O Gato que Lambia Pelos e Cuspia Diamantes
Todo bom conto de fadas começa com uma família muito pobre, recebendo algo quase miraculoso para ajudá-las nas suas dificuldades. Isto, talvez, faria desta história um conto de fadas – se ela não fosse, em sua totalidade, verdade.
Aconteceu um dia destes, em uma cidade que não vou especificar, com uma família que eu vou chamar de Silva. Eles viviam em uma casa pequena, de dois cômodos, na periferia da cidade, sem nenhum conforto. Os pais dormiam em um quarto, e os cinco filhos, na sala, em colchões espalhados pelo chão. No verão, revezavam para se abanarem, duas horas cada um, durante a noite, para conseguirem dormir; no inverno, ficavam todos agarrados, em um colchão só, para terem calor suficiente para passarem a noite. Seu pai recebia uma marmita no serviço, que trazia para casa para todos os sete dividirem. A situação era triste, muito triste.
Até que um dia, quando a criançada estava sentada na soleira da porta, olhando tristemente para a rua triste, de terra, repleta de buracos tristes, onde as crianças não podiam brincar, pois os carros tristes passavam a todo o tempo, naquele momento toda enlameada por causa da triste chuva que caía daquele céu cinzento e triste, surgiu um gato alegre.
Bem, talvez ele não fosse realmente tão alegre, pois gatos são animais extremamente enigmáticos, e é difícil dizer se eles realmente estão sorrindo ou não, mas, considerando o quão triste estava todo o entorno, qualquer um vindo de fora imediatamente seria considerado alegre.
Ele era um gato persa, branco, peludo, de cara achatada e olhos esbugalhados, com ares de extrema argúcia, e simplesmente surgiu entre os garotos sentados na soleira e começou a se lamber com a tranquilidade que só um gato pode passar.
– Olha! Um gato! – exclamou o irmão mais novo.
– Sério? Quase não deu pra ver que era um gato! – exclamou o do meio.
– Acho que ele tá perdido – opinou outro. – Tem até uma coleirinha!
– Vem cá, bichano – chamou a única menina, tentando fazer com que ele viesse, mas, logicamente, como gatos são metidos e bastante interesseiros, ele achou muito mais interessante prosseguir com a limpeza de seus lindos pelos.
– Gato sem graça! – outro comentou.
Pela falta de outras coisas interessantes a fazer naquele lugar, as crianças continuaram a olhar o gato por tempo suficiente para a chuva cessar; assim que ela parou, ignorando totalmente as poças de lama e mesmo sabendo que levariam xingos de sua mãe até o dia seguinte, eles pegaram suas pipas e começaram a empiná-las no meio da rua, como se propositalmente para atrapalhar os carros.
Só a menina ficou lá, sentada, do lado do gato, olhando e esperando a sua oportunidade até que o felino permitisse ser acariciado. E, depois de um longo tempo, quando ele se deu por satisfeito de toda a sua lambição, deixou que a menina passasse a mão.
Contudo, pouco tempo depois, o gato começou a tossir e espernear de uma forma muito esquisita; desesperada, a menina gritou por seus irmãos, falando que o bichano estava passando mal, estava convulsionando, esturricando, empachando, escatambando, esculhambando e um monte de outras palavras esquisitas que ela inventou na hora, e todos os outros quatro vieram e se postaram ao lado do felino, todos falando ao mesmo tempo uma dezena de coisas sem sentido, como puxá-lo pelo rabo ou pegar um peixe para bater nas suas costas.
Por fim, o gato parou de se retorcer e vomitou uma pequena bolota, uma mistura de sabe Deus o quê com o que provavelmente seria um filhote de cruz-credo, tão nojenta que nem mesmo o mais nojento dos irmãos, aquele que comia caca de nariz e guardava pum em potes de vidro, teve coragem de olhar por muito tempo.
Não houve outra opção.
Tinham de buscar ajuda profissional.
Devia ser grave.
– Mããããããããeeeee! – gritaram todos de uma vez, exceto pela menina, que estava segurando o gato como se ele estivesse em seu leito de morte.
Rapidamente lá estava a mãe, secando as mãos no avental e olhando para a filha, segurando o gatinho, e a bola de cuspe que se encontrava no chão.
– De onde surgiu este gato? Não vão me dizer que agora vocês roubaram gato de rico!
– Ele apareceu aqui! – todos exclamaram.
– E ele começou a tremer e tossir e aí ele cuspiu aquela coisa nojenta e… – disparou a menina, em meio a prantos e recantos. – Ele não vai morrer, né, mamãe?
– Não… Gatos sempre fazem isso. Eles se lambem e depois põem tudo para fora.
Ela mandou que um dos filhos lhe trouxesse um saco de lixo e, com a mão dentro, ela pegou a bola cuspida, que lhe pareceu extremamente pesada.
– Mas que esquisito! É pesado demais para uma bola de pelos…
Ela foi para o quintal, pegou a mangueira e esguichou água, desfazendo a bola, até que…
– Nossa! O que é isso? – perguntaram os cinco filhos de uma vez, encarando uma pedra redonda, brilhante e do tamanho do olho de uma pessoa, caída no chão.
– Não sei… Uma coisa brilhante dessas… Parece uma joia, não é?
As crianças ficaram saltitantes.
– O Peludo cospe diamantes! O peludo cospe diamantes! – exclamavam.
– Não pode ser – a mãe falou, pegando a pedra em mãos, mas brilhava demais para não ser. – Será que é, mesmo?
Ela olhou para os seus filhos e tomou uma decisão rápida.
– Fiquem todos aqui e não saiam! E também não deixem ninguém entrar. Eu vou para a cidade e já volto.
– O que você vai fazer?
– Descobrir se isso é o que eu penso que é, mesmo.
E assim, colocando a sua roupa de missa de domingo, que era a melhor que tinha, a mãe se foi para o centro da cidade, algo que demorou três horas, de tão longe que ela morava. Quando chegou, não foi difícil achar uma daquelas lojinhas que avaliavam ouro e pedras.
– Isto aqui é um diamante – disse o ourives, encarando a peça com uma daquelas lentes que se coloca em um olho só. – E um diamante muito fino, bem trabalhado e caro.
– Quanto vale? – ela perguntou, esperançosa.
– Mais do que você pode juntar de dinheiro em toda a sua vida – ele respondeu. – Onde conseguiu? – indagou, desconfiado.
Para sua sorte, porém, aquela mãe era esperta, acostumada que estava com a vida na periferia, e rapidamente tomou a pedra das mãos do joalheiro e a guardou na bolsa.
– Foi herança da minha avó. Acabei de receber.
– Não vai querer vender ou penhorar?
– Não, obrigada. Só queria saber se era verdadeiro.
E, com isso, ela foi embora; assim que saiu da loja, andou o mais rápido que pôde e pegou o primeiro ônibus que surgiu. Nunca teve tanto medo em sua vida – estava carregando algo que tinha o valor de um carro importado, uma mansão, talvez até mesmo um barco! Se alguém a assaltasse, estaria perdida!
Só se sentiu segura quando entrou em sua casa e trancou a porta; as cinco crianças estavam sentadas nos colchões, assistindo à televisão, e a menina, que acariciava o gato insistentemente, apontou:
– Veja, mamãe! Estão procurando o Peludo!
E realmente estavam; na televisão, a rica família dona do animal havia feito uma propaganda de quinze segundos, pedindo que ajudassem a encontrá-lo. Pagariam bem, diziam, para quem o devolvesse.
– Têm certeza que é ele?
– Parece que tem um número de identificação na orelha – um dos garotos falou. – 7283. E a gente olhou, e tem mesmo.
– Temos de ligar para eles – disse o mais velho, que era mais consciente do que era certo e errado.
– Não, mamãe, por favor! Eu quero ficar com o Peludo para mim!
Ela teve de admitir que ficou, realmente, por alguns segundos, talvez longos demais, pensando no que fazer. Afinal de contas, peludo havia aparecido lá por conta própria – ninguém tinha roubado ou coisa parecida. Além disso, depois de descobrir que ele cuspia diamantes – e diamantes de verdade! –, como poderia devolvê-lo? Aquela seria a solução para todos os problemas da sua vida!
Olhou para o gato; será que a família era rica por causa disso? Ou já era tão rica, mas tão rica, que até o seu gato cuspia pedras preciosas? Será que o cachorro fazia cocô de ouro e xixi de rubis pelas paredes? Era bem possível para aqueles milionários excêntricos.
Neste momento, seu marido chegou e, tão logo lançou um olhar de asco para o gato – detestava animais de estimação, especialmente gatos, que soltavam pêlos por toda a casa e faziam espirrar –, as crianças saltaram e gritaram tentando explicar a situação.
Mas a mãe fez todos pararem e explicou tudo rapidamente – inclusive o fato de ele cuspir diamantes de verdade.
– Isso pode significar uma mudança na nossa vida! Podemos finalmente ter uma vida decente… Um quarto para cada um… E comida em todas as refeições!
Seu marido ficou um pouco pensando; e, quando o gato teve outro de seus chiliques e cuspiu uma pedra ainda maior, ele decidiu que gatos eram seus animais favoritos a partir de então e que cederia sua cama com o maior prazer, caso ele quisesse ficar com ela.
Logo foi o maior fundúncio; todo mundo queria ficar com o gato diamanteiro. Exceto pela menina, que conforme acariciava Peludo com mais e mais afinco, vendo seus olhos azuis esbugalhados, lembrou-se da pobre garotinha que aparecera na propaganda, sua dona de verdade, que com certeza estava sofrendo muito mais do que ela.
– A gente precisa devolver ele – ela disse, finalmente, impondo-se diante de discussões acaloradas sobre qual helicóptero comprar. – Ele não é nosso, e alguém está sofrendo porque ele não está lá.
– Qualé, Mana! Eles compram outro gato! Eles podem comprar um exército de gatos Persas! Aliás, eles podem comprar a Pérsia inteira! – disse um dos garotos do meio.
– A Pérsia nem existe mais, seu mané – retrucou o mais velho, dando-lhe um pedala na nuca.
E logo voltou a discussão, mas a mãe se sobrepôs a todos.
– Ela está certa. Precisamos devolver o Peludo para a sua família de verdade. Alguém anotou o telefone? Certo… Espero que aceitem ligação a cobrar…
Eram quase dez horas da noite, quando a família chegou; vieram com dois carros de escolta armada, um na frente e outro atrás, e, mesmo sendo de noite, a mãe desceu de óculos escuros, chapéu, um lenço cobrindo o nariz, um conjuntinho de saia e blazer brancos e uma bolsa, da qual saía a cabeça de um minúsculo chihuahua, aparentemente vivo, pois estava ladrando como todo bom cachorro minúsculo (todos sabem que, quanto menor o cachorro, mais ele late).
Do banco de trás saltou uma garotinha, que correu para a porta.
– Pérsio! Pérsio, cadê você? Ah, aí está! – ela exclamou.
Foi a mãe quem abriu a porta; todos se postaram atrás dela, acotovelando-se para enxergar, enquanto a menina, segurando o Peludo em seus braços, deu um passo à frente.
– É o seu gato?
– Acho que é, sim. Deixe eu ver a orelha, mostre para mim.
A menina mostrou a orelha do gato, onde o número estava visível, e a riquinha se deu por satisfeita.
– É ele mesmo. Jarbas!
Com isso, um homem vestindo um fraque saiu do banco do motorista, carregando uma caixa gradeada e, com um par de luvas, pegou o gato da mão da garota e o colocou sem o menor cuidado dentro da caixa. Em seguida, jogando as luvas de látex no chão, levou a gaiola embora, com a riquinha seguindo atrás.
– E desta vez, mande colocar o localizador de GPS na orelha dele, pra gente não precisar vindo aqui neste fim de mundo toda vez que… – falou ela, enquanto entrava no carro com a porta aberta por ele.
– Está certo. Ahm… – disse a ricaça, olhando ao redor. – Bonita casa. E… Espero não nos vermos mais. Au revoir!
– Ei, madame – disse a mãe, brava. – A senhora disse na televisão que ia dar uma recompensa para quem entregasse o gato. E nós cuidamos muito bem do Peludo. Só não demos banho, porque ele não deixou.
Ela torceu o nariz, como se, só de imaginar o gato tomando banho naquele lugar, teria de mandá-lo para esterilização antes mesmo de deixá-lo entrar no carro – mas agora já era tarde.
– Jarbas! Cuide disso!
O motorista levantou, pegou a sua carteira e entregou a menor nota que encontrou.
– O quê? – o marido perguntou. – Isto é a grande recompensa?
– Não tenho dúvida de que é mais do que você ganha em um mês de serviço. Arrivederci!
E, com isso, os carros foram embora; os sete se olharam, inconformados.
– Família de mesquinhos! – exclamaram os garotos. – Ricos nojentos, metidos a besta! Como se a gente não fosse tudo do mesmo lugar, no final!
A menina ainda ficou olhando os outros partirem, antes de dar a volta com o braço de sua mãe em seus ombros.
– Mãe, tem certeza de que a gente fez a coisa certa?
– Espero que sim, filhinha – ela respondeu. – Afinal, o gato não era nosso.
– E será que a gente não deveria ter falado dos diamantes?
– Bom, se eles soubessem de alguma coisa… Acho que eles teriam falado. Qualquer coisa, eles vão voltar aqui, com certeza. Mas, se quer saber… Acho que o peludo só fazia isso para quem merecia. E aqueles frescos não merecem, mesmo!
Depois de alguns dias, quando estava novamente chovendo tristemente naquela rua tristemente esburacada e enlameada, a menina ouviu um ronronar familiar e… Ora! Lá estava o Peludo mais uma vez!
– Mãe! O Peludo voltou!
– Cumé? – ela perguntou.
E era verdade; lá estava o gato que, depois de se ouriçar inteiro, cuspiu um diamante ainda maior. E, na sua orelha, onde antes estava o número tatuado, agora havia também uma bola brilhante, do tamanho de uma ervilha, que mais parecia um piercing.
Pouco depois, alguém bateu à porta; seriam os donos do Peludo? Já o haviam encontrado, tão rápido assim? E, vendo o gato lá mais uma vez, será que iriam dizer que ele tinha sido roubado?
– Esconde esse diamante – disse a mãe. – Eu vou abrir a porta.
E, secando as mãos no avental, lá foi ela mais uma vez; entretanto, quem estava na soleira não era nenhum dos ricaços. Era um homem aparentemente comum, com uma cicatriz na bochecha esquerda, a barba mal feita, e os cabelos já esbranquiçando.
– Quem é você? – ela perguntou.
– Meu nome não é importante – ele respondeu. – Mas vejo que vocês estão com mon petit voleur.
– O quê? Valor o quê? – perguntou a menina.
– Péti, maninha, péti, que nem de péti chópi! Ele deve tá falando do gato dele – falou o irmão mais velho.
– Jacques! – ele falou, batendo palmas, e o bichando imediatamente saltou do colo da garota para as mãos dele. – Este aqui é o meu gato.
– Mas… Ele era daquela família rica… – falou a menina. – Até colocaram um localizador na orelha…
O homem deu uma risada.
– Jacques era um hóspede temporário daquela casa. Por um acaso ele… Cuspiu algum diamante por aqui?
Todos se olharam com cumplicidade.
– Não tem problema. Não me importo de dividir e, ao que parece, vocês estão precisando, mesmo. Mas, se querem um conselho, usem o dinheiro com sabedoria, se não, ele acaba. Agora, se me dão licença, o Jacques tem outras casas para se hospedar.
– Mas, senhor – disse um dos garotos, quando o homem já estava a sair pela porta. – Os ricaços vão encontrar vocês!
– Eu vou dar um jeito neste localizador, já, já. Assim que estiver longe daqui.
– Ei, senhor – disse a menina, por fim, timidamente, quando ele já estava praticamente fechando a porta. – Deixa ele vir visitar a gente de vez em quando.
– Pode deixar, que eu falo para ele vir – ele respondeu e desapareceu pela porta.
Ao que parece, aquela família de ricaços nunca mais conseguiu achar o seu gato e ficou extremamente surpresa quando percebeu que sua caríssima coleção de diamantes havia simplesmente desaparecido.
Os Silva se mudaram para uma casa melhor e passaram a comer todas as refeições a que tinham direito e mais uma de brinde; não sofreram mais pela falta de ventilador ou cobertor, e, sempre que precisavam, o Peludo aparecia para lhes dar uma ajuda – ou, simplesmente, ganhar mais um cafuné.
Nota do autor, outubro de 2021: ah, um gato ladrão, a estilo Robin Hood! Adoro essa história! Melhor que a história da galinha que bota ovos de ouro! Não tenho certeza exatamente de onde veio a ideia, mas, como já disse em outra nota, nesta época tinha trabalhado com Tatiana Belinky na coleção Clássicos Recontados e estava bem animado com contos de fadas – mas, na verdade, contos de fadas re-editados. Modernos! Urbanos! Nada mais urbano que um gato ladrão!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais