O homem da voz de rato
Marcos era um homem que se dizia Macho, assim mesmo, com M maiúsculo. Ou melhor, M másculo. Em tudo o que ele fazia, tentava ser o mais masculino possível – terminava de comer e arrotava, soltava gases em público, coçava seu sovaco e outras partes íntimas na frente de quem fosse, cuspia no chão e não tinha medo de nenhum desafio. Ia à academia todos os dias, treinava pesado e era um brutamontes, daqueles tipo armário, com o braço apenas um pouquinho menor do que a cabeça. Mas só um pouquinho.
O único problema era a voz de Marcos: por mais que se esforçasse para parecer um troglodita, sua voz acabava com toda a sua imagem. Talvez, justamente por isso que ele se esforçasse tanto para parecer tudo aquilo – ao menos, enquanto estivesse com a boca fechada, parecia um verdadeiro neandertal.
Pois bastava ela abrir a sua boca e falar algo para que um guincho semelhante ao de um rato se produzisse. Sua voz era tão ridiculamente fina, que toda vez que atendia o telefone, a pessoa do outro lado da linha pedia para que ele chamasse o seu pai ou o responsável da casa.
Certo dia, Marcos se cansou. Não iria mais aceitar zombarias de seus colegas de trabalho, de academia, vizinhos, até mesmo do entregador de pizza, ora vejam só! Iria dar um jeito de tornar a sua voz mais grossa.
Procurou pela internet e encontrou um hormônio que não só engrossaria sua voz, como ainda faria seus músculos crescerem ainda mais. Seriam dois coelhos com uma cajadada só! Perfeito!
Mal podia esperar chegar; e, quando chegou, foi logo aplicando todas as três ampolas, sem dar a menor bola para a bula e as instruções, que diziam claramente para nunca aplicar mais de uma por mês.
No começo, não sentiu nada; a noite, porém, foi muito esquisita, repleta de calafrios, tremeliques e coçadinhas nos pés, como se houvesse um espírito ao pé da cama para puxá-los. E, no dia seguinte, ao se levantar… Não se reconheceu no espelho. Estava tão grande, que seus músculos haviam rasgado seu pijama durante a noite. Além disso, todos os pelos do seu corpo haviam crescido, e ele só conseguiria encontrar pele se enfiasse metade do seu dedo entre eles. Na cabeça, por outro lado, não tinha sequer um fio de cabelo, e até as sobrancelhas rarearam.
Ah, e podia sentir que estava cheio de espinhas, até em lugares que nunca imaginara que elas poderiam aparecer. É, esses mesmos que você está pensando.
Resolveu testar a voz: estava um pouquinho mais grossa. Já imporia mais respeito!
Entretanto, quando aquela bola de pelos, músculos e espinhas entrou na academia, depois de quase matar todos de susto, quase os matou de risadas: parecia um personagem saído de um filme de terror tipo B, aliás, C, não, para falar a verdade, tipo Z, mesmo! Falaram até mesmo para ele tirar a fantasia, que ainda não era dia das bruxas.
Marcos ficou totalmente envergonhado, tentou entrar na brincadeira, dizendo que estava realmente só testando uma fantasia, e voltou logo para casa. Usando um casacão, um chapelão, cachecol e óculos escuros, no meio do calor infernal que fazia no verão, ele foi buscar seu médico de confiança.
– Meu amigo, eu vou lhe dizer, eu nunca vi uma coisa dessas antes! – o médico exclamou.
Ele, logicamente, não tinha falado por que tentara usar as injeções; o médico simplesmente supôs que deveria ser para ficar mais forte, e ele achou melhor deixar por isso mesmo.
– Mas nós vamos dar um jeito nisso.
O doutor lhe deu trinta pílulas de hormônios, para contrabalançar o que ele havia tomado, e o mandou para uma clínica de estética, onde fizeram uma depilação com cera completa, em todos os lugares do corpo (isso, até mesmo nesses que você pensou), uma limpeza de pele, que arrancou todas as suas espinhas, uma por uma, e um implante de cabelos. Marcos gritou tanto durante o tratamento, que, do lado de fora, as pessoas ficaram aflitas.
– Meu Deus, o que estão fazendo com essa criança?! – exclamavam as mães.
E, quando ele saiu, mais parecendo um rato gigante escaldado, ninguém conseguiu esconder o riso.
Marcos teve de esperar um pouco, ao menos, até os remédios fazerem efeito, antes de procurar por ajuda. Mas, depois de quinze dias, quando percebeu que seus músculos já haviam voltado ao normal, assim como seus pelos e seus cabelos, notou também outra coisa… Estava ficando mais sensível, com a voz ainda mais fina, e estavam crescendo peitinhos, quase ao ponto de precisar de sutiã. Foi quando chorou ao fim de uma comédia romântica que passava para as mulheres frequentadoras da sua academia, que percebeu que algo estava errado e decidiu jogar os remédios fora.
E lá ficou o nosso caro homem da voz de rato, sentado na sarjeta, sem saber o que fazer e com uma vontade louca de comer chocolate.
Foi quando viu passar um carrinho de churros, com uma dezena de balões atados à sua lateral. Foi correndo comprar dois, logo de uma vez, e, enquanto se lambuzava todo com seus recheios de doce de leite e chocolate, observou as bolas coloridas flutuando. Teve uma ideia. Apontou para o tanque de gás hélio, esfregou um dedo no outro e tirou a carteira do bolso – o churreiro falou um valor abusivo, pois não queria vender o tanque, já que lhe daria o maior trabalho adquirir outro, mas o nosso amigo não se importou. Pagou tudo à vista e pegou o tanque, todo feliz, carregando-o no ombro como se não fosse nada além de um travesseiro de plumas de ganso.
Só pôs seu plano em ação em casa: colocou-o no chão, pegou sua mangueira e puxou o gás. Não tinha como ficar com a voz mais fina do que já era – portanto, quem sabe, o gás não a tornaria mais grossa?
Mas não foi bem isso o que aconteceu. Chupou tanto gás hélio, que já estava praticamente flutuando como um zepelim, mas sua voz permanecia fina como sempre. E, lá no teto de sua casa, segurando-se para não sair voando pela claraboia, começou a chorar. Especialmente porque seu peito estava doendo, e ele podia jurar que aquela época do mês estava chegando.
Foi, porém, flutuando em sua casa que ele viu um garoto passeando pela rua com um presente que acabara de ganhar: era uma máscara, através da qual falava, e sua voz se tornava grossa como a de um ogro.
– Eu preciso daquilo! – ele gritou, e sua voz foi tão estridente, que os seus copos de cristal racharam.
Eliminou seus gases de todas as formas que conseguiu e, quando já estava no chão – porém, ainda tão leve quanto um astronauta pisando na Lua –, correu para perguntar ao menino onde havia comprado. O garoto ficou tão assustado com o homem, que saiu correndo, deixando a máscara cair no gramado. Marcos tentou o máximo que pôde explicar o que estava acontecendo e devolver a máscara, mas o menino já estava longe; restou-lhe, então, testar.
– Som, som. Testando, um, dois, testando. Som – ele falou. E sua voz parecia a de um pato biônico. Aliás, uma pata biônica.
E. na casa ao lado, onde a criança havia se escondido, ela ria como nunca, enquanto olhava pela janela.
É, não tinha jeito! Marcos arremessou a máscara de volta para o garoto e voltou pisando duro no chão, jogou-se no sofá e ficou trocando os canais da televisão, aleatoriamente. Ficou assim por horas e horas, ininterruptas, até que, no meio da madrugada, foi invadido por uma súbita inspiração. Não sabia se havia sido uma fada madrinha, ou simplesmente os desenhos que estavam passando, mas aquilo pareceu a solução para todos os seus problemas!
No dia seguinte, foi se apresentar em uma empresa e foi imediatamente contratado. Em poucos dias, seu primeiro trabalho ia ao ar.
Rapidamente, Marcos tornou-se o mais famoso dublador de desenhos animados de que já se tem notícia. Aprendeu a falar em diversas línguas, para que conseguisse dublar para os mais variados países; depois, contratou uma fonoaudióloga, para ensiná-lo a falar um pouco mais grosso – e conseguiu. Ele só precisaria falar o mínimo necessário, pois, logo que as pessoas o encontravam, onde quer que fosse, reconheciam-no como o famoso dublador e lhe pediam que fizesse uma daquelas vozes – o que ele fazia sem a menor dificuldade.
Assim, em pouco tempo ele foi transformado do mais zombado da academia, no ídolo de todos eles. E todos achavam que ele só fazia a voz fininha para dublar – afinal de contas, que homenzarrão daquele tamanho poderia ter uma voz tão fina?
E, se quer saber, ouvi dizer por aí que tem até uma banda de rock que está interessada no vozeirãozinho do Marcos… Mas não vou dizer qual é, para não estragar a surpresa.
Nota do autor, setembro de 2021: a inspiração para este conto veio, logicamente, dos homens que usam hormônios para ficarem mais forte e, como consequência, ficam com a voz mais fina.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais