O Homem Imortal
Danúbio era o que se poderia chamar de um cara normal. Não fazia absolutamente nada de excepcional, trabalhava como qualquer outro, brigava para conseguir pagar os impostos, sonhava com a casa própria, essas coisas de gente comum. Danúbio, no entanto, tinha algo de diferente do resto da população: morria de medo da morte.
Quer dizer, todo mundo provavelmente tem medo da morte, mas ele morria de medo da morte, literalmente. E, aos seus 40 anos, aquele momento da crise de meia-idade, ele resolveu procurar soluções para a sua mortalidade. Tinha de haver uma forma de conseguir viver para sempre!
Pegou todo o dinheiro que já tinha juntado em sua vida, vendeu seu carro e seus poucos pertences e saiu pelo mundo à procura de respostas. Identificou traços da pedra filosofal; encontrou relatos e receitas de como fazê-la; substituiu as escamas de dragões cuspidores de fogo pela escama de um dragão de Komodo gratinada com um maçarico; e, numa noite de magia, fogos de artifício e tanta fumaça que sua asma quase o matou, ele confeccionou a pedra.
Que, logicamente, não funcionou. Afinal de contas, as escamas de Komodo nem de longe chegavam perto das escamas de um dragão de verdade (realmente, ele pensou que, se ele fosse casado, ele poderia pegar pedaços da pele da sua sogra, mas, como ele não era, este tipo de dragão não daria certo) e o queijo gorgonzola já tinha passado do ponto.
Mas ele ainda perseverou em sua busca; e, no meio de uma pequena aldeia em algum ponto da Europa oriental, ele encontrou um livro de feitiços e invocações de seres mágicos. Danúbio, apesar do seu medo mortal, era um homem de bem, e a primeira coisa que ele fez foi tentar invocar um anjo. Juntou penas de pomba com pele de carneiro, mirra (que ele nem sabia o que era), fogo virgem e água benta quente, mas não fervida, e conseguiu chamar um tal de Mastiel. O ser tinha dois, não, três ou quatro metros de altura, asas gigantescas, olhos de fogo e cabelos brilhosos (certeza que ele usava gel e pomada!).
Não falou absolutamente nada.
– Seu anjo, como eu faço para me tornar imortal? – ele indagou. – Não tem alguma forma de pacto que podemos fazer?
– A única forma de te tornares imortal é se tu fizeres um pacto com Deus.
– E aí eu vou viver para sempre?
– Sim.
– Quer dizer que eu não vou morrer? – ele questionou; sabia por experiências anteriores (i.e., a Bíblia) que era muito importante falar em detalhes e minúcias com anjos, porque eles adoravam falar em mensagens cifradas e dificilmente compreensíveis.
– Teu corpo terreno perecerá, mas tua alma retornará para junto de Deus, se estiver apta.
– Mas não é isso que eu quero, seu anjo!
Os olhos faiscaram.
– Desculpe, me expressei mal. O que eu quero é continuar para sempre no meu corpo. Sabe?
– Não posso fazer este tipo de coisa.
– Mas Matusalém viveu um monte! E Noé, e Abraão, e…
Mas o anjo desapareceu.
Pela falta de opções divinas, Danúbio decidiu recorrer ao lado das trevas. Então, lendo o livro no espelho e de ponta-cabeça, ele achou como fazer as poções para invocar um demônio. Juntou penas de urubu com pele de hiena, erva daninha (isso ele sabia o que era), fogo-fátuo e água podre fria (mas não congelada) e conseguiu chamar um tal de Trowley.
– Em que posso ajudá-lo? – o ser indagou; apesar de ele imaginar que seria um bicho vermelho, chifrudo, de dentes afiados, cauda pontuda e tridente na mão, parecia um simples bancário, inclusive de oclinhos e jeito atarracado.
– Eu quero me tornar imortal.
– Certo… Mais alguma coisa?
– E que não me falte dinheiro! – ele adicionou, rapidamente.
– Muito bem, podemos fazer um acordo. Sua alma pela imortalidade… Por dez anos.
– Não, não, você não entendeu. Eu não quero morrer.
O demônio parou; estava diante de um problema logístico. Se o homem não podia morrer, nunca morreria (lógico); e, se nunca morresse, nunca entregaria a sua alma para ele.
Porém…
– Então, deixe-me ver se eu entendi. Você não quer morrer e não quer que o seu dinheiro acabe, é isto?
– Exato.
– Uhm… – ele pensou; rapidamente, um notebook surgiu à sua frente (sim, demônios também se tornaram adeptos à tecnologia) e, com uma velocidade fora do comum, ele redigiu um contrato, que imprimiu em pleno ar e explicou para o Danúbio, tintim por tintim (até as letras miúdas!). – Este pacto não tem volta, nem devolução, nem troca, mas você pode efetuar o pagamento antes do prazo.
– Certo! – o outro respondeu, todo empolgado, e assinou sem hesitar.
No dia seguinte, sua vida mudou; a conta bancária tinha um valor exorbitante, e ele se sentia mais forte e poderoso do que nunca.
E ele começou a aproveitar a vida. Entretanto, no ano seguinte, quando foi fazer a declaração de imposto de renda… De onde surgia tanto dinheiro? O que ele estava fazendo? Era um autônomo, mas que raios de trabalho fazia que lhe rendia tantos e tantos milhões?
Foi preso pela Polícia Federal e, na prisão, invocou Trowley de novo; queria um novo trato. Como nunca iria morrer, sequer se preocupava em pagar a dívida, e o demônio, sem hesitar, pôs Danúbio do lado de fora da prisão. Literalmente. A dois metros da porta. A polícia o perseguiu, houve troca de tiros, ele foi baleado, mas sequer sentiu, apenas ficou com o metal nos ossos; fugiu do país, sacou o dinheiro no exterior, foi para outro país ainda e começou a viver escondido. Mas o dinheiro nunca lhe faltou na sua conta da Suíça.
Trinta anos depois, envelhecido, mas nunca doente, ressurgia como um grande investidor bilionário, com festas de arromba, esposas modelos quase menores de idade, carros de luxo e todas estas futilidades a que tinha direito.
E o tempo foi passando, e Trowley ficou esperando…
Seus joelhos foram ficando fracos, e ele não conseguia mais andar; mas Danúbio já havia esperado que isto talvez acontecesse (demônios eram espertos!) e, com todo o dinheiro que tinha, pagou para lhe colocarem próteses nos joelhos. E nos quadris. E nos ombros e cotovelos. Logo, ele parecia um homem biônico. E, também, quando os rins começaram a falhar, ele comprou órgãos novos no mercado negro – como não poderia morrer, não estava nem aí para tomar os remédios imunossupressores do transplante. Logo, o coração também começou a falhar, e ele o trocou; e os pulmões; e o cérebro foi ficando meio lerdo, mas ele treinava todos os dias com palavras cruzadas, usava hormônios sem se preocupar com os efeitos colaterais, aplicava toxina botulínica, fazia plástica, implantava cabelos e, aos 140 anos de vida, parecia não ter mais do que 50.
No inferno, Trowley se retorcia de raiva; o homem havia lhe passado a perna! Não tinha contado com a evolução da medicina! Deste jeito, logo ele trocaria o corpo todo e não morreria nunca! Teria de esperar a civilização humana ruir, ou o Sol apagar, ou Andrômeda se chocar com a Via Láctea, para, talvez, conseguir sua alma – se é que ele não iria sobreviver a isso também!
Decidiu reler o contrato, detalhe por detalhe, caçando nas letras miúdas. E identificou uma pequena falha…
– Ele não pode morrer… Mas ninguém disse que não pode ficar doente…
E, com um estalo de dedos, Danúbio teve uma pneumonia brava. Sobreviveu, mas ficou 22 dias na UTI. E, no dia seguinte, quando estava para ter alta, descobriram um tumor que já estava se espalhando pelos ossos. Fez quimioterapia, retalharam metade dos seus ossos, reconstruíram tudo, mas ele sobreviveu. E aí foi a vez do cérebro; ele começou a perder a memória, deram remédio, implantaram chips e tudo o que tinham de mais tecnológico, fizeram de tudo, e o homem simplesmente não morria.
Passou dez anos dos quais apenas 3 dias ficou em casa; persistia somente pela teimosia.
Mas, na sua última internação, quando estava para trocar os intestinos por tubos robóticos e consertar os membros robóticos avariados, cansou. Sozinho, em seu quarto, chamou por Trowley, e o bancário apareceu ao seu lado.
– Estou cansado, Trowley. Não quero mais ser imortal.
O demônio sorriu.
– Este contrato não tem volta.
– Mas eu posso – ele falou, respirando devagar por causa da máquina que o ajudava a respirar – pagar antecipado, não?
– Como desejar.
E assim, Danúbio, o homem imortal, morreu. Trowley levou sua alma para sofrer pela eternidade, e nós ficamos apenas com a moral da história, que poderia ser para não se vender a um demônio, mas que, na verdade, fica mais justa sendo: “Pense bem antes de redigir um contrato”. Seu fim pode estar nas entrelinhas.
Nota do autor, setembro de 2021: pois é, este é o grande negócio: não adianta nada querer ser imortal, se você ainda assim envelhecer e ficar doente. Imagine, ficar pelo resto da eternidade com o seu corpinho de 120 anos?
Ah, sim, sempre leia as letras miúdas do contrato antes de assinar. Não se esqueça!

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais