O Saci Tecnológico
Já tem lá um tempo muito considerável que se conhece a lenda do Saci. Ou melhor, lenda não – história. Talvez quem mais tenha contribuído para a sua divulgação seja Monteiro Lobato, que registrou até mesmo os achados de um inquérito lá em meados do Século XX.
O tempo passou.
Muitos achavam, contudo, que o Saci não iria se adaptar aos nossos meios, ficando restrito ao campo – ledo engano. Se a tecnologia já chegou ao campo, que faria o Saci? Fugir para cidades menos desenvolvidas, ou simplesmente aprender a lidar com um smartphone? Maroto como só ele, lógico que a segunda opção seria mais viável. Não se deixaria vencer pelas habilidades de um bebê – que já nasce sabendo operar um aparelho com tela de toque.
Como é este Saci tecnológico, este Saci 2.0, versão beta? Mudou em alguma coisa sua aparência? Possui uma perna biônica no lugar da que lhe falta?
Logicamente que não. O Saci permanece como sempre foi: tez escura, capuz vermelho, cachimbo na boca, descalço, com ou sem a sua bermuda ou macacão – depende só do impacto que quer causar. Continua, como sempre, permanecendo invisível, e sua capacidade de criar redemoinhos só fez crescer – haja visto os temíveis tornados extratropicais que vêm ocorrendo no sul do Brasil.
O Saci tecnológico aprimorou as suas técnicas e modificou seus hábitos; não faz mais tranças em crinas de cavalos, não quebra agulhas, não derruba cavaleiros de suas montarias. Não trabalha mais unicamente à noite – pois, hoje em dia, quem em sã consciência não está disponível 24 horas por dia? As noites já são tão claras, que o Saci não age mais na escuridão – apenas comprou óculos de sol da Chilli Beans e agora apronta com estilo. Faz das suas, notifica no Twitter e posta fotos imediatas no Instagram. Estão lá para quem quiser ver as suas aprontices.
E quais seriam elas? Bem, no êxodo rural, quando veio junto com os fazendeiros para as grandes cidades, ele primeiramente entupiu todos os bueiros da cidade, para ver o caos quando chovesse. O Saci de antigamente tinha medo de chuva e água, mas o 2.0 já superou este medo, sem precisar de terapia – uma galocha, uma capa de chuva e pronto, ele já pode fazer das suas. Varre todo o lixo jogado no chão para os bueiros e fica a esperar o tempo fechar.
Mas não para por aí. Ele também mexe nos semáforos, piorando o trânsito das cidades; escurece as placas; risca a lataria dos carros; quebra os espelhinhos; ativa alarmes de bancos e veículos estacionados no meio da noite. Sua brincadeira principal – e a que ele mais ri – é ficar esperando alguém chamar o elevador. No momento que apertam o botão para chamar, ele aperta também, e o elevador vai embora na direção oposta. Pior ainda; o Saci se diverte como nunca quando o elevador está no andar, uma pessoa vem correndo, pronta para puxar a maçaneta e… Ele vai embora. Culpa do Saci que estava lá dentro, esperando o momento estratégico de subir para o último andar sozinho. E como ele ri!
De vez em quando ele faz apagões na cidade; faz a internet cair; e tenho evidências de que é ele que complica o funcionamento da internet 3G. O Saci tecnológico é um mestre das artimanhas. Atrapalha o tráfego aéreo, troca as malas no aeroporto, some com as de alguns passageiros, surrupia documentos importantes nas horas mais inusitadas.
Também aposto que é ele que manda mais da metade dos spams da minha caixa de emails.
Na realidade, o Saci 2.0 não é mais um só – ele se reproduziu. É, pois é! Sabe aquelas gravidezes acidentais, causadas pelos mais diversos motivos alegadamente sobrenaturais? Então, tudo culpa do Saci. E, de cada uma dessas, nasce um novo, pronto para azucrinar a vida de todos.
Já temos tantos Sacis atualmente, que ouvi dizer até que alguns estão se mudando para a Argentina.
Nota do autor, setembro de 2021: a ideia para esta crônica surgiu, como percebem, quando estava lendo algumas coisas de Monteiro Lobato (surrupiadas da casa da minha tia-avó, diga-se de passagem – mas, tudo bem, ela sempre falou para eu pegar o que quisesse da biblioteca). Esbarrei em um inquérito sobre o Saci e fiquei me perguntando como seria o Saci da atualidade. Considerando que o Saci era o bode expiatório de todas as coisas esquisitas que aconteciam na roça… Bem, acho que este Saci está bem a contento.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais