Agradar os pacientes?
Ficando em um hospital como eu tenho ficado ultimamente, você geralmente encontra uma série de dificuldades, especialmente quando você ainda está na época de treinamento, por assim dizer. Um dos exemplos é o fato de ser gentil com o paciente.
Inicialmente, quando você vê os médicos no politrauma ou nos próprios consultórios falando extremamente alto com um paciente, você acha que é a maior falta de educação ou negligência por parte do doutor; o mais chocante, entretanto, é que não só não é, como é o certo. Obviamente, não em volumes excruciantes – e não se desnecessário –, mas há certas coisas que você deve falar alto para se fazer entender, especialmente porque, às vezes, os pacientes vêm tão confusos e tão perdidos em si próprios que apenas uma voz alta pode se fazer entender. Um exemplo é o paciente que vem na emergência; se não se fala alto com ele, é improvável que ele responda. A postura impositiva, por mais estranho que seja, acaba se tornando a mais correta.
Um exemplo disso é quando fui fazer um exame neurológico em dois pacientes para um trabalho. Um deles estava com Glasgow 12 – ou seja, movia-se bem, abria os olhos espontaneamente, porém era praticamente impossível de se entender o que ele dizia, senão por disartria, por pura confusão; eu tinha de preencher um questionário, mas de todas as perguntas que eu fazia, toda a resposta ininteligível que eu conseguia era “Tira a roupa” (o paciente se mostrava muito preocupado com as roupas dele). Mesmo praticamente gritando para que o paciente me ouvisse, ele não prestava muita atenção.
Já o outro foi um caso interessante; Glasgow 15 – ou seja, normal como eu e você –, tinha hemiparesia esquerda (paralisia do lado esquerdo do corpo), poupando a face, porém principalmente afetando o membro superior esquerdo. Ambas as pernas se mostravam com pouca força, a esquerda com praticamente nenhuma, reativas, contudo, à dor – e a cócegas, pois quando estimulei as plantas dos pés, o paciente removeu ambos (o esquerdo com um pouco de dificuldade). Mais uma vez tentando ser impositivo, fiz o exame de campimetria (para se ver a angulação do campo de visão), mandando que ele olhasse fixamente para o meu olho enquanto eu movia a minha mão; quando mostrei dois dedos, ele afirmou que havia dois; quando mostrei um, ele afirmou que havia dois; ao mostrar três, ele reiterou dois; e aos quatro, reafirmou os dois. Ou seja, até que ponto o paciente estava dizendo a verdade?
Outro detalhe é a própria delicadeza quando se vai limpar um ferimento; quando fui dar meu primeiro ponto, eu delicadamente comecei a limpar o corte, quando o residente que me instruía pegou minha mão e disse: “Você quer limpar ou pintar isso?”, e fez uma força aparentemente exagerada com a gaze. Sem isso, porém, o ferimento nunca seria limpo.
Mas há uma coisa que se torna muito difícil, particularmente em hospitais públicos, onde a demanda é enorme e a oferta é minúscula; agradar os pacientes. Não é raro de se ver pacientes que chegam para a clínica cirúrgica e têm de ficar horas esperando para serem atendidos. O que se pode fazer neste caso? Como se pode agradar um paciente?
Os médicos estão, em geral, demasiadamente ocupados para se dar ao trabalho de ficar respondendo todas as perguntas ou dirigindo atenção aos 5 outros acompanhantes que vêm com cada ferido, abarrotados de trabalho como geralmente estão. Por isso mesmo, nós, calouros, que geralmente não temos nada para fazer – não dão nada complicado para nós, obviamente – tentamos ao máximo ajudar os pacientes.
Eles chegam extremamente inseguros, carentes, não sabem o que está acontecendo, o que vai acontecer, quanto tempo vão demorar, se tudo vai dar certo ou não, e, por isso mesmo, se prendem à única esfera de conhecimento que têm: eles mesmos e o pequeno globo em seu redor, dentro deste a cama e o “postezinho” com o soro.
Quantas não foram as vezes que me pararam no corredor, avisando que o soro havia acabado? E quantas não foram as vezes que eu diligentemente falei que era só deixar assim, que se fosse para trocar, a enfermagem o faria, e que não, não podiam tirar, porque poderiam ainda usar a veia para dar mais remédio?
Eles ficam satisfeitos com isso, do mesmo modo que quando olhamos para as suas radiografias e dizemos que não há nada, mas que um ortopedista ainda vai checar. Isso os deixa mais calmos, mais inteirados do que está acontecendo, e é algo deveras importante para se manter um bom ambiente no hospital.
Muitas vezes já me perguntaram por um neuro, e eu prometi que ia procurar, e muitas vezes já me perguntaram sobre como estava o paciente, se já havia subido, etc e tal. Para se ser médico, são necessárias habilidades diplomáticas.
Outro dia estava eu a fechar um ferimento de um paciente, no couro cabeludo, e foi realmente difícil, eu brigando com a pouca luz e as quinhentas aparelhagens ao meu redor para conseguir acessar o campo; uma borda do ferimento ficou um pouco mais acima da outra, o que deixou a estética muito feia – eu tive tanta vergonha da minha sutura que corri para fazer o curativo. O lado bom é que ia ser encoberto pelo cabelo futuramente.
Mas, até que ponto isso pode incomodar? Poderia me incomodar por desagradar o paciente? Ou então meramente porque ficou uma sutura ruim e, deste modo, mostrava a minha inabilidade? No momento em que desgostei do que havia feito, estava eu insatisfeito comigo mesmo por mim ou pelo paciente?
Outros dois pontos que fui dar foram na perna de uma mulher, e a pior parte, pelo menos para mim, é dar a anestesia; a moça grunhia vez por outra de dor, conforme eu a aplicava e, pior ainda, enquanto eu dava o ponto. A anestesia não havia entrado direito?
Nestes momentos, você se sente mal; tanto por sua incompetência como pelo fato de que você quer agradar o paciente, mas não consegue – quer impedi-lo de sentir dor (afinal, é por isso que ele veio para o hospital), mas igualmente não dá. O que fazer? E o pior; sutura é um tipo de coisa que, se você não treinar, nunca vai ficar bom, e os treinos nunca são agradáveis. E mais; não adianta você ser mestre em suturar língua de boi, se ela não pode reclamar que está doendo; como você vai saber se está fazendo certo?
O que me resta é continuar fazendo, e rezar para que tudo dê certo.
Nota do autor, setembro de 2021: os anos se passaram, e os pacientes continuam me alertando sobre o fim do soro… Mas, como descobri depois, na minha prática clínica, mesmo, gritar ou falar alto raramente é necessário, somente quando o paciente tem algum problema auditivo. Na maior parte das vezes, é plenamente possível examiná-lo sem isso. Bom, se bem que eu sou ortopedista pediátrico, eu normalmente não sou o primeiro a atender os pacientes que chegam ao politrauma, então… Rsrsrsrs

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais