O dia em que o céu apagou
– Pai, por que o céu tem estas cores tão bonitas, especialmente quando é o fim do dia?
O pai estava no banco da frente, dirigindo; Michel, seu filho, estava no banco de trás, na sua cadeirinha, apesar de achar que aos quase dez anos já não precisava mais usá-la, olhando pela janela para ver o céu acima.
Por que ele tinha estas cores? Mas que pergunta difícil! Como poderia se safar desta?
– É que tem um cara que pinta o céu todos os dias – ele respondeu.
– Mas o céu do mundo todo?
– Isso. Só que, em cada lugar, ele faz de um jeito. E a sua função é ficar lá, pintando.
– E onde ele mora, pai?
– Não sei não, filho. Acho que ele fica em um andaime bem alto, perto do céu, para poder pintar.
– Olha só…
E, por incrível que pareça, ele parou de perguntar a respeito. Muito estranho! Com aquela idade, já deveria ter percebido que não passava de uma história para tapeá-lo…
Entretanto, não muito tempo depois, o céu apagou. Exatamente; apagou. Na parte do mundo onde ainda estava dia, tudo ficou claro e branco; não era possível ver nenhum tom de azul, nenhuma nuvem no céu, nem o sol a brilhar. E, do lado do mundo onde era noite, tudo estava preto e escuro – mas sem nuvens, sem estrelas e sem lua.
Pelo mundo todo, cientistas tentavam explicar aquele estranho fenômeno, mas ninguém sabia ao certo. Um eclipse? Um fenômeno do alinhamento dos planetas? O fim do mundo? O que poderia ser aquilo?
Michel, contudo, tinha a sua própria teoria; aquilo só poderia ser obra do pintor dos céus. E a única forma de resolver, de voltar a ter aquele belo céu de volta, era procurá-lo e pedir que voltasse a pintar. Mas, para isso, primeiro precisava descobrir onde ele morava, coisa que nem seu pai sabia.
Decidiu chamar seus amigos para uma reunião de emergência; e, no meio de um dia claro, mas sem sol nem nuvens, todos eles se encontraram na casa de Michel.
– Algum de vocês tem alguma ideia de onde este pintor dos céus pode morar?
– Uhm… – todos pensaram, em uníssono.
– Será que naquela tal Capela Cretina, que tem aquelas imagens bonitas? – opinou Juca.
– Acho que não… E acho que o nome não é esse…
– Já sei! – exclamou Juliana, por fim. – Lembra que a professora falou que, nos pólos, durante o verão o sol brilha por seis meses e, durante o inverno, fica tudo escuro por mais seis meses?
– E daí, Ju? O que tem a ver uma coisa com a outra? – indagou Alexandre.
– Ué, não é lógico? Se você fosse o pintor, não ia ficar num lugar desses? Não é o melhor lugar para ficar? Fora que, de lá, ele tem acesso aos céus do mundo inteiro.
Eles tinham de admitir que fazia um certo sentido.
– Muito bom, então. Agora é verão, o que significa que o nosso pintor deve estar na Antártida – falou Michel, o líder da equipe.
– E como vamos fazer para chegar até lá? Não dá para pegarmos avião, não vão deixar – opinou Juliana.
– Eu tenho a solução perfeita… – comentou Alexandre.
Não foi fácil fazer o que pensaram em fazer, até porque não havia mais noite para fazerem tudo escondido; assim, no horário que os relógios indicavam que deveria ser noite – e no qual, portanto, todos fecharam suas persianas e portas, tentando ficar no escuro e dormir, em suas casas – eles se juntaram para carregar um enorme cesto e o que parecia uma quantidade infindável de tecido, até um campinho vazio.
– Que esquisito – comentou Juca.
– O que é?
– São três horas da manhã, mas está claro como se fosse dia!
– Por isso mesmo, não estou com nem um pingo de sono – comentou Juliana.
Alexandre soltou um largo bocejo.
– Acho que ainda estou no horário antigo… A essa hora, estaria no décimo sono!
– Bom, vamos pôr o plano em ação! – disse Michel.
A ideia era bastante simples: pegar o balão do pai do Juca, enchê-lo e ir navegando pelos ares até a Antártida. Juca orientou, eles armaram tudo, acenderam o fogo e logo o balão já estava enchendo.
– Muito bem, vamos checar: todo mundo trouxe casacos? Botas? Gorros, meias, luvas, óculos? Comida e água? Cordas? Maravilha! Vai ser uma longa viagem, senhores, preparem-se!
E partiram. Nos céus, no meio daquela imensidão branca, seria fácil ver aquele balão colorido, praticamente piscando. Em ocasiões cotidianas, ninguém olhava muito para o céu – afinal, ninguém tinha tempo para isso. Porém, desde que ele havia apagado, houve um frenesi de observadores, que compraram óculos escuros para suportar a claridade e passaram a olhar, incessantemente, aguardando ansiosamente o momento em que ele acenderia novamente.
E os que estavam olhando efetivamente viram o balão da equipe de exploradores, mas, qual a novidade em um balão voando? Assim, ninguém deu muita importância, e eles puderam prosseguir sem dificuldades, por todo o trajeto até o polo sul…
Conforme se aproximavam do continente gelado, o tempo foi esfriando e esfriando, cada vez mais; mesmo com todos os casacos, cobertas e o calor das chamas do balão, eles ainda sentiam muito frio, e seus dentes batiam. Logo o vento se tornou forte demais, jogando-os por todos os lados, e Juca, que era um exímio aprendiz de balonista, perdeu o controle.
– Estamos perdidos! – exclamou Juliana.
– De quem foi essa ideia idiota de vir para o sul tentar fazer o céu acender, afinal de contas? – indagou Michel.
– Foi sua! – todos responderam juntos.
– Droga! Que ideia idiota! – ele reclamou.
E gritaram todos juntos quando o balão foi tragado pelos ventos…
Quando acordaram, o balão estava preso, no topo de uma montanha gigantesca de gelo; lá, o vento quase não soprava, e eles tinham a sensação de que estava até mesmo quente.
– Estão todos bem? – perguntou Michel.
Um a um, responderam que sim. O líder da expedição saiu e olhou ao redor; nada além do branco. O gelo se juntava com o céu, e era difícil de saber o que era o quê.
Entretanto, diante de si, no cume da montanha, pôde ver um homem careca, barbudo, não usando nada além de uma toga e deitado no chão, ignorando totalmente o frio. No chão, diversos potes de tintas e pincéis espalhados.
O homem suspirou, e seu suspiro pareceu mover os ventos, de tão forte.
Michel caminhou até ele e o encarou de cima; o homem olhava para cima, totalmente desanimado, e pareceu surpreso ao ver alguém diante de si.
– Quem é você? – foi a pergunta mútua.
– Considerando que eu sou o dono destas terras, e você, o visitante, acho que você deve me responder primeiro.
– Eu sou Michel. E estes são Juca, Alexandre e Juliana. Viemos da nossa cidade até aqui à procura do pintor dos céus.
– Pois este sou eu.
– Mas parece que não está fazendo seu trabalho direito, né? – alguém gritou de dentro do cesto do balão.
O homem não respondeu, mas meramente suspirou.
– O mundo mudou muito nos últimos tempos. As luzes das cidades não permitem que ninguém aprecie as estrelas à noite. A fumaça dos carros não deixa ninguém ver os céus de dia. Além disso, as pessoas não olham mais os céus hoje em dia. Ninguém mais tem tempo de admirar as minhas pinturas. Para que pintar, então?
– Nós olhamos! – exclamou Michel. – Não posso prometer que as cidades vão apagar as suas luzes à noite, ou que os carros vão parar de poluir tudo, mas eu posso garantir que, de minha parte e dos meus amigos, nós olhamos! Por isso que viemos até aqui. Para pedir que o senhor volte a pintar os céus!
– Não estou com vontade. Afinal, parece que os humanos gostaram mais do céu do jeito que está agora. Todo mundo está olhando!
– Todo mundo está deprimido, isso sim! – respondeu Juliana, saindo do cesto. – Não podemos viver sem os céus! Não sabemos que horas são, não sabemos se é dia ou noite, não sabemos o que está acontecendo… É como se metade do mundo morresse! É horrível.
– Exatamente – concordaram os outros dois, ainda dentro do cesto, onde era mais quente e seguro.
– Por favor, seu pintor! Volte a pintar os céus! São a coisa mais bonita que temos em todo o nosso planeta!
O homem suspirou mais uma vez e se levantou, olhando para os garotos ao seu redor. Realmente, haviam se dado ao trabalho de vir do outro lado do mundo, arriscando suas vidas para encontrá-lo, para fazer um pedido tão singelo! Pintar o céu valia a pena, nem que fosse apenas por aqueles meninos.
– Muito bem, garotos! Voltem para o seu balão, que eu vou mandá-los de volta para casa. E vou pintar o céu mais bonito que vocês já viram em todas as suas vidas!
– Oba! – exclamaram.
Subiram todos de volta no cesto; com um sopro, o homem encheu o balão e, inspirando profundamente, deu um sopro gigantesco, que os levou de volta pelo ar. Em pouco tempo, aterrissavam suavemente no jardim de suas casas. Lá, o céu ainda estava branco, mas puderam ver conforme, cuidadosamente, como se fosse realmente uma pintura tomando forma, nuvens foram aparecendo, o sol ao fundo, o azul escuro misturado com o claro, os tons róseos e alaranjados do alvorecer…
– Que lindo! – exclamaram, todos juntos, parados ao lado do balão.
De dentro de casa, seus pais saíram correndo, pois estavam preocupados havia horas com o desaparecimento das crianças.
– Olhem só! Olhem só! Não é o nascer do sol mais lindo que vocês já viram? – perguntou Michel.
– É mesmo – respondeu seu pai. – Parece uma pintura de verdade.
– E é mesmo – eles responderam, sorrindo.
Nota do autor, setembro de 2021: este conto de fadas esconde uma crítica – ao fato de não olharmos mais para os céus, claro, e nem podermos ver adequadamente o que há por causa de tanta poluição e luzes.
A ideia de um pintor dos céus é antiga; está em um dos meus primeiros romances, que escrevi em 2004 – Arganoth. Nele, os céus são pintados diariamente por anjos, cuja única função, além de escolher as cores da lua daquela noite, é essa. E, ocasionalmente, uma gota de tinta cai em algum passante.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais