Vampiros modernos
Era aniversário de dez anos de Michel e, para isso, seus pais tinham uma surpresa muito especial.
– Vamos viajar! – eles disseram.
No dia do aniversário mesmo, sexta-feira, entraram todos no carro, mas a mamãe, como sempre, fez uma checagem:
– Óculos de sol?
– Check – disseram papai e Michel.
– Protetor fator 60? Roupas antiUV? Chapéus?
Eles concordaram com tudo, como se estivessem indo passar uma semana torrando ao sol. Mas, Michel sabia que isso era impossível; sua família toda era muito, muito branca, mais branca que o branco de fundo deste texto, mais branco que a neve recém caída no ártico. E, não bastasse isso, mamãe era dermatologista e muito, muito preocupada com câncer de pele.
– É o que mais mata no Brasil! Especialmente nós!
Por nós, ele achava que ela queria dizer quase albinos. Só que não.
Saíram no meio da tarde, quando o sol já estava mais fraco, e partiram para Campos do Jordão, onde o clima estava maravilhoso: frio e chuvoso.
– Amanhã, temos uma coisa muito especial para comemorar seu aniversário.
Michel mal podia se conter; sabia que o aniversário de 10 anos era muito especial, porque, nos filmes, desenhos e livros, sempre acontecia alguma coisa, como receber uma carta dizendo que você é um mago, receber seus Pokémon para sair e caçar outros Pokémon, esse tipo de coisa.
No dia seguinte, eles acordaram cedo (às 14 horas), tomaram café da manhã (que na verdade era almoço) e seguiram para uma casa um tanto afastada na cidade, que servia de restaurante mal-assombrado de uma franquia de cinema só um pouco famosa.
– Vamos finalmente visitar a casa mal-assombrada de…
– Quase isso – mamãe respondeu.
Eles tocaram a campainha; um homem enorme, verde e com parafusos no pescoço, repleto de cicatrizes, abriu e perguntou a senha.
– Nosferatu, pele de rato e chulé de sapato.
– Bem-vindos – disse o homem.
Ele puxou uma alavanca, e os três caíram por um escorregador longo e escuro, até aterrissarem em uma sala de pedra, escura e iluminada por tochas.
Michel estava assustado, olhando para os lados. Mamãe e papai sorriam de felicidade.
– Ah, sempre uma novidade anual! – disse ele.
– Lembra a vez do poço do elevador?
– De fato, tiveram de mudar depois dos processos. Foi trabalhoso manter isso aí.
Eles se levantaram e andaram pelo saguão até uma porta; Michel olhou ao redor: o chão tinha colchões para amortecer as quedas, tapetes de EVA no chão e nas paredes, até a altura de um metro, e diversos cartazes dizendo para se levantar com cuidado, olhar ao redor e centenas de outras dicas de segurança. Eles, definitivamente, não queriam mais processos ali, fosse o que fosse.
Cruzando a porta, entraram em um grande saguão de pedra todo iluminado, cheio de barraquinhas, banners, faixas e, o mais incrível: milhares e milhares de pessoas, todas tão brancas quanto eles, com cabelos dos mais diversos tipos, uns usando capas, outros, não, vários com óculos de sol e roupas de proteção solar como as que eles usavam, morcegos voando por toda parte, o que parecia realmente contradizer toda a preocupação com saúde pública que eles tiveram na chegada, e… Algumas coisas mais esquisitas.
Logo na entrada, tinha uma barraca oferecendo avaliação grátis para câncer de pele; logo do lado, uma outra vendendo roupas de superproteção UV, que cobriam o corpo todo; um pouco à frente, uma barraca vendendo protetores solares com fator de proteção de 150 a 500; e, por fim, uma barraquinha vendendo pílulas de vitaminas para compensar a falta de exposição solar – “500% da sua necessidade diária!”.
Isso tudo pareceria muito uma convenção de dermatologistas, se não fosse por um folheto informativo que dizia o seguinte:
“Você sabe como se prevenir das principais doenças vampirescas?
- A falta de exposição solar pode causar raquitismo – por isso, sempre tome suas vitaminas!
- Consumir sangue humano pode transmitir doenças – por isso, sempre conte com nossos bancos especializados e faça exames regularmente!
- O câncer de pele é o tipo de câncer que mais mata vampiros todos os anos – nunca deixe de usar protetor solar e roupas de proteção!
- Morcegos podem transmitir raiva – então, sempre mantenha a sua carteira de vacinação em dia!
Um oferecimento de:”
E abaixo seguiam inúmeras propagandas de todas aquelas lojas.
O que raios estava acontecendo?
Mais à frente, eles passaram por uma barraquinha do “Sangólicos Anônimos”, na qual uma pessoa estava dormindo, enquanto um banner notificava que a próxima reunião seria na segunda-feira à noite. “Cada noite sem sangue é uma noite de vitória”, dizia o banner, “Conte sua vitória gota a gota”. Logo ao lado, uma barraca oferecia amostras grátis de sangue artificial, e duas pessoas estavam provando.
– Realmente, é praticamente igual ao natural! – exclamou um.
– Mas, não sei, fica um gostinho pegando na língua depois – o outro retrucou.
– Tente este aqui – falou o vendedor. – É uma versão com menos sódio, imitando o sangue de pacientes hipertensos em tratamento.
– Ah, delícia! – disse o segundo, depois de provar. – Aquele gostinho de remédio de hipertensão!
– Mas sem os efeitos colaterais – falou o vendedor, sorrindo e piscando. – Gostaria de provar um, garotinho? Temos a versão sem álcool!
– Hoje não. Ainda não – disse a mamãe, puxando Michel para si.
– O melhor é oferecer enquanto ainda são crianças! Para não correr o risco de viciar em sangue natural! – ainda tentou o homem, enquanto eles se afastavam.
Enquanto eles caminhavam ainda para um lugar indefinido, totalmente perdidos, um grupo de pessoas de jaleco veio abordá-los.
– Gostariam de apoiar a ciência?
Papai já ia passar bufando, mas mamãe o segurou; afinal, ela era dermatologista! Tinha de apoiar a ciência!
– O que estão pesquisando?
– Precisamos de voluntários para doar um pouco de DNA para estudarmos por que os vampiros são imortais e, talvez, ajudar os humanos!
– Vamos, querida, não entremos nesta discussão política. Já estou enfastiado desses assuntos mundanos.
– Olha, eu gostaria muito, mas…
– Tudo bem, leve este folheto! E aqui, garotinho, pegue você também.
A moça entregou um papel: era a propaganda de uma conferência. “Tardígrados: os verdadeiros ancestrais dos vampiros?”.
Michel encarou os pais, assustado.
– Mamãe… Papai… O que está acontecendo? Nós somos vampiros?
– Explicar-lhe-ei a seu tempo – anunciou papai, com sua voz grossa. Como era formal!
Eles seguiam para um grande salão, com enormes portas de madeira abertas, tão grandes que mais pareciam um castelo. Outras pessoas também se dirigiam para lá.
– Assinem a petição! Assinem a petição!
Um menino cheio de espinhas saltou diante deles, com uma prancheta e uma caneta.
– Assinem a petição para tirarem “Crepúsculo” de catálogo!
Os pais não deram bola, mas Michel ficou curioso.
– Por que quer tirar? Eu gosto desse filme!
– Não dá pra deixar a indústria humana dizendo que vampiros brilham no sol! É uma vergonha para a nossa imagem!
– Talvez depois, ehm? – falou mamãe, puxando Michel pelo braço para entrarem.
O salão, que mais parecia um castelo gótico iluminado por tochas, estava repleto de pessoas sentadas em cadeiras, a grande maioria com crianças, muitas tão assustadas quanto o próprio Michel. Diante deles, havia um tablado e um grande telão. A família de Michel se sentou em um dos bancos do meio do salão e, pouco tempo depois, as portas foram fechadas e um homem vestindo uma capa, com um microfone preso ao rosto, daqueles típicos de artistas em shows, correu para o tablado, sob uma salva de palmas e com direito a um pedaço de “Tocata e Fuga” de Beethoven.
– Boa noite, comunidade vampiresca!
– Papai… O que está acontecendo?
– Acalme-se, Michelzinho. Você está prestes a adentrar um novo mundo.
O menino engoliu em seco.
– Você é um vampiro, Michel – disse mamãe, carinhosamente.
– De uma fina linhagem – completou papai, orgulhosamente.
Ele era um vampiro? Mesmo? Seus pais eram vampiros? O que raios estava acontecendo? Tudo o que ele queria era uma varinha mágica ou um Pokémon! Como assim, vampiro?
– Sejam muito benvindos os novos vampiros que entram na nossa comunidade! Sempre ficamos muito felizes quando a nossa comunidade cresce e, antes de começar as nossas palestras, vou relembrar umas regras importantes.
Ele começou uma apresentação de slides em que tinha um vampiro, daquele de desenhos antigos, como se estivesse pronto para atacar um humano, com um X enorme em vermelho em cima.
– Hoje em dia, não podemos mais atacar humanos sem o seu consentimento. Então, sempre, sempre, sempre, antes de pensar em transformar alguém, peçam pelo consentimento da pessoa e peçam que preencha o formulário que nós temos disponível no nosso site. O lado bom é que, com a política de boa vizinhança que conseguimos com certas franquias cinematográficas, nunca tivemos tantas pessoas querendo se tornar vampiros!
O próximo slide tinha três atores famosos, e Michel reconhecia um deles.
– Olha, mamãe, é o cara que fez o Homem-Formiga!
Rapidamente, um X vermelho gigante os cortou.
– Nada de chamar a atenção para o fato que não envelhecemos! Ou seja: nada de virar ator de Hollywood. Paul, Keanu e Nicholas que estão aqui na imagem já foram notificados… E devem deixar a vida pública em breve.
O próximo slide mostrava um vampiro vestido de terno ajudando um vampiro desesperado, ambos desenhados, também.
– Não se esqueçam que, contribuindo anualmente para o seu CRV, Conselho Regional de Vampiros, você terá direito ao suporte dos nossos serviços advocatícios, caso sejam processados por algo, como, por exemplo, transformação sem consentimento.
– Como é?
– Caso você de repente transforme alguém em vampiro, mas a pessoa diga depois que não queria – explicou mamãe.
– Baboseira – reclamou papai. – Pagar estes conselhos é desperdício de dinheiro.
– E, para vocês que estão com dificuldades de escolher as melhores profissões, temos nossos cursos livres – o slide agora mostrava um vampiro escrevendo em uma máquina de escrever, sob a luz do luar. – Curso de escrita para historiadores. Porque, vocês sabem: nada melhor para um imortal do que ser historiador! Conseguimos escrever a história sem toda esta parcialidade que os reles mortais têm. E, por fim, temos também a nossa agência de empregos – o apresentador prosseguiu, apresentando um slide em que um vampiro apertava a mão de outro. – Muitas vagas para serviços noturnos. Você nunca vai precisar ver a luz do dia de novo!
Depois disso, ele explicou mais alguma coisa, e todas as crianças receberam mochilas com capas e amostras grátis de protetor solar, vitaminas e lixadores de dentes caninos, “para manter suas presas contidas e não chamar a atenção dos humanos”. Por fim, veio o treinamento:
– Vamos lá, gente, este é o teste de batismo! Hora de se transformar em morcegos! É natural, tão natural quanto a luz da lua!
– Mas, mamãe, a luz da luz é só a luz do sol refletida! – exclamou Michel.
Ela rapidamente tapou sua boca e sorriu sem jeito para o casal ao lado.
– Ensinam qualquer tipo de bobagem para essas crianças hoje em dia! – ela falou.
– Nem me fale – disse a mãe da outra família. – Na escola do meu filho, queriam colocar aula de culinária e usar alho para temperar o arroz!
Dos seis, cinco torceram o nariz ao ouvir essa palavra; Michel ficou sem entender. Ele adorava alho!
– Muito bem, pessoal, respirem fundo e… Imaginem-se como morcegos!
Ao seu redor, as crianças se transformavam em pequenos morceguinhos, seguidos de pais orgulhosos. Michel, por sua vez, respirava, respirava, respirava e nada; tentou se imaginar como um morcego, voando por aí, mas nada; as pessoas se transformavam ao seu redor e, conforme ele era o único a permanecer ainda em sua forma humana, foi ficando mais e mais nervoso.
– Vamos, filho, é isento de dificuldades! Mostrar-lhe-ei! – anunciou seu pai, transformando-se também.
Mamãe também mudou, e as coisas começaram a rodar e rodar, ficando cada vez mais turvas…
Michel acordou de volta na cama de seu hotel em Campos do Jordão; eram duas horas da tarde.
– Mamãe! Papai! – ele exclamou para os dois, sentados na beirada da cama. – A gente… A convenção de vampiros! Onde a gente…?
– Fique calmo, Michelzinho – disse sua mãe.
– Imagino que tenha ingerido algum alimento além do prazo de validade – disse papai. – Já contactamos o restaurante. Ordenei uma liminar para que seja fechado e investigado imediatamente.
– Restaurante?
– Você não se lembra da sua festa? Na casa mal-assombrada? De tema de vampiros?
– Não, a gente desceu por um túnel, para uma convenção de vampiros e…
– Tadinho… – falou mamãe, passando a mão por sua testa. – Acho que está com febre.
– Descanse um pouco, filho – disse papai. – Iremos à farmácia adquirir medicamentos.
Eles saíram fechando a porta do quarto.
Michel pulou da cama e grudou o ouvido na porta, para ouvir seus pais, enquanto esperavam o elevador. Mas, infelizmente, a madeira era grossa demais, e tudo o que ele ouviu foi um ruído indistinto.
Do outro lado, eles conversavam:
– Pobre criança. Quem imaginaria que o gene não passaria adiante? – disse mamãe.
– Paciência. Isso acontece a cada dezena de milhar.
– Poderíamos oferecer a transformação…
– Você sabe que é necessário ser maior de idade para o termo ter validade. Você sabe o quanto custou aprovar esta lei. Na minha posição, não posso forçá-lo. Esperá-lo-emos. Tudo a seu tempo.
– O que faremos até lá?
Papai deu de ombros.
– E a mochila?
– Queimei-a na lareira, ontem – ele respondeu, antes de entrar no elevador.
Michel enquanto isso, procurava pelo apartamento qualquer prova de que tudo fora real, mas não havia nada! A própria mochila que ele ganhara, com a capa e umas amostras grátis, tinha desaparecido!
Seria tudo realmente uma alucinação? Ou será que era realmente um vampiro? O… Conselho Regional de Vampiros? Ele tinha um site, não era mesmo? E se ele entrasse? Será que conseguiria provar que tudo era realmente verdade?
Mas, digitando no celular, simplesmente não apareceu o site. Será que tinha alguma forma de entrar?
Ele se olhou no espelho; era branco como seus pais, mas com os caninos menos afiados. Aliás, nem um pouco afiados. Talvez, nenhum deles fosse um vampiro. Talvez tivesse sido tudo realmente uma alucinação por comida estragada.
Voltou para o quarto, e, em cima da mesa, havia ainda um pedaço de bolo com um bonequinho de vampiro em cima. Cheirou-o; era um bolo comum.
Definitivamente, deveria estar viajando, tendo alucinações. Devia ser da febre.
Pensando bem, essa coisa de virar vampiro… Era tudo maluquice. Imagine, hoje em dia? Quantas restrições eles não teriam!
Sem mencionar que eles ainda brilhavam na luz do sol. Imagine, não poder sair por aí, porque iria brilhar? Não, definitivamente, era melhor ser humano, mesmo.
– Que coisa, essas febres que fazem a gente alucinar – disse ele, provando um pedaço do bolo.
Até que era gostoso! Tinha um quê ferroso, que ele não sabia como descrever. E aquela calda vermelha, deveria ser de morango. Deliciosa! De lamber os dedos!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais