O soldado
Era um lindo soldadinho feito de vidro. Seus detalhes eram tão perfeitos, que você poderia jurar que era realmente um soldadinho minúsculo que fora diminuído para a forma de um pequeno soldado verde. E lá ele ficava, o dia todo sobre uma prateleira em cima da cama. Um presente do seu pai, quando ele ainda era um menino, o primeiro brinquedo com o qual ele nunca poderia brincar, ou ele irreversivelmente se quebraria. Brinquedos de vidro não podiam ser consertados, todo mundo sabia disso. E, também, ele perderia o seu valor, como seu pai sempre dizia.
Ele ficou lá talvez por décadas. Completamente despercebido, sua faxineira o limpava de vez em quando, admirando a sua perfeição e sempre dizendo que as coisas de hoje em dia não são mais o que elas eram quarenta anos atrás.
– Aqueles brinquedos eram realmente feitos para durar, e este aqui é um ótimo exemplo! – ela sempre falava.
Tudo aconteceu de uma forma muito esquisita. Primeiro, ele achou que era a sua mulher lhe pregando uma peça, ou até mesmo seu filho ou a faxineira. Contudo, nenhum deles admitiu.
– Então, como que o soldado está de pé na minha cama?
– Eu não sei – eles responderam, um depois do outro.
– E quando ao carregador do celular? O fio bem do seu lado? Ah, vá, não é possível que o boneco tenha se movido por si próprio!
– Eu já disse, pai, não fui eu! E, até onde eu sei, pode muito bem ser você que está fazendo essas brincadeiras.
– Tá bom, tá bom, eu vou colocar ele de volta no seu lugar e tratar de esquecer tudo isso.
E teria parado por aí.
Se ele não tivesse se movido de novo.
E lá ele estava, pendurado pelo fio, suas pernas todas enroladas, como se ele tivesse estado se debatendo para se soltar.
– Ah, vá! Agora, o que vocês vão dizer? Que ele estava tentando se matar?
– Mas é o que parece, não é? – respondeu a faxineira, simplesmente.
– Eu acho que ele só estava tentando descer, mas acabou não conseguindo – o filho pensou alto.
O homem colocou o soldadinho novamente em seu lugar e foi para a cama ainda pensando nisso.
Na terceira vez que isso aconteceu, uma semana depois disso, o soldado estava perto da borda da cama, como se estivesse buscando a melhor forma de descer. Sem falar absolutamente nada, o homem apenas o colocou de volta no seu lugar.
Dois dias depois, o soldado foi encontrado no meio do cobertor. O homem imaginou que ele provavelmente estava pensando em usá-lo como uma corda, e isto foi a gota d’água.
– Ok, G.I. Joe, eu cansei das suas expedições vespertinas. Diga adeus à sua perna esquerda.
Ele pegou o martelo que guardava em sua caixa de ferramentas e destruiu a perna. Sentiu uma dor excruciante em seu peito, como se tivesse sido sua própria perna que fora esmagada; imediatamente, isto o lembrou de seu pai, quando ele lhe dera o soldado e o quão feliz ele ficara naquele natal (embora não tivesse podido brincar com ele até ser velho o suficiente, e aí já não tinha mais qualquer graça).
Depois de todos aqueles anos, partiu seu coração ver o soldado deitado na prateleira, totalmente incapaz de ficar em pé.
– Não me olhe assim, você pediu por isso, rapaz!
O soldado já estava lá fazia um mês, agora. E, depois, quando ele estava pensando que havia finalmente solucionado o problema de uma vez por todas, ele encontrou o soldado novamente… De pé! Com muletas! Isso era demais!
– Reunião de família! Agora!
Todos foram convocados para a sala de estar, incluindo o cachorro.
– Então vocês estão me dizendo – ele falou, conforme andava ao redor deles –, que ninguém encostou no soldado, e que não só ele fez muletas para si mesmo, como também conseguiu subir sozinho até a penteadeira. Sem uma perna!
– A penteadeira, você diz… – repetiu a criança.
– Qual é a diferença?
– Ah, bem, você sabe, a mamãe deixa a bailarina de cristal dela na penteadeira. Talvez o soldado estivesse tentando se encontrar com a sua amada. E agora, você simplesmente arruinou todas as suas chances!
Todos eles piscaram, incluindo o cachorro.
– Tá bom, isso já é demais. A partir de agora, o soldado vai ficar trancado no meu cofre. E eu não quero ouvir nem mais uma palavra sobre isso. Fui claro?
Todos ficaram parados, em silêncio. O homem estava ficando doido, com certeza.
A reunião acabou. O soldado foi trancado no cofre, e o homem finalmente poderia ter uma boa noite de sono.
O garoto, por outro lado, teve algumas dificuldades para dormir. O que ele iria fazer agora? Abrir o cofre? Ou, simplesmente… Mover a bailarina? É, isso parecia mais fácil. E, algum dia, ele iria quebrar o cofre e resgatar o bravo soldado. Era só uma questão de tempo, até que eles finalmente ficassem juntos…
Nota do autor, setembro de 2021: esta crônica foi escrita em dezembro, perto do Natal, portanto, a fonte de inspiração foi todos aqueles desenhos do quebra-nozes e tudo mais. Originalmente, eu a escrevi em inglês, mas a traduzi de volta para o português, para poder publicar.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais