luz?
– Perfeito! É dessa garota que estou falando, vossa majestade! – exclamou o físico. – Como é seu nome? Sequer tive a oportunidade de perguntar!
– Ella.
O físico olhou o príncipe, esperançoso; o resto da família não conseguia compreender; o que havia acontecido? Como ela fora para a festa? Como conversara com o estranho de bigode? Por que o príncipe estava procurando uma pessoa inteligente, em vez de uma pessoa bonita, para se casar?
– Mas, vossa majestade, deve haver um engano… Tem certeza de que é Ella quem está procurando? Não seria Drizella? Ou Anastacia? Vamos, Anastacia, diga algo inteligente! – falou a madrasta, pisando em seu pé; se este era o jogo, tinha de jogar!
– Err… – tentou uma delas. – E = mc²?
– Sim, mas me explique então por que não podemos ver nada mais interno que o horizonte de eventos de um buraco negro? – questionou o físico.
Ela piscou, sem jeito, tentou dar um sorriso e arrumar o decote.
– É, vossa majestade – disse ela, virando-se para o príncipe –, não vejo como isso pode ser relevante para…
– Nem a luz escapa da gravidade do buraco negro – respondeu Ella. – Por isso, nada é visível além do horizonte de eventos.
– Exatamente! – exclamou o professor. – Definitivamente, vossa majestade! É ela!
O príncipe, então, ignorando o resto da família, virou-se para a Modernella.
– Cara Ella – começou, com sua voz imponente. – O professor Semenov aqui a tem em grande estima. Ele me pediu, especificamente, que conseguisse um cargo para você em seu departamento de pesquisa.
A garota ficou boquiaberta.
– Mas eu… Eu nem terminei a escola!
– Bobagem – disse o pesquisador. – Podemos resolver isso.
– Vou conseguir uma vaga para você nos nossos cursos de supletivo. Trabalhará com pesquisa de dia, estudará à noite. Em breve, terá seu título e poderá cursar a faculdade de física.
– Mas, eu…
– Ah, e é claro – disse ele, olhando com asco ao redor. – Não podemos deixar que more aqui. Preciso que tenha paz e tranquilidade, para estudar e dar o melhor de si. Vou separar um dos cômodos da moradia universitária do nosso Instituto de Física para você. E roupas adequadas, claro.
– Mas, eu…
– Não podemos perder uma oportunidade dessa. Nossa sociedade precisa da ciência! Precisamos de pesquisadores! Grandes mentes! Hoje, não há nada mais valioso do que um bom cérebro! – ele disse. – O que me diz?
E, assim, Ella, não mais Cinderella, nem mesmo Modernella, simplesmente Ella, viu sua vida mudar de supetão. Não graças à sua beleza, não graças a uma fada madrinha ou a um príncipe encantado, mas, simplesmente, devido à sua inteligência. Agora, ela poderia ter a vida que quisesse, sem depender de ninguém, especialmente de um marido que a sustentasse pelo resto da vida.
E, assim, ela viveu feliz para sempre. Quer dizer, para sempre, não; ao menos, até o fim de sua vida. Que foi uma vida longa e próspera.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais