O Saca-Rolhas
Ela escolheu junto com a sua mãe; seria um grande presente para o seu pai, que adorava beber vinho desde que se conhecia por gente. Aliás, beber, não – degustar. Apesar de bom degustador, porém, ele não possuía nenhum apetrecho, apenas algumas taças de cristal herdadas do avô e um canivete, com o qual meticulosamente abria as garrafas em um processo artístico de longa duração.
Assim, no dia dos pais, elas chegaram com um lindo saca-rolhas, daqueles de bracinhos ao lado, que era só colocar em cima da garrafa, abaixar e levantar. Coisa de dez segundos, que antes ele levava dez minutos para fazer. Ela não saberia dizer se o seu pai ficou muito feliz, porque, usar efetivamente o apetrecho, ele só usou uma vez. Na realidade, gostava mesmo é do sofrimento de tirar a rolha com a sua faca multifuncional.
Mas quem se encantou de verdade foi ela; todos os dias, enquanto estava na cozinha, ficava olhando para a porta do armário, como se tivesse visão de raio-x, e imaginando o saca-rolhas lá guardado, esperando que ela o usasse. Um dia, não resistiu; levantou mais cedo do que seus pais, correu para a cozinha e o pegou.
Como era belo; logo imaginou, com sua fluidez, com a facilidade que girava, empurrava seus pezinhos e levantava seus braços, que era uma linda bailarina. Aquela era a sua apresentação, a apresentação para a qual havia arduamente treinado nos últimos meses, e a mesa era o seu palco. Agilmente girava, para cá e para lá, ao som de “O Lago dos Cisnes”. E, logo ao lado, o saleiro, a pimenteira, o vidro de azeite e de vinagre, os guardanapos, todos eles observavam em silêncio, encantados com a performance.
O último movimento, o último giro, e a bailarina parou, abaixando seus braços e encolhendo suas pernas; a cortina caiu, e o público a ovacionou. Logo a cortina subiu novamente, e lá estava ela, encantadora, agradecendo e recebendo flores jogadas ao palco.
Em seguida, tornou-se um guarda-vidas. Vestido com sua bermuda vermelha e sua regata amarela, o boné e os óculos de sol, estava à beira da praia, fazendo polichinelos de aquecimento para o seu serviço do dia. A mesa era a sua praia – e, além, o mar azul, repleto de ondas, surfistas e seres marinhos dos mais diversos tipos. Ao longe, baleias jogavam água de seus respiradouros, golfinhos faziam estripulias e… Ó! Veja lá, à distância, um banhista desavisado que foi levado pelas correntezas e estava se afogando! Hora de entrar em ação!
O guarda-vidas correu para o mar e, com sua prancha ao lado, saltou na água e começou a nadar, nadar com toda a velocidade que possuía, os braços batendo incessantemente, as pernas sacudindo. Ele chegou, finalmente, até o local, ajudou o homem a subir na prancha e, com seus braços fortes e o flutuador atado ao seu corpo, trouxe-o de volta consigo para a segurança da beira.
E, rapidamente, o guarda-vidas não era mais um guarda-vidas, mas sim uma tartaruga marinha que vinha para depositar os seus ovos na areia da praia, de onde, um dia, eclodiriam milhares de pequenas tartarugas. E, neste dia, lá estaria a tartaruga mãe, no mar, nadando, esperando que seus filhotes fizessem a dura travessia até o mar, onde apenas dois ou três seriam abraçados por suas nadadeiras.
E, mais uma vez na mesa, o saca-rolhas havia se tornado uma pessoa, no meio de um mundaréu de neve branca e fofa, sobre a qual ela se deitou e começou a abrir e fechar preguiçosamente os braços, fazendo desenhos de anjos, como se estes seres tivessem caído dos céus e ficado presos ao chão…
A luz acendeu; e, com ela, veio a mãe da garota. O que ela estava fazendo de pé àquela hora? E por que estava brincando com o saca-rolhas do seu pai? Iria estragá-lo, de certo!
Ela o tomou de suas mãos e o guardou. A garota continuou, entretanto, encarando-o através do armário toda vez que ia para a cozinha. Havia sido bom enquanto durara.
Mas não acabaria ali! Na ceia de véspera de natal, seu pai tomou o saca-rolhas e o utilizou para abrir uma garrafa para seus avós, e lá ela se pegou mais uma vez imaginando. Desta vez, não era uma simples saca-rolhas, mas sim uma máquina gigantesca de extração de petróleo que, com suas potentes bombas e pás, puxava aquele líquido escuro do fundo da terra, para depois jorrar nos cálices, que haviam se tornado barris de petróleo…
Passou o jantar inteiro imaginando. E, quando ele terminou e o saca-rolhas foi guardado sem que sua mãe deixasse que ela brincasse mais uma vez – ao menos uma vez! –, ela já se pegou contando nos dedos quando seria o próximo.
Era manhã de natal; acordou e saiu correndo para a árvore, louca para ver os presentes que havia ganhado magicamente no meio da noite.
Algumas roupas, bonecas, castelos, estojos de maquiagem e… Um pacotinho singelo, sem graça alguma, com uma letra quase infantil, com o seu nome e sem o remetente. De quem seria? E o que seria?
Ao abrir, não acreditou; seus olhos brilharam. Lá estava ele. O melhor presente de todos. Uma boneca, bailarina, guarda-vidas, anjo, extratora de petróleo, tartaruga e o que mais sua imaginação quisesse que fosse. O saca-rolhas.
Quem havia dado aquilo?, os pais se perguntaram. Nem ela, nem ele, nem ninguém.
Para a garota, não importava. Havia sido o melhor presente de todos.
Nota do autor, setembro de 2021: também escrita em dezembro e bem perto do natal, na verdade esta crônica ocorre no natal, mesmo! Rsrsrs Mas a ideia surgiu quando, eu, como adulto, abrindo um vinho, observei como o saca-rolhas realmente parecia com todas essas coisas e como uma criança imaginativa poderia se divertir com nada além dele.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais