O dia em que a internet caiu
Era uma vez um dia extraordinariamente comum. Não havia absolutamente nada de excepcional acontecendo no mundo – os pássaros cantavam como sempre, os carros rodavam como sempre, pessoas trabalhavam como sempre…
Até que a internet caiu. Simples assim. Mas não foi só uma queda regional, daquelas que acontecem quase sempre, depois de chuva, por problemas de rede ou coisas do tipo; foi uma queda geral. No mundo todo, ao mesmo tempo.
Este acontecimento foi um fato tão, mas tão extraordinário para um dia até então bastante ordinário que, na Estação Espacial Internacional, os astronautas relataram que a Terra parou de girar – isso mesmo, parou de girar! – por alguns segundos. Será que até ela era movida a internet?
Para as pessoas normais, tudo parecia mais uma queda comum, que logo voltaria – para aqueles que trabalhavam com ela e dependiam disso, entretanto, foi um caos. Como assim, a rede caiu no mundo todo? Quem foi o responsável? Como aconteceu? Foi um hacker? Sobrecarga?
Demorou um pouco, mas, até o final do dia (em cada fuso horário), todos já sabiam que a queda era internacional. E o pior – não só não sabiam a causa, como não havia previsão de volta. A notícia foi veiculada por fontes oficiais e repassada pelos mais diversos jornais às massas – e foi aí que o caos realmente se disseminou.
Pessoas chegavam à casa, sentavam em frente aos seus computadores, ou nos sofás, com celulares, tablets e outros apetrechos do tipo em mãos, e ficavam olhando pra eles, como se hipnotizados. Não havia internet. O que fariam com eles, então? Para que serviam, se não havia internet?
Ao redor do mundo, diversas teorias se disseminaram. Os religiosos mais ortodoxos diziam que era o apocalipse. Os menos ortodoxos, que era punição divina pelos nossos pecados. E os nem um pouco ortodoxos (boa parte da população), ficaram simplesmente rezando para a internet voltar o mais rápido possível (e, poucos dias depois, não só os mais ortodoxos em seus diversos níveis, mas também os ateus se juntaram a este coro).
O problema se refletiu nos mais diversos contextos cotidianos: como fazer compras? Como pedir uma pizza? Como definir para onde sair, ver o caminho, ler piadas idiotas, compartilhar coisas com amigos, postar fotos do que estava fazendo ou comendo, emitir opiniões inúteis? Oh, meu Deus, teria de guardar meus comentários fúteis que fazem tão bem para a humanidade dentro da minha cabeça? Privar o mundo do meu gênio inigualável?
No condomínio Itamaracá, que congregava uma dezena de prédios com mais de 50 apartamentos cada, no terceiro dia da Era da Escuridão (também chamada a posteriori de Escuridismo), foi realizado um concílio de guerra. Portando velas, todos os condôminos se juntaram no salão de festas, na mais completa escuridão. Ok, a escuridão não era necessária, a eletricidade funcionava, mas eles se sentiam mais no clima fazendo isso.
– Estamos todos reunidos aqui hoje para decidir como levaremos a nossa vida nesta era de escuridão – disse o síndico. – Temos uma pauta longa e exaustiva, com diversos problemas que teremos de resolver, agora que não temos mais… – pausa para um suspiro, uma lágrima escorreu de seus olhos. – A internet.
Alguns sobejaram no público, como se fosse uma missa de sétimo dia de um ente querido.
– A primeira decisão que temos de tomar é a respeito das compras. Estava conversando aqui com o Juca, e ele se ofereceu para servir como nosso CEO a este respeito.
Ninguém sabia exatamente o que era CEO, mas parecia ser um nome bastante apropriado para o cargo. Juca se levantou.
– Eu vou fazer desta forma: quando alguém quiser pesquisar um preço, ou alguma coisa, deve passar a requisição para mim. Eu farei as ligações para esta lista de lojas aqui e pesquisarei os preços por vocês.
A primeira pergunta foi: em quanto tempo teremos a resposta?
– O mais breve possível. Depende da fila. Acho que algo em torno de uma, duas horas.
Murmúrios de revolta; mas não tinham escolha, até então já estavam havia três dias sem comprar absolutamente nada. Afinal, como iriam comprar? Indo até a… Argh!… Loja?
A segunda pergunta foi: qual será o horário de funcionamento? Juca iria responder “horário comercial”, mas, ao ver a revolta popular no último item, controlou-se bem a tempo.
– Estou montando uma equipe para trabalhar vinte e quatro por sete. Mas preciso de voluntários. Eu posso trabalhar no horário comercial.
Murmúrios e mais murmúrios; que absurdo! Conseguiriam alguém para ficar as 24 horas? Por que o próprio Juca não ficava as 24 horas logo de uma vez? Afinal, o que mais ele fazia da vida? Não devia fazer nada, e, mesmo que fizesse, que mal seria, que diferença faria na sua vida, se ficasse lá à disposição? Mal nenhum de certo, poderia trabalhar em casa, ao telefone…
– O segundo item da nossa pauta – disse o síndico, batendo o bolo de papéis no púlpito para chamar a atenção. – É a respeito do nosso mural. Como vocês devem ter visto por aí, nós tentamos fazer algo para… – novo suspiro. – Suprir a falta das nossas redes sociais.
O suspiro foi generalizado.
– E, para isso, o nosso amigo Daniel teve uma grande ideia. Por favor, Daniel, suba aqui.
Um garoto de dez anos subiu até o púlpito e precisou de um banquinho para poder ser visto.
– Bom, a gente pegou o mural principal do condomínio e testou um sistema de rede social manual. Como o mural provavelmente não vai bastar, o seu síndico liberou o uso de toda a parede. É só vocês fazerem que nem fazem normalmente: montam um perfil na parede da direita, colocam suas novidades e podem ir comentando nos perfis dos outros. Para facilitar, se quiserem colocar fotos ou coisa do gênero, colocam tudo lá, também.
Inúmeras perguntas; Daniel não sabia nem como responder direito. E assim a reunião prosseguiu, por várias horas, tentando solucionar as mais diversas banalidades, como “como fazer compras em grupo?”, “como fazer videoconferências de graça?”, e até mesmo “como baixar filmes?”, problema que foi solucionado através de um sistema de compartilhamento de DVD’s entre os moradores, e um coitado – seu Manoel – que ficou responsável por deixar suas três televisões à disposição para gravar os programas de quem quisesse, a qualquer horário, editar para cortar os comerciais e depois distribuí-los para a comunidade.
Tempos difíceis.
Empresários que tinham todas as informações em nuvens e, portanto, nunca mais teriam acessos a seus dados, declararam falência da noite para o dia. A Bolsa de Valores, que inicialmente congelou seus preços, depois caiu no mundo inteiro, recuperou-se apenas graças ao movimento ascendente de empresas até então praticamente falidas, como aquelas produtoras de aparelhos de fax. Logo os telefones voltaram a todos os pregões, veículos de notícias passaram a usar telefones, fax e, pasmem, correios, mas o mundo se adaptou e a bolsa voltou a subir.
Foi complicado, mas o ser humano sempre se adapta, e assim foi com as pessoas. Com uma febre desenfreada de redes sociais, a ideia de Daniel se expandiu; conforme pessoas passavam duas, três horas dos seus dias diante do mural, no saguão do prédio, foram trazidos móveis – sofás, poltronas, até mesmo camas – que não usavam mais em suas casas, para os usuários ficarem mais confortáveis. Diante do congestionamento dos elevadores, de pessoas que subiam e desciam para postar suas informações, fotos de comidas que acabaram de cozinhar, comentários sobre novelas e indiretas para vizinhos, logo começaram a subir e descer escadas, o que até teve o seu benefício – mas uma velhinha foi atropelada no meio, e a solução foi colocar sentido, placas de pare e semáforos dentro das escadarias dos prédios.
Depois de quinze dias de uma empreitada bem sucedida – que o Daniel patenteou como “parédio”, em uma junção de parede com prédio, e wallding para a patente internacional – a televisão veio noticiar, para poder replicar em todo o país. E, em pouco tempo, o mesmo foi feito para todo o mundo. E, para que realmente todos ficassem conectados, logo havia centrais telefônicas (e foram criados inúmeros empregos com isso) para disseminar as informações de um mural a outro. Só assim poderiam saber se aquele ator famoso havia voltado com a atriz famosa que o havia trocado por um cachorro, depois de descobrir que ele tinha se casado antes, na Índia, com um pedaço de gramado. Entre outras coisas muito relevantes para a sociedade.
Logo, as empresas de papel e impressoras não deram conta da demanda, os ambientalistas intervieram, e a solução foi colocar inúmeros telões (televisões que os moradores emprestaram, pois as empresas de eletrônicos também não dariam conta do recado) no saguão dos prédios, sendo as informações atualizadas constantemente pelos computadores pessoais dos usuários, que os conectavam e assim ficavam lá, por horas, apenas esperando chegar as informações por telefone sobre o que aquele escritor famoso tinha comido no jantar de ontem em Istambul. Aliás, dois dias antes, pois a informação não era mais instantânea.
Enquanto isso, expedições foram enviadas para as mais remotas áreas do globo (pólo norte, pólo sul, algumas ilhas e o deserto do Saara) onde nunca havia chegado a internet, para perguntar às pessoas como elas conseguiam viver sem isso. E, no momento, como conseguiam viver também sem o parédio.
As pesquisas foram intensas, exaustivas, mas não chegaram a qualquer conclusão. Simplesmente não sabiam como. A solução, aparentemente, seria tirar todas as roupas, viver em uma oca sem qualquer contato com nenhuma tecnologia, e passar seus dias a ficar com a família, pescar, caçar, comer, entreter-se com histórias antigas, ver os elementos da natureza, enfim, uma vida nem um pouco estafante, que os levaria facilmente aos 120 anos de vida e que seria, acima de tudo, entediante.
A frase “antes ter postado e perdido do que nunca ter postado” era pichada em diversos muros, mas a verdade é que ninguém concordava: preferiam nunca ter conhecido a internet e suas facilidades, a perdê-la tão repentinamente.
E assim foi. O escuridismo durou exatamente 10 meses, 9 dias, 13 horas e 45 segundos. Da mesma forma misteriosa como sumiu, como se tivesse afinal atravessado um túnel e chegado à luz, a internet retornou a todo vapor.
Gostaria de dizer que a humanidade, ao ver o computador online novamente, indicando a previsão do tempo, havia aprendido muito com a experiência e parado de depender da internet para tudo, mas não foi bem assim. Tão logo ela voltou e a notícia foi de que nunca mais sumiria, todos pegaram seus móveis dos saguões dos prédios, levaram de volta para casa e correram como nunca para recuperar o seu tempo perdido. As redes sociais travaram de tantas informações novas que tiveram de absorver, e-books pipocaram contando relatos trágicos da experiência sem internet, e Daniel, que havia se tornado uma celebridade bilionária da noite para o dia, viu todo o seu império ruir do dia para a noite, e seu parédio não passar de nada além de uma parede branca e sem graça.
Até o próximo apagão.
Nota do autor, setembro de 2021: este é mais um conto bem humorado com o intuito de repensarmos a importância da internet nas nossas vidas. O que você faria se a internet sumisse da noite para o dia?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais