Os bolinhos da Vovó Nona
Seu nome, ninguém sabia. Os clientes a chamavam de vovó; os netos, de Nona, vovó em italiano, criando um gigantesco pleonasmo no nome daquela boa velhinha. Vovó Nona viera da Itália há muito, muito tempo, e logo abriu uma Quituteria na Rua das Flores, nº 47.
Era uma loja modesta, quem via não dava muito por ela; a sua entradinha singela, uma porta de madeira e a frente de vidro sobre a pequena cerca de madeira. Logo depois, andava-se um pouquinho, e lá estavam as singelas mesas de madeira, com uma toalha xadrez, vermelha. Quatro cadeirinhas em volta de cada uma das cinco mesinhas, com um vasinho de florzinhas sobre cada uma delas. Amplas janelas com cortinas simples mostravam o lado de fora. Do lado oposto a elas, o balcão, de madeira, atrás do qual ficavam as pias e mesas para se preparar tudo. Um bule de café, um fogão para fazer o que quer que precisasse, um expositor dos doces, algumas frutas, tudo muito simples, mas muito limpo, impecável.
Todo mundo adorava a Vovó Nona. Mas ela só começou a fazer sucesso mesmo depois de um dia de chuva em 1935. A água literalmente jorrava do céu, inundando todo o caminho, impossível de se andar. Por isso, algumas pessoas pararam na Quituteria, onde Vovó Nona cuidava dos seus netinhos. Já que era um dia chuvoso mesmo, ela resolveu fazer um prato de acordo: bolinhos de chuva. E deu alguns para os clientes provarem.
E eles não só provaram como aprovaram! Afinal, eram uma tentação! Ia bolinho atrás de bolinho, com café, suco, leite, o que quer que fosse. Mais gente vinha, e mais bolinhos ela fazia. Cada cliente comia um, depois mais dois, mais três, mais quatro, mais sete, mais dez! Comiam até não agüentar mais. E quando não agüentavam mais, ainda comiam mais um, de choro.
Ela fazia a massa na hora, batia, formava as bolinhas, jogava na panela, passava no açúcar com canela e entregava, fresquinhos, para depois fazer mais e mais…
E a Quituteria da Vovó Nona ficou famosíssima por toda a cidade. Pessoas vinham de todos os lugares para provar os bolinhos de chuva, mesmo que estivesse aquele sol do deserto do Saara. Na verdade, a loja ficou tão famosa que teve de aumentar. Vovó Nona diminuiu um pouco sua casa, no andar de cima, e usou parte dele para colocar mesas para os clientes, que não paravam de chegar.
E foi mais ou menos em 1937 que tudo aconteceu. Parece até uma estória de máfia. Todo mundo queria a receita que fazia os bolinhos da Vovó Nona tão especiais. Prometiam pagar milhares, milhões pela receita. Pagariam ainda mais por uma franquia da loja, qualquer coisa. Mas Vovó Nona não contava para ninguém, de jeito nenhum, era segredo de família, que passava de avó para neta, havia muito tempo.
E chegou um dia, se não me engano, 12 de julho de 1937, que um carro passou, um daqueles bem velhos, grandões, faróis grandes, bancos de couro, estepe atrás, estilo Al Capone, e atirou contra a pobre loja da Vovó Nona. Por sorte, ela se escondeu embaixo do balcão e lá ficou até que o carro fosse embora.
No dia seguinte, estavam todos chocados. Quem faria uma coisa dessas com a Vovó Nona? Ela, por mais assustada que estivesse, no entanto, continuou a trabalhar. Uma rodinha de detetives amadores, entre uma cesta de bolinhos e outra, discutia sobre isso, tentando descobrir quem seria. Por fim, deram um conselho para ela:
– Olhe só Vovó Nona, eu, se fosse a senhora, registraria a receita destes bolinhos. Assim, quem quisesse fazê-los, que os fizesse, mas iriam pagar uma parte para você. E todo mundo fica feliz!
– Isso mesmo, Vovó Nona, porque quem fez isso com certeza queria fazer pressão para conseguir a receita.
A boa velhinha concordou, e mais cestas de bolinhos foram trazidas, às braçadas, em comemoração. No dia seguinte, registrado no departamento de patentes estava:
“Bolinhos de Chuva da Vovó Nona®:
Receita:
XXXXXX
XXXXXX
XXXXXX”.
Claro, no lugar destes x’s estavam os ingredientes de verdade. E não demorou muito para vários irem lá requerer a receita para fazer seus próprios bolinhos. Uma loja, a de Bolinhos de Chuva do Al, abriu exatamente em frente à dela. Mas que ousadia!
Os clientes antigos sempre iam para a Quituteria da Vovó Nona, afinal, ela era a dona desde o começo, fora ela quem trouxera. Fora que ela era muito mais agradável que um cara com chapéu de aba mole, charuto e terno, cicatrizes na cara, servindo bolinhos para você.
Com raiva por não conseguir, Al baixou os preços. Alguns ainda foram, mas o bolinho não era tão bom quanto o da Vovó. Então, pagando umas pessoas, Al criou uma verdadeira greve de bolinhos. Homens carregando placas com os dizeres “Só quero bolinhos do Al!” se acumularam à porta da Quituteria da Vovó Nona. Era impossível entrar lá. E os clientes olhavam indecisos, sem saber o que fazer.
E começaram a gritar: “Queremos bolinhos da Vovó Nona!”. E ela os atendeu, jogando os bolinhos de sua varanda, em uma verdadeira chuva, para que todos pegassem.
Enquanto isso, Al literalmente comia o seu chapéu de tanta raiva. Ah, se ele pegasse a Vovó Nona! Mas tinha um plano.
No dia seguinte, a varanda havia sido eficientemente tapada com uma placa gigantesca, na qual estava a cara de Al apontando para a sua loja, dizendo: “Eu só como bolinhos do Al”. Além disso, brutamontes cobriam as portas e janelas.
Os clientes não sabiam o que fazer e, viciados por bolinhos, tiveram de comer os do Al, ainda que contra a vontade. Vovó Nona estava sem saber o que fazer, cuidando de seus netinhos. Mas estava tranqüila. Sabia que havia algo especial na sua receita que ninguém conseguiria imitar, e não tardaria para que todos voltassem à sua lojinha.
E não demorou mais que dois dias para que os clientes se revoltassem e fizessem uma marcha por toda a rua, com placas como: “Amo muito os bolinhos da Vovó!” ou “Fora, Al!” ou “Eu quero os bolinhos da Vovó Nona!”.
Quando a marcha irrompeu pela rua, uma metade de cada lado, e se encontrou no meio, onde ficava a loja, os brutamontes se assustaram e fugiram. A placa foi derrubada, e, quando todos entraram na Quituteria, Vovó Nona já tinha preparadas cestas e mais cestas de bolinhos de chuva. Por conta da casa.
E todos comeram felizes os bolinhos de chuva da Vovó Nona! Ah, que delícia!
Mas a Vovó não era vingativa, não; ela logo seguiu para o lado oposto, onde Al comia já o paletó, inconformado, e lhe entregou um bolinho, que, desiludido, o homem comeu. E adorou!
– Ora, mas Vovó Nona, que bolinho delicioso! Por que os meus não ficaram tão bons assim?
– Ora, porque faltou o ingrediente principal.
– Qual? Eu segui toda a receita!
– Não, há algo que está na receita, mas que ninguém se deu ao trabalho de executar: “Misture tudo com uma pitada de amor e leve aos fregueses com um sorriso no rosto”.
E o senhor Al se juntou à Vovó Nona na produção de bolinhos de chuva. A de Al fechou, enquanto que a Quituteria da Vovó Nona continua lá, singela, com dez mesinhas, pequenina. Você pode até dar uma passada. Quem sabe eles não lhe dão um bolinho para experimentar?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais