Os Gigantes de Pedra
Certo dia, depois de muitos e muitos anos sem ter acontecido, nevou em Santa Catarina. As montanhas ficaram pintadas de branco, repletas daquela camada de gelo congelado, dando um aspecto totalmente diferente ao estado, famoso por suas praias.
Isto pegou todo mundo de surpresa; ninguém imaginava que uma massa de ar polar iria conseguir ser forte o suficiente para trazer tanta neve para o Sul do Brasil. Pessoas nas ruas se encapotaram com tudo o que tinham e se reuniram para tirar fotos de algo que nunca haviam visto na vida – e, provavelmente, nunca veriam de novo.
Mas isto não pegou ninguém mais de surpresa do que as montanhas.
É, exatamente, as montanhas.
Pode parecer esquisito, mas as montanhas se importam muito com o tempo; afinal de contas, são elas que sofrem mais com os ventos, chuvas, mudanças…
Esta montanha em particular ficou bastante chateada, porque, afinal de contas, ela já estava acostumada com o tempo agradável, a paisagem litorânea, a vida tranquila… Mas, do nada, neve? Ela podia aguentar pessoas construindo casas em suas encostas; podia aguentar aviões sobrevoando, helicópteros dando voltas, gente pulando de asa-delta; ora, se quisessem, poderia até aguentar um teleférico indo de um lado a outro para dar uma vista panorâmica. Mas neve? Não.
Quando haviam decidido quem iria para onde, lá no começo dos tempos, haviam prometido que o clima seria ameno, excetuando uma ou outra onda de frio que, na maioria das vezes, seria barrada por outras montanhas mais ao sul. Tivera de tirar no palitinho, ou melhor, na arvorezinha, mas conseguira aquele lugar para si. E agora? Neve? Era cruel demais. Tremera a noite inteira, até que finalmente esquentara e a neve derretera.
Mandou uma águia-correio até a montanha presidente, o Pão de Açúcar, mas ele apenas pôs panos quentes – ou melhor, nuvens quentes – na história. Não iria acontecer de novo, podia ficar tranquila, um acontecimento climático totalmente inesperado e que dificilmente seria repetido.
Ela não teve escolha, a não ser se aquietar. Mas não por muito; logo veio outra onda de frio, que só não a cobriu de neve, porque não estava úmido o suficiente.
– Basta! – ela gritou.
Pela cidade, todos sentiram um tremor; seria um terremoto?
E, quando olharam para o horizonte, não acreditaram no que viram: a montanha estava se levantando!
É, exatamente, levantando! As elevações eram as suas costas, e, conforme ela foi se erguendo, alcançando quilômetros e quilômetros de altura, suas pernas e braços se desenterraram do seio da terra. Casas às suas costas, que não estavam bem construídas, desmoronaram; naquelas que estavam seguras, as pessoas se seguravam ao que podiam – lustres, chuveiros, torneiras, cachorros…
E a montanha começou a andar. Porém, como fazia muito tempo que não sentia a água do mar, só a água dos lençóis freáticos, que era bastante insossa, decidiu ir para o litoral – e, de um passo, já estava lá. E ela era uma montanha cuidadosa, não queria causar problemas para a natureza ao seu redor, de modo que foi colocando a perna bem devagar.
Na praia, uma sombra encobriu os poucos doidos que se aventuravam apesar do frio; logo em seguida, uma grande onda veio e encobriu uma faixa de até três quarteirões.
É, não dava para ser mais delicada do que isso.
E lá se foi a montanha, com a água na altura do que seria o seu joelho (profundidade segura), seguindo em direção ao norte. Na cidade, olhando-se para o horizonte, via-se uma enorme falha, como se duas bombas tivessem sido jogadas e simplesmente desaparecido com o relevo.
Passando por São Paulo, ela parou ao lado da serra que levava para a baixada santista e perguntou se aquelas montanhas não gostariam de trocar de lugar com ela; infelizmente, ninguém quis. Gostavam de lá, das árvores, cachoeiras e, principalmente, das estradas passando por suas entranhas. Faziam cócegas.
Em seguida, passou ao largo do litoral do Rio de Janeiro, tentando se esconder, mas não teve jeito; o Pão de Açúcar a viu. Ela continuou a avançar, criando ondas com suas pernas gigantes e jogando sombras sobre as cidades, cujos habitantes olhavam sem acreditar.
Ele a deixou passar, balançou sua cabeça, murmurou alguma reclamação, ficou rezando, esperando que ela desistisse de sua loucura e voltasse para trás, mas não adiantou; logo ela já desaparecia no horizonte (quer dizer, desaparecer, não desaparecia, porque ela era tão grande, que era possível ver a uma centena de quilômetros de distância).
Murmurando, o Pão de Açúcar se levantou; tinha de dar um jeito naquilo.
Quem olhava à distância, podia ver uma cadeia montanhosa à frente, com suas casas balançando, e outra cadeia montanhosa atrás – cujo teleférico simplesmente não resistiu, e as cabines foram arremessadas ao mar.
Quando chegou ao litoral do nordeste, a montanha catarinense perguntou se alguma falésia não gostaria de trocar de lugar com ela; elas, porém, tinham mais bom senso.
– Não podemos sair daqui. Não combinamos com o litoral sul, e você nunca iria nos substituir a contento. Cadê seu término súbito e sua encosta íngreme? Suas pedras coloridas? Suas escadas escavadas?
– Fora que a sua vegetação não iria sobreviver aqui – opinou a outra. – Você teria de raspar careca.
– E nós não queremos o frio – disse a última, por fim.
Mas a montanha não desistiu; caminhou pelo Atlântico em direção a Fernando de Noronha, onde perguntou aos dois montes que ficavam parcialmente submersos se não gostariam de trocar de lugar com ela.
– Para ser sincero – eles disseram – até que gostaríamos de ver um pouco de frio. Estamos realmente cansados de ficar aqui, neste calor, o dia todo.
– Então levante, que eu fico no seu lugar! – exclamou a montanha catarinense, toda feliz.
Entretanto, o Pão de Açúcar, o presidente das montanhas, logo chegou.
– Podem parar por aí. Nada de trocar de lugar. Vocês sabem muito bem que nós nos dividimos, e a divisão era permanente até a nova Pangeia.
Por pangeia, ele queria dizer o momento em que os continentes iriam se unir novamente, formando um supercontinente.
– E vocês tiveram direito de resposta milhões de anos atrás! Por que não reclamaram na hora?
A montanha catarinense fez sua reclamação a respeito do clima; a de Fernando de Noronha, sobre o fato de não esperar que sua vida seria simplesmente ficar olhando golfinhos e turistas.
– Nada disso. Podem parar de reclamar. Se começarem a trocar de lugar, logo o Grand Canyon vai querer trocar com os montes Urais, a Cordilheira dos Andes vai querer ficar no meio do Deserto do Saara, e vai ser o Caos. Aliás, nenhum de vocês vai querer que o Everest se manifeste, não é?
Os dois abaixaram as cabeças; o Everest era o Rei das montanhas; ele mandava até mesmo nos presidentes – que eram apenas líderes nacionais.
– Mas, e quanto ao frio? Não estava no contrato!
O Pão de Açúcar suspirou, o que causou uma rajada de vento que por pouco não destruiu as casas no solo.
– Eu vou falar com as geleiras da Antártida e ver se elas podem dar uma maneirada. Respirar mais leve. Está bem?
A catarinense concordou.
– E quanto a você – ele falou para a de Fernando de Noronha – pare de reclamar. Você pegou uma das três melhores localizações do mundo para ficar. Tem gente que mataria para ficar no seu lugar. E daí que tem de aguentar uns golfinhos e turistas? Mais alguns milhares de anos, e provavelmente não vai ter mais nenhum dos dois. Aí você vai ficar em paz.
A outra assentiu, vexada.
– Muito bem, todos para casa – disse o Pão de Açúcar, batendo palmas, o que fez um estrondo semelhante a um trovão, ouvido em todo o continente Sul-Americano.
E, assim, todas as montanhas voltaram para seus devidos lugares, como se nada houvesse acontecido. No solo, todos preferiram imaginar que havia sido apenas uma miragem, um truque de marquetim, e que o teleférico do Rio de Janeiro tinha rompido os cabos por excesso de uso. As cabines teriam caído no mar depois de rolarem a encosta e serem empurradas pelo vento.
No sul, a montanha revoltosa ficou deitada, esperando; logo, logo viria a Pangeia novamente, um novo sorteio, e ela poderia trocar de lugar.
Um lugar bem quente, de preferência.
Nota do autor, outubro de 2021: a ideia desta crônica veio, logicamente, depois de uma onda de frio que fez nevar em SC. Na época, foi algo totalmente inusitado para todo mundo – só que, agora, em 2021, tivemos isso de novo. E, pelas alterações climáticas associada ao aquecimento global, creio que isso logo será frequente… Quanto tempo até a montanha se revoltar novamente e decidir não esperar pela Pangeia?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais