Acidentados
No meu primeiro ano de faculdade, pude ficar muito tempo no Pronto Socorro do Hospital Regional. É um lugar interessante de se ficar, porque, não sei se refletindo todos os outros hospitais ou não, quem conduz tudo são os residentes – em especial, R1. Os R2 ficam mais isolados, pegando as cirurgias complicadas e respondendo todas as dúvidas dos R1. E os chefes? Aparecem na troca de plantão¹.
O lado bom de tudo isso é que, quando os residentes da cirúrgica acham alguém que possa servir de mão de obra, eles aproveitam a oportunidade. E, no PS, já me disseram uma vez, apenas 5% dos casos são efetivamente cirúrgicos e, por experiência própria, a grande maioria é só banalidade, que com um pouco de treino você trata com facilidade.
Mas uma coisa que eu aprendi bem é que, quando se encontra um acidentado na rua, você tem de deixá-lo no chão, exatamente como está. Se for leigo, chame o SAMU. Se for da área da saúde e souber agir, mande alguém chamar o SAMU e faça a avaliação do ATLS.
Estava justamente comentando que nunca havia encontrado nenhum acidentado na rua, em meus três anos de faculdade, quando tive a oportunidade de encontrar 2, com um intervalo de mês e meio, no segundo semestre de 2008.
O primeiro foi na avenida Eliseu de Almeida, em São Paulo; estava com a minha namorada, uma enfermeira, e paramos o carro para ver o que havia acontecido. O motociclista havia batido na traseira de uma picape e estava caído no chão. A primeira pergunta que fiz foi se haviam ligado para o SAMU – e me disseram que haviam. Em seguida, fui falar com o acidentado, do mesmo jeito que no atendimento do PS – só que, por estar na rua, sua ação fica extremamente restrita. Não se pode tocar no acidentado nem tentar movê-lo de forma alguma. Tudo que você pode fazer é: desobstruir vias aéreas, sem tocar na coluna cervical, se estiverem obstruídas; fazer ressuscitação cardiopulmonar, se necessário; e acalmar a vítima e as pessoas ao redor. Só. Nada de medidas heróicas, nada de cricotireoideostomias feitas com canetas BIC, nada de reduções mágicas de fraturas para aliviar a dor, de tirar o acidentado do meio de um campo em chamas com apenas um braço ou de suturar sangramento intermináveis com agulha e linha de costura. Se houver um sangramento, você pode estancá-lo com uma faixa ou pano – contanto que mobilize o acidentado o mínimo possível.
Naquele caso, a vítima estava respirando bem – um pouco aceleradamente, com certeza, por causa do trauma, mas nada perigoso. Não estava com meu estetoscópio e não podia auscultar, mas o que aprendi no PS me levou a crer que não era nada grave. O pulso estava bom, ele estava consciente, claramente não havia alterações das pupilas nem neurológicas, e o abdome estava rígido, pelo estresse (mas ele soltava quando eu pedia) e indolor. Sem alterações graves.
O único problema eram as suas fraturas; na perna esquerda, uma fratura de diáfise de fêmur (o osso da coxa se parte no meio, e uma parte encavala na outra; a perna parece um bebê búfalo, dado o seu tamanho), mas os pés estavam com boa perfusão; no antebraço esquerdo, uma fratura de Colles (um dos ossos do antebraço se parte, e o outro sai do lugar; com isso, a mão toma uma forma semelhante a um garfo). E, no outro, uma fratura clara dos dois ossos do braços, exposta e sangrante (levemente; caía uma ou outra gota por vez).
O que fazer com o paciente? Nada. Esperar o SAMU chegar. Fiz ele ficar deitado, encostando as costas e apoiando a cervical – uma conduta talvez desnecessária, porque ele já havia se mexido excessivamente até então e obviamente não tinha lesão de coluna. Aproveitamos para cobri-lo com um guarda-chuva, para evitar o sol escaldante, e eu, fazendo o máximo que podia, fiquei pegando o seu pulso, para ver se não se alterava com alguma possível perda sangüínea (mas estava difícil; pacientes assim sofrem uma constrição vascular periférica e contração muscular tão fortes que até mesmo o pulso carotídeo estava difícil de achar).
No outro caso, estava voltando para casa, em Sorocaba, quando o trânsito parou no fim da marginal; apenas uma pista se movendo, imaginei que tivesse ocorrido algum acidente, e buzinei para a besta (era uma perua besta) parada na minha frente que ficou obstruindo a passagem. Estava chovendo bastante e, quando passei pelo afunilamento, vi um motoqueiro com a moto ainda presa sob um ônibus, uma picape interrompendo o trânsito (antes que atropelassem de vez o motoqueiro) e um agrupamento de pessoas ao redor, olhando, um segurando um guarda-chuva sobre a vítima.
Parei o carro em frente e saí, para tentar ajudar, sem ligar para a chuva.
– Eu sou um estudante de medicina – falei. – Vim ajudar. Ligaram para o SAMU?
– Estamos ligando, mas não atendem.
– Então continuem. É o 192 que estão ligando, né?
– Isso.
Acenei com a cabeça (já bastava da última vez terem chamado os bombeiros) e fui ver a vítima.
– Qual é seu nome?
– Bruno – respondeu o acidentado, urrando de dor. Estava curvado no chão, de pelve para cima, a perna prensada entre o ônibus e a moto.
– Bruno, o que aconteceu?
– Fui desviar do ônibus, mas a moto deslizou, e… Isso nunca me aconteceu antes, pelo amor de DEEEEUS!
– Fique calmo, Bruno – falei, ajoelhando ao lado, e segurando sua mão. – Eu vim aqui para te ajudar. O pessoal do SAMU já vai chegar e tirar você daqui,
São momentos agoniantes. Você vê a pessoa ferida no chão e não pode fazer absolutamente nada. Todas as condutas que poderiam ser feitas para aliviar a dor dependem dos socorristas – especialmente porque, se você tentar soltar a perna da vítima e, por um acaso, o ônibus estivesse estancando um sangramento, ele tornaria a sangrar – e como você faria para impedir? Nada de suturas mágicas ou estancamento com torniquete.
– Deite, Bruno, encoste as costas. Você tem o número de alguém que gostaria que avisássemos?
Ele estava bem. Respirava, se movia, estava consciente e orientado. Afora a perna, não alterava alterações – também não sentia nada na coluna, ou não estaria se debatendo. Não dava para examinar o abdome – ele estava tão virado para conseguir ficar estável que a musculatura estaria, sem dúvida, rígida e inescrutável.
Foi aí que as pessoas ao redor resolveram tentar erguer o ônibus para soltar a sua perna. E para explicar para todos que o único que podia fazer isso era o SAMU, porque não sabíamos que ele estava sangrando?
Levantei-me e anunciei alto e forte a informação; a turba se conteve, e fiquei ao lado de Bruno, vendo se ocorria alguma alteração.
O homem que estava ao meu lado, segurando o guarda-chuva, escutava-me e concordava – era o único entre todos aqueles relativamente calmo e consciente. Estavam todos agitados, animados para alguma salvação Magaiveriana e decepcionados com a falta do clímax.
Depois de cinco minutos, resolveram mudar as pessoas de trás do ônibus para frente, para aliviar a carga; a isso assenti. Não ia soltar a perna, sem dúvida, mas aliviaria um pouco os ânimos.
– Calma, Bruno, logo, logo o SAMU chega e vão levar você pro hospital. A ortopedia do Regional é a melhor que tem.
O desespero dele. O desespero das pessoas ao redor. E o que eu podia fazer?
Cinco minutos mais tarde, a turba havia aumentado – à custa de motoqueiros empáticos – e, em pouco tempo, queriam novamente erguer o ônibus. Fiquei um minuto discutindo com um motoqueiro grandão, que se tornara o líder da turba, de que não podíamos soltar a perna, porque poderia sangrar.
– Mas não ta sangrando! Dá pra ver que não ta!
– Não dá pra saber. Se o ônibus estiver segurando…
– Solta a minha pernaaaaaaaaa! Pelo amor de DEEEEEEEUS!
– Não ta sangrando! Vamos levantar, gente!
– Só o SAMU pode fazer isso! – falei, pacientemente e ainda com um tom forte, mas não adiantou.
Quando pude ouvir as sirenes do SAMU chegando, parei de discutir; se soltassem a perna e realmente estivesse sangrando, o SAMU chegaria a tempo. E, naquele estado, discutir com uma turba cheia de testosterona não era uma atitude das mais inteligentes.
Dez homens se juntaram na traseira e levantaram um pouco o ônibus; Bruno puxou sua perna, aliviado, e eu o fiz deixá-la em cima da moto, ao lado do ônibus, mexendo o mínimo possível. E, obviamente, fui cuidadosamente olhar para ver se não havia sangramento.
– NÃO PODE MEXER! – gritaram todos. Agora eles falam isso?
Felizmente não havia sangramento; apenas a canela estava macerada, mas nada além disso.
Este foi o clímax; no primeiro caso, os bombeiros chegaram, e eu fui relatar o caso.
– Acidente moto contra carro, paciente estável, falando, respirando bem…
Lançaram-me um olhar de “Cai fora, lixo” e prosseguiram, inexoráveis. Depois disso, fui embora – eles que fizessem o que bem entendessem. Minha parte estava feita.
No segundo caso, o SAMU chegou e, conhecendo como seria, nem tentei explicar o que havia acontecido; só mencionei que haviam acabado de tirar a perna dele de sob o ônibus. Ajudei a colocarem-no na maca e a carregar suas coisas dentro da ambulância; depois, entrei no carro e fui embora. Meu trabalho também já estava feito.
Nada de clímax emocionante; nada de soluções de McGyver. Mas é isso o que podemos fazer – fiquei feliz em saber que, se ele realmente estivesse sangrando, teria contido a turba por tempo o suficiente para que o SAMU chegasse. E fiquei feliz de ter a cabeça fria necessária para agir no momento – porque isso é o mínimo que nós, como profissionais de saúde, temos de fazer.
Nota do autor, setembro de 2021: depois destas experiências com acidentes de trânsito, e depois de já ter parado no meio da marginal e corrido o risco de morrer atropelado para ver um motoqueiro que já tinha umas 30 pessoas em volta, eu descobri que a melhor coisa é não me meter. Não quer dizer que eu nunca paro; não, não. Mas, quando você ganha experiência, você é capaz de ver o que ocorreu e se você pode ajudar apenas de passar perto. Por exemplo: uma vez, eu estava dirigindo na Marginal, e um caminhão saiu do nada da esquerda e bateu no guardrail na esquerda, em uma baia. Imediatamente parei à frente dele para ajudar; o motorista estava convulsionando em sua cabine, e eu tive de deitá-lo e fazer massagem cardíaca por vinte minutos até o SAMU chegar. O SAMU assumiu depois e acho que tentaram por mais uns 40 minutos reanimá-lo, mas, até onde sei, sem sucesso. Esta foi uma vez em que, definitivamente, eu tinha de parar para ajudar. Mas, quanto aos outros casos de motoqueiros caídos, evidentemente bem e mexendo no celular? Parei de fazer isso, especialmente depois da horda de motoqueiros com quem discuti na faculdade (e especialmente porque, se eu fizer isso toda vez, nunca vou sair do lugar, porque moro na boca da Raposo Tavares, tem acidente todo dia o tempo todo!).
Por fim, só para dizer: eu era jovem e inocente na época (tá), e não sabia que a gente realmente poderia ter levando o ônibus. Não tinha nenhuma artéria grande o suficiente no tornozelo para aquele homem morrer exsanguinado e, mesmo que tivessem amputado seu pé, não era nada que um torniquete não resolvesse. Hoje em dia, teria agido de outra forma. Enfim.
Ah, sim, e último comentário: das poucas vezes em que interagi com os bombeiros fora do ambiente hospitalar, não fui bem tratado… Outro dia fui tentar ajudar uma moça que passou mal no shopping, mas já tinham os responsáveis do shopping, que estavam providenciando uma cadeira de rodas, e tudo o que eles queriam era que eu sumisse o mais rápido possível, para evitar furdúncio.
Resumindo: a vida real não é nem um pouco parecida com o que aparece nos filmes norte-americanos.
¹ (Nota de 2021) Depois eu descobri que eles ficam no conforto médico… Coisa que eu nunca cheguei a ver!
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais