O Mago e a Rosa
Era um dia de chuva muito forte quando ele apareceu à minha porta; do lado de fora, praticamente nada era visível, mesmo quando os raios cortavam os céus.
– Tem alguém em casa? Por favor, tem alguém? – chamava o homem.
A luz acesa, não havia como negar; deste modo, abri apenas uma pequena fresta, imaginando ser um ladrão ou algo do gênero; estava sozinha.
– Quem é você? – perguntei.
– Sou um andarilho e moro nas ruas… Mas hoje está chovendo demais, e eu gostaria de pedir para ficar em sua casa, pelo menos até a chuva passar um pouco.
Eu o encarei; era velho, barbudo e sua roupa encharcada estava toda rasgada. Nas costas, carregava uma surrada mochila, na qual, provavelmente, mantinha os seus poucos pertences.
– Já fui recusado em três casas… Por favor, não seja a quarta a me recusar!
De algum modo, a sua face bondosa e o seu jeito de pedir me deram dó, de modo que o acolhi em casa. Ofereci-lhe a ducha, para que tomasse um banho, e lhe dei roupas velhas de meu ex-namorado; depois, servi-lhe um pouco da sopa que iria jantar, e dividimos a mesa.
Mais bem tratado, o homem tinha uma aparência completamente diferente; deixara a barba rente, os cabelos penteados, estava com o rosto finalmente limpo, e agora não se mostrava tão velho quanto antes parecera; deveria beirar os cinquenta.
– Muito obrigado, senhorita – disse ele. Que tipo de pessoa ainda fala senhorita? – Em retribuição pela sua hospitalidade, vou lhe dar um presente.
Eu afirmei que não precisava, mas de nada adiantou; o velho senhor se levantou, tirou um chapéu preto enfeitado com símbolos prateados, pontudo, semelhante ao de magos de desenhos, colocou-o na cabeça e pronunciou algo que eu não entendia. Então, de repente, um vaso de flores apareceu sobre a mesa.
Continha mais de cem rosas, sendo que vinte e duas delas estavam mortas, uma estava aberta e as outras eram meros botões.
– Que lindo! – comentei. Se tirasse as rosas mortas, realmente ficaria lido quando desabrochassem. – Como você fez isso?
– Não importa. Isto aqui é o vaso da sua vida – informou o mago. – As rosas mortas indicam quantos anos de vida já foram, e os botões, quantos lhe restam. Mas cuide bem deles; se eles morrerem, você perde anos de vida como consequência. Está vendo este botão, já amarronzando?
– Sim.
– Este é um ano de vida que você está gastando desmotivadamente. Você bebe? – indagou ele, olhando para o meu armário de bebidas. Nunca liguei muito para isso, mas montei um pouco depois de começar a namorar com o meu ex, já que ele gostava.
– Ocasionalmente.
– E fuma? – questionou, olhando para o cinzeiro.
– Não mais que um maço por dia! – defendi-me.
– É melhor parar.
– O que é você, o mago da boa saúde?
Ele não respondeu, mas meramente se dirigiu para a porta.
– Espero que aproveite o seu presente – comentou. – Se cuidar bem dele, ainda lhe restam… 95 anos de vida.
Ele abriu a porta e se dirigiu para fora, um guarda-chuvas surgido do nada em mãos.
– Muito obrigado pelas roupas, pela deliciosa janta e pela adorável companhia – despediu-se, enfim, saindo. – Espero que nos encontremos no futuro.
Encarei o vaso; o que era aquilo?
Para testar, acendi um cigarro e o fumei; depois outro, outro e mais outro. E, repentinamente, pude ver – se bem que não tenho certeza ainda se foi impressão ou não – um minúsculo filamento da pétala do botão já envelhecido se retorcer.
Arremessei o maço para longe; no dia seguinte, tirei o gabinete de bebidas da cozinha, e passei meu domingo pensando o que eu poderia mudar na minha vida para sobreviver mais.
Mudei de emprego; comecei a usar bicicleta em vez de carro; fazia exercícios regularmente; cortei as gorduras e os doces; comecei a comer salada e frutas; seguia uma dieta perfeita. Todo o dia regava as rosas e cuidava bem delas.
O único problema é que me estressava ao ver o vaso envelhecer; não importava o que eu fizesse, ele continuava, cada dia mais, a ganhar idade.
Para conseguir ter as noites de sono tranquilo que, diziam, deveria ter, comecei a tomar soníferos; depois, para me acalmar por causa do nervosismo de combater a ação do tempo no vaso, pedi antidepressivos. Quando o segundo botão morreu, não suportei mais; tirei o vaso da minha frente, na cozinha, e o escondi no sótão.
Alguns dias depois, senti uma dor terrível por todo o corpo; sentia-me mal, abatida, mal conseguia me mexer; cheguei a um ponto de não conseguir levantar da cama por três horas. Ao me olhar no espelho, estava pálida, com olheiras profundas; não sabia o que estava acontecendo.
Depois que um médico veio me visitar e disse que realmente não tinha a menor ideia de o que eu tinha, eu me toquei do que era; o vaso.
Pedi a ele que fosse até o meu sótão e trouxesse para o meu quarto um vaso de rosas que havia deixado lá; ele as trouxe, e pedi que as regasse; estavam todas secas, mesmo as que nem haviam desabrochado. Pouco depois, já me sentia melhor; do mesmo modo, as flores recuperaram a sua cor.
– É impressionante – comentou ele. – Sua aparência mudou de repente!
– Acho que os remédios que tomei estão fazendo efeito – desviei. – Muito obrigada, doutor.
No final, deixei o vaso em minha cozinha, onde podia tomar sol e eu nunca esqueceria de regar.
O tempo foi passando; comecei a observar que, conforme coisas ruins aconteciam no mundo ou na minha vida, mais as rosas estragavam; por outro lado, quando algo bom acontecia, as rosas envelheciam mais devagar, ou, às vezes, até rejuvenesciam.
Um dia, no entanto, quando estava voltando para casa, das compras, a pé, vi algo estranho; do outro lado da rua, na minha janela, as rosas secavam loucamente; as outras oitenta e tantas que ainda estavam vivas passavam do vermelho para o marrom em um piscar de olhos, e suas pétalas já caíam.
Corri para o outro lado, e a última coisa que vi foi…
O mago depositou a caneta sobre a mesa e olhou para o escrito em suas mãos.
Um caminhão. A última coisa que ela viu foi o caminhão da floricultura passando.
Intitulou o texto de “A moça e as rosas” e depositou as duas folhas de papel, grampeadas e em um envelope, em uma caixa de correio. Em seguida, levantou-se e pegou um chapéu de coco e um guarda-chuvas.
Caminhou lentamente pelo cemitério até um túmulo que achou apropriado e, sobre este, depositou um buquê de rosas.
Até agora eu ainda me pergunto… Ela morreu porque foi atrás das rosas ou as rosas morreram porque, inevitavelmente, ela iria até elas?
Não sabia.
A chuva piorou.
Precisava achar mais uma casa para passar o tempo, até que pudesse, mais uma vez, andar por aí.
Nota do autor, setembro de 2021: esta é mais uma crônica dos Contos de Fadas Modernos (Urbanos) que participou da coleção da Editora Evoluir, sendo grafitado aqui nas ruas de São Paulo, após a discussão com uma escola pública, na qual os alunos puderam, também, fazer seus próprios grafites e refletir sobre a história. Acho que a grande moral é essa: lógico que adianta tentar ao máximo se tornar uma pessoa saudável, mas isso vale o estresse? Vale a vida não vivida? Ainda mais quando podemos morrer tão subitamente como por um acidente de trânsito? O segredo é o equilíbrio. Bem, ao menos, eu acho. Mas, longe de mim, Mago da boa saúde com seu vaso mágico!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais