O homem que achava que ia morrer em um dia de sol
Dentre as diversas pessoas que eu tive o (des)prazer de conhecer, estava o assim chamado “homem que achava que ia morrer em um dia de sol”. Como depois de um tempo, ninguém mais sabia o nome dele, se referiam a ele por essa antonomásia e o chamavam pessoalmente de senhor (porque ninguém, depois de um certo ponto, queria muita proximidade com ele).
Mas o que aquele ser fez para merecer isso? Ninguém sabe. Tudo o que sabemos sobre isso foi contado em uma roda de bar, em uma espécie de lenda urbana, com um isqueiro servindo de fogueira para nos iluminar.
Era mais ou menos assim:
Até um certo dia, ele era uma pessoa completamente normal. Estava feliz com a sua esposa, as suas duas filhas, uma já na faculdade de administração, a outra fazendo colegial em uma das melhores escolas do país, o filho servindo no exército (fazer o quê, nem tudo é perfeito), feliz com a sua casa de dois andares em um dos bairros nobres de São Paulo.
Eu me lembro que, em especial, uma vez que eu fui à casa dele antes de ele ficar louco, ele adorava o jeito que o sol batia através das janelas, pela manhã, iluminando a casa inteira. Triste ironia do destino que viria a matá-lo…
Mesmo assim, ele era completamente feliz, até o dia em que completou cinquenta anos. Logo que acordou, com o sol batendo em seu rosto como louco, encasquetou que ia morrer em um dia de sol. Mandou fecharem todas as cortinas e ficou o dia inteiro na cama, recusando-se a sair, achando que ficar em casa, de cama, era o modo mais seguro de tocar a vida, uma vez que não podia acontecer absolutamente nada com ele lá.
Todo mundo achou que era só mimo, coisa de gente que acabou de perceber que provavelmente estava no meio da vida, uma espécie de crise de meia-idade instantânea para o dia do aniversário, e acharam até divertido fazer a festa em um quarto, achando que tudo ia passar no dia seguinte, que nem amor de verão.
No entanto, estava mais para terror de verão; a crise se prolongou, e, em vez de instantânea, todo mundo passou a dizer que era de verdade, ou pelo menos de uma instantaneidade prolongada. Todo dia ele pedia para que a empregada abrisse uma frestinha da janela, olhasse para fora, e visse se estava sol ou não. Se estivesse, ele não saía da cama, ficava o dia inteiro lá, comia lá, ficava assistindo à televisão, especialmente programas de auditório, e logo passou a saber tudo de tudo sobre as novelas.
Como seu chefe também achou que fosse só uma crise temporária, algo de não mais que duas semanas, e porque ele havia sido um ótimo funcionário depois de quase trinta anos na empresa, ele deixou que o “homem que achava que ia morrer em um dia de sol” tirasse um mês de férias remuneradas. Sua filha do colegial achava até divertido, ainda mais porque o pai não saía do quarto, então não podia ficar opinando sobre os seus namorados, mas a filha da faculdade e a esposa estavam inconformadas. A primeira achava que ele precisava de um médico; a segunda tinha certeza de que era só capricho. E o cachorro achava ótimo ficar o dia inteiro na cama comendo as guloseimas surrupiadas.
Mesmo assim, todo mundo achou melhor esperar para que a crise passasse.
Mas ela não passou; estendeu-se por um ano, um ano no qual ele só saíra de casa 36 vezes e meia (uma vez o sol surgira do nada, e ele voltou correndo). Nestes dias sua vida completamente normal, como sempre fora antes do dia do seu aniversário, mas era só sair o sol e pronto, ele ficava com um mau-humor terrível.
Um dia, pouco depois de ele ter completado 51, eu fui visitá-lo e lhe perguntei o que passava.
– Eu tive um sonho, e tenho certeza absoluta de que eu vou morrer em um dia de sol.
– Mas… Senhor… Veja bem… Todo dia é dia de sol. A única diferença é se tem nuvem ou não na frente dele!
– Mesmo assim! O meu sonho foi bem claro! Era um dia de sol, sem nuvem nenhuma! Por isso eu não posso sair da cama! Eu não sei como eu morri, eu só sei que eu morri, e que tinha sol!
Resolvi entrar no jogo, então.
– Tudo bem… O senhor tem certeza de que vai morrer em um dia de sol. Já pensou, então, que o Brasil não é o melhor lugar para se ficar? Que tal ir para a Inglaterra? Lá você deve ter dois ou três dias de sol por ano, só.
– Uhm…
Ele pareceu gostar da ideia, e em poucos dias a família inteira se mudava para lá, onde todos voltaram a ter uma vida completamente normal.
Ele viveu muitos outros anos assim, escondendo-se nos raros dias em que não estava chovendo no Império Britânico, até que, numa certa noite, quando estava em sua cama, comendo torta de rim de veado e vendo as últimas estripulias do príncipe Harry, um ataque cardíaco fulminante o acertou, não dando nem chance de ele retrucar.
– E sabem o que é o pior de tudo, meus amigos? – disse eu, enquanto contava a história para eles, o fogo do isqueiro tremeluzindo já, ameaçando apagar.
– O quê?
– O céu logo acima estava completamente limpo e brilhante, todo estrelado, prometendo um lindo dia de sol no dia seguinte… E eu juro pra vocês que isso é verdade.
E assim morreu o “homem que achava que ia morrer em um dia de sol”, como muitos morrem hoje em dia; por antecipação.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais