O Toque de Midas
Midas havia recebido este nome porque, durante a sua gestação, sua mãe havia se encantado pela história do homem que transformava tudo em ouro ao toque, e não houve nada que a demovesse de assim nomear o seu bebê.
E, justamente por um nome tão incomum quanto este, Midas foi caçoado durante todos os seus longos anos na escola. Não importava para qual escola ou qual classe ele fosse, sempre, sempre, sempre havia um espertinho que já havia ouvido falar da história de Midas e se punha a zombar. Em pouco tempo, colegas faziam fila pedindo que Midas transformasse seus lanches em ouro.
E foi assim, zombado por toda a turma, que Midas teve de se esconder na última cabine do banheiro mais distante do prédio mais alto da sua escola; lá, ele se sentou sobre o tampo da privada e ficou esperando o sinal bater e os seus colegas começarem a sair.
As horas passavam e nada; o tempo parecia não avançar! Midas ficou tanto tempo lá sentado que, inevitavelmente, teve vontade de esvaziar o conteúdo dos seus intestinos. Abaixou a calça, sentou-se na tábua, que era feita de metal e geladíssima, e aproveitou a oportunidade, já que não teria nada melhor a fazer, mesmo, nos próximos minutos.
Foi quando se levantou que fez uma descoberta inacreditável: a tábua estava dourada! Seria possível? Ou seriam seus colegas lhe pregando uma peça?
Curioso e ainda com tempo de sobra para o sinal bater, ele procurou outro sanitário que tivesse uma tábua de metal, o que foi difícil de se achar. Mas, por fim, ele conseguiu e se certificou de que não havia absolutamente nada alterado nela, antes de tocá-la – e nada aconteceu. Teria sido brincadeira, mesmo? Tentou segurar a tábua por mais tempo, e nada. É, realmente era brincadeira. Já estava saindo pelas portas, decidido de que, realmente, havia sido uma pegadinha muito bem feita e que alguém definitivamente devia ter fotografado – ou filmado – o caso, que neste momento já seria uma dos vídeos mais vistos do YouTube, isso se ainda não estivesse entre os Trending Topics do Twitter, quando, em uma manobra arriscada, decidiu voltar e fazer outro teste.
Entrou na cabine, abaixou a calça e se sentou; a tábua gelada rapidamente esquentou, e ele já teve certeza antes mesmo de ver: realmente, havia se tornado ouro! Ele tinha nádegas com ares de pedra filosofal! Nádegas pétreas filosofais!
Mas, era apenas metal? Ele tentou sentar no vaso de cerâmica, e depois na pia, e encostou o traseiro na porta de plástico, e na de madeira, e nada. Tudo permanecera igual – exceto pela maçaneta da porta, que se tornara de ouro. Ah, e outra descoberta: só a sua nádega direita era filosoficamente pétrea.
Saiu do banheiro pensando: o que fazer com o seu poder?
Caminhou pela escola – o sinal já havia batido havia mais de meia hora, e ele já podia sair sem medo – e teve a sensação de que todos estavam olhando para ele, o que era normal.
Só não foi normal quando ele começou a ouvir seu próprio nome, pessoas apontando e falando algo sobre ouro.
– Ei, Midas! – berrou um colega de turma, trazendo um celular na mão. – Me diz, o que é ? Seu traseiro transforma tudo em ouro?
Ele não viu muito do vídeo, apenas a parte em que a maçaneta se tornava dourada, mas já foi o suficiente.
– Transforma a minha mochila! – pediu o amigo. – Vai! Transforma a minha mochila! Use seu traseiro de ouro!
Logo, mais e mais crianças se juntaram pedindo que ele transformasse coisas; desesperado, Midas saiu correndo e decidiu voltar para casa a pé, sozinho e em prantos.
No entanto, no caminho ele começou a pensar que estava em uma posição de poder; agora, ele não seria mais o garoto zombado na escola, mas sim quem mandaria. Todos viriam lhe pedir favor, pedir para transformar suas coisas em ouro… Ele se tornaria Midas, o Rei da Escola!
Chegou à sua casa com outro ar, o peito estufado, o passo certo, para encontrar dois homens com ternos pretos e óculos escuros, sentados no sofá, tomando café com a sua mãe.
– Midas, estes são homens do governo de um país lá do norte. Eles disseram que precisam da sua ajuda.
Um dos homens se ajoelhou (ele era muito alto mesmo) para encarar o garoto (sem tirar os óculos) e lhe disse:
– Nós precisamos do seu toque de Midas para ajudar a nação.
Como eles já estavam sabendo? Ele ficou chocado.
Pouco depois, bateram à porta, e quatro homens de ternos risca de giz, charutos, maletas de violinos e sotaque italiano pediram para falar com o Midas dourado.
E ainda mais um pouco depois, a casa estava cheia de gente, de todos os países, repórteres, curiosos, familiares… Midas pensou em fugir pela janela do seu quarto, mas não tinha por onde escapar! Estava cercado!
Ficou alguns minutos na indecisão, em seu quarto, com as portas fechadas e as persianas abaixadas. Por fim, chegou à conclusão de que não tinha escapatória e resolveu se entregar. Não sabia para quem, mas se entregou.
Um mês depois, Midas estava no quarto país diferente. Por um acordo internacional, ele seria rodiziado entre todos os países do mundo, que teriam direito a uma cota determinada de conversão de metal em ouro. O seu dia era basicamente ficar sentado, deitado ou em pé e deixar que infinitas pessoas lhe trouxessem metais para serem transformados. Para evitar que ficasse com a calça arriada o tempo todo, ao menos tinham lhe dado uma calça com um buraco quadrado, grande o suficiente para encostarem o metal, mas pequeno o suficiente para não ser vergonhoso. Havia se tornado a pessoa mais famosa e ao mesmo tempo com a vida mais chata do mundo.
No entanto, algumas semanas depois, algum país – ele já nem sabia mais onde estava naquele momento – quebrou as regras e, por baixo dos panos (literalmente; eles transformavam metal mesmo quando Midas estava dormindo!), ultrapassou sua cota em dezenas de vezes. O mercado mundial de ouro foi afetado; as bolsas de valores do mundo todo caíram; acionistas foram à banca rota. Da noite para o dia, o ouro passou a não valer muito mais do que comida chinesa na China. Países entraram em desespero; alguns ameaçaram entrar em guerra. E agora?
Contudo, enquanto o valor do ouro caía vertiginosamente, o valor do ferro de todo o mundo, que havia sido convertido em ouro e já praticamente não mais exisita, subia estratosfericamente. Acionistas, assim, mudaram do ouro para o ferro, e a bolsa foi colada como se com super bonder. O mundo se recuperou da crise do dia para a noite, e o ferro se tornou o novo ouro. Com isso, Midas perdeu toda a sua importância e foi despachado de volta para casa na classe econômica. Sem direito sequer a um pacote de amendoins.
Na escola, Midas e sua nádega pétrea filosofal perderam a importância. Como a história era real, e como ouro já não valia mais nada, ele passou de zombado para esquecido. Mas tudo bem; pelo menos, ele não precisava mais esperar todo mundo ir embora para ele ir também.
E, certo dia, ouviu um burburinho na escola; era sobre um tal de Marcius, apelidado de marciano. Diziam que seu nariz podia transformar tudo em ferro; ele até tinha um vídeo no YouTube!
Ah, pobre Marcius!, Midas pensou. E logo em seguida: Será que ele transformaria sua caneta de ouro de volta em ferro?
Nota do Autor, setembro de 2021: sempre achei muito divertida esta crônica! Imagine? Um traseiro que transforma tudo em ouro? A Editora Evoluir publicou este livro na coleção “Contos de Fadas Urbanos”, e a história foi grafitada em um bar, no Rio de Janeiro. Ficou muito legal! Vale a pena conferir.
Esta crônica ficou em segundo lugar do 5º Prêmio Ben Gurion de Literatura.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais