O Homem de Face e Mão Direita Imortais
Um dia, Michel acordou. O que não seria nada anormal, uma vez que todos fazemos isso todos os dias, exceto os que morrem, os quais deitam para não mais acordar, enfadados com o cotidiano. O caso, porém, é que, um dia, Michel acordou, e seu corpo inteiro estava cheio de rugas, enquanto seu rosto e sua mão direita permaneciam… Jovens.
Não que isso tenha acontecido de repente; ele já havia reparado que uma parte de seu corpo não envelhecia a uma velocidade normal, mas nunca dera muita importância, até que, finalmente, olhou no espelho e um clique se fez em sua mente, como uma engrenagem depois de séculos girando; ele percebeu o que até então não havia percebido, como num passe de mágica, muito embora tivesse estado lá já havia um bom tempo.
– Como? – perguntou-se.
Uma parte sua simplesmente estava mais nova. Em seu rosto, o contorno dos olhos estava perfeito, não havia qualquer marca do tempo, a barba, por fazer, estava toda preta, sem falhas. A testa, entretanto, chegava a mostrar alguns sulcos, enquanto o cabelo, por sua vez, apresentava túneis, entradas, saídas e viadutos, todos brancos, com um ou outro bravo guerreiro ainda escuro. Do mesmo modo, suas mãos ainda estavam da mesma cor de quando jovens, sem qualquer marca além das naturais. Quer dizer, a sua mão direita, porque, ao compará-la com a esquerda, não se diria em lugar algum que pertenciam à mesma pessoa.
Ainda apenas imaginando, pegou o seu aparelho de barbear. Parecia tão… Não sabia. Quanto tempo fazia que não trocava de aparelho? O cabo estava velho, quase se desfazendo, enquanto a cabeça permanecia perfeita, nova, como se nunca tivesse sido usada, muito embora todos os dias estivesse lá prestando serviço para a floresta negra matinal.
– Acho que eu deveria ir no médico…
E assim ele foi; deu um beijo na sua esposa, vestiu seu sobretudo, colocou seu chapéu, guardou cuidadosamente as mãos nos bolsos para que não congelassem e caminhou pelas ruas; olhando-o assim, podia-se jurar que tinha só 20 anos.
Não sabia exatamente em qual médico ir; geriatra? Pediatra? Dermatologista? Talvez este fosse mais adequado, de modo que seguiu para o lugar onde sua esposa costumava retirar verrugas.
Após contar a sua história para o médico, ele não acreditou, e somente depois de um exame muito minucioso, a boca aberta de espanta, aceitou a realidade.
– Mas, como?
Ele saiu da sala, e, em poucos minutos, todo mundo do consultório – incluindo o filho da vizinha da prima da faxineira – estavam encarando Michel, sem acreditar naquela façanha da sua pele, a qual se mostrava ora velha, ora jovem.
– Como? – mutuexclamaram.
O médico não sabia o que fazer.
– O que você quer, um creme de envelhecimento?
– Não sei. Não existe creme de rejuvenescimento para o resto da pele?
– Não que eu saiba.
– Mas existe um de envelhecimento?
– Também não, que eu saiba.
– Então que diabos eu posso fazer?
– Transplante de face?
– Mas eu não quero envelhecer a minha cabeça! Eu só quero que ela fique da mesma idade que o meu corpo, ou vice-versa.
– Vou te encaminhar para um neuro…
E o senhor foi para um neurologista, onde o mesmo se deu. De lá, para o geriatra, para o pediatra e, por fim, para o ortomolecular, o qual lhe deu um par de injeções e um monte de cápsulas para tomar em casa. No fim, ele acabou cheio de espinhas de um lado, com pêlos saindo da orelha do outro e com as costas inteiras vermelhas e ardendo, de modo que tinha de deitar de bruços no divã do psiquiatra que passara a lhe fazer acompanhamento psicológico.
Em questão de duas semanas, a cidade inteira só falava de Michel e sua cabeça e mão não envelhecidas. A manchete do jornal foi um: Como?
Depois de alguns dias, ele foi mandado para o maior centro de pesquisas do mundo, nos EUA, onde foram feitos diversos tipos de exames, a partir de biópsias, para chegar à conclusão de que a pele era, de fato, mais nova do que a outra. O porquê, ninguém sabia.
Uma vertente de cientistas se separava na crença da membrana basal, fosse ela o que fosse e fizesse o que fizesse; uma outra parte acreditava que era alguma substância depositada na pele; outra, ainda, cria na pedra filosofal, e uma quarta acreditava em Papai Noel, o que não tinha nada a ver com a pesquisa, mas enfim, cientistas são assim mesmo.
Indecisão por indecisão, Michel voltou para casa todo espetado e com diversas partes do corpo retiradas para pesquisa depois de um mês e se jogou na cama; havia decidido dormir por quatro ou cinco dias.
Ao se levantar para fazer a barba, pegou o seu barbeador imortal e o encarou; a lâmina estava quase toda enferrujada, muito embora tivesse permanecido nova por vários… Dias, semanas ou meses, ele não sabia. Como não tinha outra, resolveu se virar com aquela mesmo, passou creme de barbear no rosto, retirou a selva que havia se formado e, quando estava lavando o aparelho, milagre!; a lâmina estava nova de novo.
– Como? – indagou-se mais uma vez.
Passou um pouco de creme na mão esquerda; ela ficou como nova. Depois, mais um pouco na testa, esfregou, esfregou, e os sulcos haviam sumido. Olhou bem para aquilo; tinha o creme de barbear da juventude!
Mas o que fazer com aquilo?
Quando contou para a sua mulher, ela não hesitou:
– Vende! A gente pode conseguir muito dinheiro com isso!
– Mas eu não quero vender… Isso é a fonte da juventude!
– Dinheiro também é!
– Mas eu não quero perder a chance de permanecer jovem para sempre…
– Tudo bem – respondeu ela, talvez complacente demais. – É seu; se você não quer, o problema não é meu.
E não era mesmo; no dia seguinte, havia trilhões de jornalistas e pessoas batendo à porta de Michel, implorando pelo creme mágico; havia cientistas querendo examiná-los, médicos querendo a marca, farmácias requerendo a posse da fórmula, de modo que ele não podia sair de casa. Mais um pouco e a estariam invadindo pelas janelas.
Depois de duas horas assim, na qual estava trancado em um quarto que, jurava, balançava, ele não aguentou e foi para o lado de fora da casa, ainda de roupão e com a barba por fazer.
– Aqui está o creme milagroso! – anunciou, aos berros. – E ele é todo meu! – riu loucamente, engolindo-o inteiro.
Um Óóóóóóóóóóóó! ecoou por todo o lugar, enquanto a população o encarava, surpreso. Ele os encarou.
– Mas eu ainda tenho um restinho, trouxas! – disse e jogou o frasco para os leões, que se digladiaram para pegá-lo.
No dia seguinte, Michel não acordou; morrera no meio da noite, intoxicado pelos produtos químicos do creme, muito embora sua pele estivesse jovem como a de uma criança.
E, sua esposa notou, a privada estava brilhante como nova.
Nota do autor, setembro de 2021: não sei de onde eu tiro essas sacadas, mas eu gosto demais dessas histórias sem pé nem cabeça que compõem a coleção Contos de Fadas Modernos.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais