À primeira vista
A primeira vez que eu te vi foi algo… Bastante diferente. Na realidade, eu acho que tudo entre nós até hoje sempre foi bastante diferente de todo o resto.
Eu fazia parte de uma liga de Cirurgia Geral da Faculdade e iria participar de um evento no fim de semana, para o incentivo a doação de órgãos e tecidos. Naquele dia, eu me lembro bem, eu estava com uma calça de algodão bege, que virava bermuda, uma camiseta, um agasalho de lá também bege e um sapatênis da West Coast da mesma cor. Como um amigo meu mesmo comentou, estava praticamente parecendo um morador dos Andes com toda aquela roupa. Mas você nem reparou; ainda bem.
A palestra era a mesma palestra básica que fariam por anos e anos, explicando sobre a doação de órgãos e sobre como seria o evento. E, de repente, em um momento em que estavam falando sobre experiências com a doação, você se levantou e falou lá na frente.
Tudo o que eu lembro é da blusa de lã (ou coisa parecida), a saia, a silhueta esguia, os longos cabelos e aquele ar de mulher decidida, que sabe quem é e a que vem. Foi paixão a primeira vista.
E melhor ainda; qual não foi a minha emoção quando, durante o tempo em que falava sobre a OPO, a organização de procura de órgãos, onde fazia estágio, eu percebi que você estava olhando na minha direção?
Alguns anos depois, viria a descobrir que, na realidade, você estava olhando para um loiro que estava no meio do caminho. Mas tudo bem. Se ele não estivesse lá, se estivesse em outro lugar, eu teria achado que você não tinha dado a menor bola para mim e possivelmente nunca teria sequer cogitado pedir o seu telefone. Aquele loiro enxerido foi providencial.
Você voltou para o seu lugar; parecia que caminhava sobre nuvens. Para mim, o resto da aula acabou; fiquei o tempo todo olhando para o lugar onde você estava, sentada ao lado de outra enfermeira, dando bola para um cara do segundo ano e um colega meu do primeiro. Ai, que desespero! Estariam eles pegando o seu telefone? Combinando de sair? Por que eu não sentara na frente? Puxa vida! Iria perder a minha chance justamente com você, que passou sua apresentação toda olhando para mim?
Mas eu era um jovem justo; se eles haviam falado com você primeiro, o que poderia eu fazer? O único jeito era esperar até o evento e, quem sabe, lá pedir o seu telefone, se eles não tivessem feito nenhum movimento até então.
Assim, você saiu e se foi no final da aula; eu fiquei sondando, tentando criar coragem para conversar, mas não consegui. Tive de passar a semana esperando, contando as horas até que o evento chegasse.
E o evento chegou; uma tenda gigantesca montada no parque do Campolim, músicos tocando, nós, sentados, aferindo pressão e glicemia. Mas eu não prestei nenhuma atenção; tudo o que eu queria era achar você.
E lá estava; novamente, conversando com o menino do segundo ano. Não sabia o conteúdo da conversa – estaria ele te chamando para sair? Será que eu realmente não conseguiria ficar com você? -, mas, no final, parecia que não tinha sido muito boa, porque ele saiu parecendo irritado. Se depois de um bom tempo viria a descobrir que, na realidade, você estava dando uma bronca nele por alguma coisa relacionada à aferição de pressão. E, com isso, lá surgiu a minha oportunidade; você estava sozinha, com uma calça branca, uma camiseta do evento gigantesca e horrorosa, um colete verde da enfermagem que mais parecia um daqueles coletes de pescador, igualmente horroroso, e os óculos com uma armação que eu nunca gostei e achei ótimo quando você perdeu, uns dois anos depois. Era minha chance. Minha primeira abordagem, depois de cumprimentar:
– Você faz estágio na OPO, né? Como que funciona?
E você começou a explicar, mas logo se irritou, porque eu não estava prestando atenção. Mas é lógico que não estava; como poderia, se o tempo todo ficava olhando para os seus lindos olhos amendoados, para seu belo sorriso, para seu cabelo que mais parecia uma cachoeira negra? Uma hora, tive de sair porque haviam me chamado, sem ter a menor ideia do que você havia falado e sem ter tido a menor oportunidade para pegar o seu telefone. Mas, tudo bem; o primeiro contato estava travado. Era uma questão de tempo e oportunidade para ganhar a batalha. Eu saí achando que teria muitas chances, e você me viu sair muito brava, pela desatenção e por ter virado as costas no meio do assunto.
Foi um dos colegas do meu ano que deu a brilhante ideia de todos da medicina e da enfermagem se sentarem juntos para comer o lanche; eu tentei sentar relativamente perto e lá fiquei, todo acanhado, quando este mesmo amigo propôs trocar os telefones. O cara fazia sucesso com as mulheres, então, logicamente, ninguém recusou, e esta foi a minha oportunidade; não peguei nem o telefone, nem o Orkut de mais ninguém, apenas o seu. Falei que era mais fácil eu te adicionar do que você me adicionar, porque meu nome era difícil de escrever.
No final do evento, antes de você ir embora, ainda consegui falar mais um pouco com você; já tinha tirado uma foto de todas as enfermeiras agrupadas, só para ter você, lá no meio, e armei um plano: peguei um lenço do evento que eu havia ganhado, coloquei na sua cabeça como uma bandana e bati uma foto. Ficou horrível e nós riríamos dela por anos a fio, mas, para mim, no momento, estava linda. Finalmente tinha uma foto só sua para guardar comigo.
E você foi embora, levando a minha bandana; até hoje você guarda ela presa do lado da sua cama, na casa dos seus pais.
Naquele dia, como você me contou, você ficou tão ansiosa, que pediu para usar a internet na casa de uma amiga para ver se eu já tinha adicionado no Orkut. Demorei, mas adicionei; e logo começamos a trocar mensagens.
Para as suas amigas, eu virei “O Gatinho da Med”; para os meus amigos, você virou “A Enfermeira”. E, assim, graças a uma campanha de doação de órgãos e dois loiros enxeridos, nós estamos juntos até hoje.
Nota do autor, setembro de 2021: esta crônica eu escrevi para o nosso casamento. Estava junto de outra crônica sobre a sua família, ambas sobre as mesas para as pessoas lerem enquanto esperavam.

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais