O garoto dos cabelos vivos
Dizem que não são as pessoas que escolhem os nomes, mas os nomes que escolhem as pessoas. No caso de Sansão, talvez seja realmente isso. Sua mãe não tinha em mente nenhum nome, ainda, quando, já na mesa de parto, entre um empurrão e outro, seu marido perguntava:
– E Carlos?
– Não! Ahh!
– E André?
– Não! Ahhh!
– E Marcelo?
– Nãoooo!!! Ahhh!!!
– Santo Deus!
E assim, nasceu o menino. Talvez porque já tenha nascido com uma basta cabeleira, talvez porque, durante as dez horas de trabalho de parto, o marido já tivesse esgotado todos os nomes de seu livro de nomes, ela disse:
– Sansão. É isso aí.
E assim ficou. Sansão, com sua basta cabeleira, foi crescendo e se tornando forte, fazendo jus ao seu nome. Seus pais achavam seus cabelos tão, mas tão lindos, com seus enormes cachos caindo aos lados, que tinham medo de cortá-lo. E se nunca mais ficasse assim?
Porém, quando chegou aos três anos e foi confundido com uma menina, eles acharam que era melhor cortar. E como Sansão chorou! Deu dó. Parecia até que cada tesourada, cada fio que caía, era como se fosse um pedaço de seu braço. Não foi nem um pouco fácil.
Na segunda vez em que quiseram cortar, poucos meses depois, Sansão recusou-se terminantemente, e não houve quem o colocasse na cadeira do barbeiro. Uma vez havia sido o suficiente; nunca mais deixaria que lhe tocassem nos cabelos. E assim foi; o menino crescia, e os cabelos cresciam junto, até abaixo da cintura, já fazendo curva e entrando em seus fundilhos (o que lhe fazia cócegas, se estivesse sem roupas).
Não preciso dizer que um garoto com um cabelo tão longo quanto este era alvo de gozações intermináveis na escola. As outras crianças lhe puxavam pelos cabelos; penduravam coisas nele; chamavam-no de menina; usavam para fingir que era barba; davam bobs de amigo secreto no fim do ano; jogavam chiclete e coisa parecida. Mas nada de Sansão dar o braço (ou o cabelo) a torcer: qualquer pequeno cacho cortado parecia como se lhe arrancassem um dedo, e ele os protegia com unhas e dentes. Que fosse o menino mais zombado da escola; não se importava. Contanto que não lhe cortassem os cabelos.
Foi numa bela noite, lá pelos seus doze anos, que tudo aconteceu. Ele não soube dizer exatamente como; acordou com muito frio, sentindo suas pernas balançando ao vento frio – e, olhando em torno de si, percebeu que estava de ponta-cabeça.
Não, deveria ser um sonho, somente um sonho. Como poderia? Devia ter deixado a janela aberta, a coberta caiu, e agora o vento lhe batia nas pernas. O resto era sonho; a imagem de ponta cabeça, a rua pela qual caminhava… Mas, caminhava como?
Foi quando olhou para cima, ou melhor, para baixo, e percebeu que marchava sobre as suas madeixas.
– Meu Deus! Como foi que isso aconteceu?
Definitivamente, era um sonho. Achou melhor fechar os olhos, talvez dormisse dentro do próprio sonho e, como a lógica bem indicava, se dormisse, começaria a sonhar, e seu sonho dentro do sonho o faria despertar para sua vida real.
O que se provou verdade: quando acordou, estava novamente em sua cama, quentinho, com suas enormes tranças presas (pois, senão, corria o risco de morrer enforcado pelo próprio cabelo).
Mas qual não foi a sua surpresa quando, na escola, no dia seguinte, descobriu que Betinho, seu arquirrival, o garoto que mais lhe pregava peças com relação ao cabelo, não viera? Que bom! Seria um dia de paz. Até que…
Um burburinho pelo pátio do colégio, e ele foi se inteirar; todos com os celulares nas mãos, a notícia mais comentada era de que Betinho fora encontrado em casa, na sua cama.
– Morto! – um exclamou.
– Estrangulado pelo próprio cabelo! – completou outro.
– Como que pode?
– Será que ele se matou?
– Nunca vi, ninguém morrer com o próprio cabelo!
Sansão se afastou do grupo; morto, estrangulado pelo próprio cabelo? Puxa vida, mas que ironia para um garoto que tanto o infernizava, justamente por causa dos cabelos! Seria justiça divina?
Bom, ao menos sua vida seria mais fácil dali em diante…
Quer dizer, mais ou menos, porque, depois desta notícia bizarra, todos começaram a falar que, se o Betinho, que tinha os cabelos curtos, havia morrido desta forma, quanto tempo mais Sansão sobreviveria, dado que seu cabelo podia dar a volta no pescoço de três pessoas ao mesmo tempo?
Uma semana depois, quando a notícia sobre o fim trágico de Betinho já havia esmorecido, logo após a realização da sua missa de sétimo dia (que, por sinal, terminou com uma pitsada), Sansão teve novamente aquele sonho estranho, mas desta vez despertava no meio de outra rua, onde voltava a dormir e acordava em sua cama.
E, na manhã seguinte, era outro colega que estava faltando: Claudionor, um gorila que havia assumido o posto de comandante do grupo dos valentões no lugar de Betinho e que vivia dizendo que Sansão era o próximo na lista de assassinatos capilares.
Bom, a morte igualmente trágica de Claudionor – desta vez, sufocado por um bolo de seu próprio cabelo que entalou na sua garganta – gerou uma comoção nacional, em que centenas de manifestantes rasparam suas cabeças em homenagem ao garoto e fizeram uma marcha pela avenida principal da cidade e uma vigília na escola onde ele estudava.
Desta vez, Sansão ficou realmente preocupado. Era coincidência demais ele ter tido os sonhos e, logo em seguida, seus colegas aparecerem mortos de uma forma tão estranha quanto aquela! Mas, o que fazer a respeito? Não sabia.
Por uma longa semana ele pensou; quando todos os colegas de classe decidiram raspar seus cabelos, para que não pudessem ser mortos por eles, Sansão chegou à solução: se achava que os seus cabelos eram culpados, poderia entrar na onda e também cortá-los. Para ele, no entanto, fazer aquilo era um sofrimento indescritível; provavelmente, desmaiaria no meio, de tanta dor.
Realmente, não sabia o que fazer. Valia a pena arriscar? E se fosse tudo uma simples coincidência?
Na noite em que se completaria uma semana do assassinato de Claudionor, Sansão ficou deitado, de olhos bem abertos; não se permitira dormir. Se o fizesse, indubitavelmente acordaria com os cabelos enrolados em alguma outra vítima quase inocente. Tinha de ficar acordado! Tomou xícaras e mais xícaras de café, ficou assistindo à televisão, leu livros, fez tudo o que podia, mas, quando já eram quatro horas da manhã, foi vencido pelo cansaço…
Acordou com um grito; ao abrir os olhos, viu uma mulher de ponta cabeça, em um quarto de ponta cabeça e, olhando para o que deveria ser cima, mas era baixo, encontrou seus cabelos formando praticamente um casulo em torno de Danúbio, mais um dos valentões da escola.
– Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! – ela gritava.
– Pare, cabelo! Pare! – gritou Sansão, tentando segurá-lo com suas mãos, mas ele era mais forte e se enrolou pelo seu corpo, mantendo-o preso.
Logo o pai de Danúbio entrou correndo no quarto com uma serra elétrica; o cabelo de Sansão, que não era nem um pouco bobo, usando suas tranças como se fossem pernas e braços, ainda o sustentando no ar como se fosse um cabo de vassoura, pulou pela janela e correu pela rua.
Uma perseguição desenfreada pela polícia se iniciou; o cabelão, no entanto, corria mais rápido que todos, esgueirava-se pelos becos e ruelas, sabia todos os desvios. Sansão, enquanto isso, feito de refém de suas próprias madeixas, tentou gritar – mas foi logo interrompido pelos longos braços pilosos de seu sequestrador.
Por fim, o cabelão foi cercado por um grupo de moradores violentos, munidos de tesouras de cerca e serras elétricas.
– Mãos ao alto! – gritou um. Sansão levantou as suas. – Quero dizer, fios ao alto!
Aí, sim, a cabeleira ergueu o que eram fios enrolados em um tererê, que representavam suas mãos.
– Agora, vamos acabar com você! – gritou um.
– Não, por favor, não! Isso dói! – esperneou Sansão, mas não adiantou.
Acabou desmaiando de tanta dor.
Quando acordou, estava vendo o sol literalmente nascer quadrado, pela pequena janelinha de sua cela. Estava deitado, com a cabeça toda raspada, pela primeira vez na vida, ao lado de um saco de fios, amarrado com diversas cordas e acorrentado ao chão – os restos que haviam sido varridos das ruas, junto com latas de refrigerante, bitucas de cigarro e folhas secas.
Do lado de fora, podia ouvir um advogado discutindo com o outro; a linguagem que usavam parecia mais grego do que português, de forma que ele não entendeu nem trufas, nem lhufas. Pouco depois, um homem de terno se aproximou da cela e, vendo que estava desperto, puxou uma cadeira para se sentar diante dele.
– Muito bem, Sansão, vou te explicar o que está acontecendo.
Era simples: o culpado era, sem dúvida, o cabelo. O advogado da acusação poderia argumentar se Sansão era cúmplice ou não – mas todos viram muito bem que era praticamente uma situação de refém. E, uma vez que o culpado já estava preso, e tudo já havia sido controlado, tudo estava bem.
– E eu vou poder voltar para casa?
– Como você é réu primário, eu vou pedir um habeas corpus ou liberdade provisória, até o dia da audiência.
– Ahm?
– Sim, pelo menos até o juiz tomar sua decisão.
– E não era mais fácil ter falado em português desde o começo?! – Sansão interroxclamou, cruzando os braços e se recostando na parede. – Viu, seu moço, não dá pra pedir uma touca? Estou com um frio na cabeça!
O caso era tão extraordinário, que o julgamento foi rápido: em uma semana, com direito a júri popular e a filmagens para transmissão nacional, estava lá, no banco de réus, um saco de cabelos. Que, na realidade, não falou nada com nada, apenas ficou lá, em silêncio. Muitos consideraram uma estratégia da defesa; outros, encenação. Ele era um verdadeiro mestre, com certeza, um seriau quiler! Que frieza diante dos depoimentos, dos parentes das vítimas, que se esbugalhavam em lágrimas na frente de todos!
Sansão também foi lá depor; foi acusado de cumplicidade, mas, quando contou sua triste história, logo o júri se compadeceu. Sansão foi absolvido, com a simples resolução do juiz de que seu cabelo nunca deveria alcançar tamanho suficiente para poder levantá-lo do chão. E como faria isso? Bem, cortes periódicos no hospital, com direito a sedação, para que não sentisse dor.
E quanto ao cabelo? Foi condenado à prisão perpétua e já está lá há muitos anos.
Mas um guarda da prisão me disse que ele vem percebendo que os fios estão sumindo do saco, um a cada dia…
Nota do autor, setembro de 2021: não tenho certeza de onde tive a ideia desta história, mas era uma época em que estava trabalhando bastante o búlim, já que tinha acabado de escrever o primeiro volume de Albert Nerd. Enfim, acho muito divertida a ideia de cabelos que se vingam de valentões durante a noite. Acho que todas as crianças precisam disso (quer dizer, menos o assassinato, não precisava de tanto!).
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais