O misterioso caso da lição desaparecida
– Todos trouxeram a lição de casa?
Diligentemente, com uma animação típica de qualquer escola, todos os alunos foram tirando as suas lições das mochilas. Algumas, amassadas; outras, enroladas; alguns, com lições muito bem-feitas, a letra bonita, a folha, impecável, às vezes, até com arabescos e desenhos decorando as bordas; alguns nos quais pareciam que a caneta vermelha e a azul haviam travado uma disputa de istriti-dénci e quem ganhara fora o lápis que rabiscara tudo por cima.
Ana, porém, não conseguia achar a sua lição de casa de forma alguma. Conforme a professora foi recolhendo os papéis, ela foi ficando mais nervosa. Carrevira, larrevira, vira a mochila de baixo para cima, mas nada de o papel aparecer.
– Mas eu tenho certeza de que eu fiz!
Ela olhou ao redor; tinha certeza absoluta, passara a tarde inteira do dia anterior fazendo, passara todos os cálculos a limpo (principalmente para esconder as vezes em que tinha errado e tido de refazer tudo), estava lá, em cima da sua escrivaninha! Ela tinha checado antes de dormir! Como podia ter desaparecido?
A professora passou; ela tentou explicar, mas, como explicar o inexplicável?
– Tudo bem, Ana, faz assim: quando você chegar em casa, tira uma foto e me manda. Você provavelmente acordou com sono e não se lembrou de pegar a lição.
Bem, foi isso que ela fez; quando chegou de volta à sua casa, revirou o quarto à procura da sua lição, mas, ó! Onde estava? Não conseguia achar de forma alguma! Não teve escolha, senão refazer tudo e mandar a foto para a professora.
Na semana seguinte, para não ter de passar pelo mesmo perrengue, fez a lição com todo o cuidado, na própria página do caderno, mesmo, para que não saísse voando, guardou o caderno na mochila, a mochila, fechada, na cadeira, e foi se deitar. Tinha certeza de que, desta vez, não tinha se esquecido de fazer a lição.
– Todos trouxeram a lição de casa?
E lá foi Ana procurar; onde estava? Seu caderno estava ali, inteirinho, mas, onde estava a lição de casa? Ela tinha tomado tanto cuidado copiando o enunciado e passando todos os cálculos! Como podia ter desaparecido assim?
– Tem certeza de que você não sonhou que fez? – opinou sua amiga, Clara.
– Tenho! – ela bufou, quase aos prantos.
Revirou o caderno de todas as formas possíveis, procurando alguma folha perdida, e mostrou, tristemente, onde ficava a última folha, antes da sua lição de casa.
– Estava bem aqui!
Foi Júlia quem teve a ideia de detetive:
– Vamos passar um lápis e descobrir se você realmente fez a lição!
Ela pegou um lápis e foi passando sobre a primeira página em branco disponível. Aos poucos, a lição de casa foi tomando forma:
– Olha lá! Eu falei que eu tinha feito!
– Mas isso é muito estranho! Como que a sua lição desapareceu, assim, simplesmente?
Tinha sido algum aluno? Tinha algum espertinho que estava pegando a sua lição de casa, para não ter de fazer a própria?
Ela entregou o negativo da sua lição para a professora, esperando não ter uma nota negativa em consequência, e as meninas se reuniram para definir o que iriam fazer a respeito do misterioso caso da lição desaparecida.
– Vamos fazer o seguinte; na aula que vem, antes de você entrar na escola, você checa se a lição está lá.
E assim ela fez; na próxima entrega de lição de matemática, que ela tinha feito com esmero, diga-se de passagem, ela se encontrou com as amigas na frente da sala de aula.
– Alguém encostou nesta mala? – questionou Júlia.
– Ninguém!
– Você ficou com ela o tempo todo? – interrogou Clara.
– Sim, fiquei segurando ela no colo no ônibus o caminho todo até aqui. Não larguei um segundo!
– Então, vamos, mostre a lição!
Ana pegou o seu caderno, virou as páginas cuidadosamente e…
– Ohhhh!!!!
Sentiu que ia desmaiar; a lição tinha sumido novamente!
– Mas isso não é possível! – inconformexclamou. – Eu tenho certeza! Olha, até tirei foto dessa vez!
E, realmente, lá estava: uma foto bem clara da sua lição de casa, feita no dia anterior, com registro de horário e localização. Não tinha dúvidas de que era dela!
– Então, quer dizer que o desaparecimento da sua lição de casa está ocorrendo… Em algum lugar entre a sua casa e o ônibus! – detetivou Júlia.
– Só tem uma forma de resolvermos isso! – exclamou Clara.
Na próxima tarde, todas se reuniram na casa da Ana e fizeram a lição juntas. Assim, todas tinham provas de que a lição estaria lá. E assim, depois de uma noite muito divertida com direito a guerra de travesseiros e guloseimas, todas foram dormir, felizes e tranquilas, com as lições bem guardadas nas suas mochilas.
– Todos trouxeram as lições de casa?
Uma exclamação; um grito; um desmaio. As três lições haviam desaparecido!
Logo, toda a classe se juntou para tentar compreender qual era essa história tão misteriosa, do desaparecimento de uma lição de casa, aliás, de uma não, de três lições de casa, no meio da noite! Como era possível?
– E se você for sonâmbula? – disse alguém.
– Como assim?
– Ué, assim! – respondeu um tal de Guilherme, com o qual Ana não falava nunca. – Você acorda de madrugada, arranca a sua lição de casa e joga no lixo!
– Mas não tinha nada no meu lixo, eu tenho certeza! Eu olhei das outras vezes!
– Bem, talvez você coma – disse Eduardo.
– Eca! – exclamou Clara.
– Não, não, eu tenho certeza de que não!
O mistério perdurou; foi no ônibus para casa que Ana teve uma ideia de como resolver isso.
– Vou deixar o computador filmando! – ela disse. – Vou descobrir o que está acontecendo!
Assim, ela diligentemente fez a sua lição de casa naquela tarde e ficou de olho no caderno e na mochila o tempo todo; em seguida, antes de dormir, deixou o caderno provocativamente sobre a mesa e o noutibuqui logo de frente para ele, gravando tudo. Com o computador na tomada, teria horas e horas de gravação.
Ela se deitou, ansiosa, e ficou esperando; nada acontecia. Bem, se ela era sonâmbula, ela precisaria dormir, não? Mas, quem disse que o sono vinha? Rolou para cá, rolou para lá, e nada. Até que, finalmente, quando já parecia tarde demais, o despertador tocou, enquanto ela estava no meio de um sonho em que achava que sonhava que era sonâmbula e andava pela casa, mas não tinha certeza se era verdade, ou se era um sonho do sonho do sonho.
Mas que coisa confusa!
Com o despertador tocando, pulou da cama e olhou; o computador estava fechado! O que havia acontecido? Será que sua mãe vira o seu computador aberto e o fechara durante a noite? Será que ela era mesmo sonâmbula e havia fechado ela mesma? Só tinha um jeito de descobrir: abriu correndo o caderno e, voalá, ora vejam só! Nada de lição de matemática de novo! Correu para abrir a filmagem e, quando descobriu o que havia acontecido, saiu correndo do quarto para acordar os pais.
– Vocês não vão acreditar nisso!
O pai, sonolento, foi esfregando os olhos até o quarto dela; havia sido despertado meia hora antes do que precisava. Mas, quando viu o que acontecera, arregalou os olhos bem assim O.O e disse, coçando a barba por fazer:
– Pelas barbas por fazer do pirata!
Sua mãe foi convocada em seguida. E, depois, até o cachorro veio bisbilhotar, mas não entendeu muito bem o que estava acontecendo e achou melhor só roubar um chinelo e sair roendo por aí.
Ela contou para a professora, mas ela, também, não acreditou.
– Tudo bem, meu pai tem um plano!
Assim, antes de ela dormir, seu pai começou a espalhar barbantes pelo quarto inteiro de uma forma muito esquisita.
– Isso não vai dar certo – comentou sua mãe.
– Vai sim! Acredite em mim! – disse o pai.
E todos foram dormir. Até que, no meio da noite…
Pam!
A luz do quarto se acendeu.
Outro Pam!
As janelas se fecharam.
Mais um Pam!
Sinos tilintaram, conforme uma forma esquisita caía no chão, toda enrolada em barbante.
– Ah-há! – gritou Ana. – Pegamos você! Papaaaaaaaaaiiiii!
Ele veio correndo do outro quarto e parou, de braços cruzados, diante daquela forma caída no chão.
– O que era? O que era? – os alunos perguntaram; estavam todos curiosíssimos com a conclusão da história.
– Era um menino!
– Não é possível! – gritaram uns.
– É mentira! – gritaram outros.
– Deixem a Ana terminar! – mandou a professora.
– Descobrimos que ele era um menino carente, que não podia ir para a escola, então, todo dia à noite ele vinha roubar a minha lição de casa. Ele pulava pela janela, que eu sempre deixo aberta, pegava a minha lição e ia embora. Não pegava absolutamente mais nada!
– E o que o seu pai fez? – perguntou Clara, que estava muito empolgada com a história incrível.
– Ora, o que mais um pai poderia fazer?
Todos a encararam, com uma interrogação voando no ar.
– Pegou o contato dele e mandou entregar vários livros para ele poder estudar sozinho em casa. E, de vez em quando, ele vem estudar comigo, à tarde. Ele é bem legal, chama Marcelo e mora duas ruas pra baixo da minha casa.
– Puxa vida, mas que história! – exclamou Júlia.
– Será que não era mais fácil simplesmente dizer que esqueceu de fazer a lição? – murmurou Eduardo para seu amigo, que apenas deu de ombros.
Nota do autor, outubro de 2021: esta é uma das minhas crônicas mais recentes. Foi inspirada em, adivinhem, adivinhem? Exatamente, minha filha mais velha, que de alguma forma misteriosa dizia que tinha feito todas as lições que tinha que mandar pelo computador, mas nunca tinha provas quando a professora cobrava.
Quis dar um toque, ao final, de caridade clássica de contos de fadas; por isso, faz parte do Contos de Fadas Urbanos.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais