Habiteto
Quarta-feira passada foi o dia de irmos para o Habiteto, uma espécie de “favela” urbanizada, construída, até onde eu entendi, pelo governo nos confins de Sorocaba, como um modo de embelezar a cidade – ou seja, pegaram todos os de menos posses, que viviam até então em seus “barracos”, construíram umas casinhas e os segregaram para sempre da sociedade, pondo-os a uns 15 quilômetros do centro, por aí (tão longe que eu me perdi no mapa, procurando deixar no mesmo campo de visão a minha casa e o lugar).
De manhã, o pessoal do meu grupo se reuniu diante de um dos prédios, perto da faculdade, e seguimos todos de carro para lá (cada um tinha o seu guia – ou então seguia o da frente – e estava abarrotado para caber todo mundo). Pouco antes das oito, aparecíamos todos no habiteto, um lugar extremamente pobre recebendo a visita de carros como Celtas, Clios, Corollas e Astras. Alguns tinham medo de perderem seus carros, mas o instrutor nos tranquilizara – era seguro.
Ainda incertos, seguimos para o posto de saúde, reformado a partir de uma padaria para poder atender à população; um salão de entrada, lotado de gente, um balcão com o recepcionista, um corredor à esquerda, levando para as salas. Entre elas, uma de inalação, uma de curativos, de vacinação, de exame geral, de ginecologia, uma cozinha e um depósito. Nada mais. O posto de saúde mais simples possível para atender as necessidades de 6000 pessoas, aproximadamente. Do lado de fora, os chamados Contêineres, espécies de treileres fixos com apenas uma cama, uma mesa, duas cadeiras e um ar-condicionado – é isso ou morte certa para todos que nele entram. A seu redor, dezenas de cadeiras para dezenas de mulheres com crianças de colo, esperando para serem atendidas pela única pediatra do local, muitas vezes sem ao menos terem tomado café da manhã, umas no sol, outras na sombra.
As crianças, doentes, muitas vezes choram, ou por causa da dor, ou por qualquer incômodo. Apesar disso, elas, em maioria mal vestidas, boa parte suja, muitos sem calça ou sem camisa, vários sem chinelos, conseguem se divertir, correndo por aí e brincando como se nada acontecesse. Uma delas até corria pela varanda com uma casca de limão velha na mão, como se fosse um brinquedo tão bom quanto um pleisteitiom dois ou coisa do tipo.
Circulamos pelo interior para descobrir que quase não há médicos – pelo que entendi, dois médicos e uma ginecologista que, quando consegue, vem de outro lugar para atender, e seis assistentes (sociais ou de enfermagem, eu ainda não descobri) – ou remédios, só o mínimo necessário. Para estomatite, quase não há; pomadas para a pele têm de ser feitas misturando o que lá se possui; para tosse, só polaramine e salbutamol; antiinflamatórios, em falta. A própria receita, quando indica o remédio – porque muitos de lá não têm dinheiro para isso – mostra direto o nome do genérico. O mais barato, mais simples e mais geral possível.
Você vê um negócio desses na televisão, não acredita que existe até estar lá, de pé, olhando algo que pode muito bem ter saído de um outro conto meu ou de algum lugar perdido na África – Kinshasa, como no I.AR¹.
Depois do posto de saúde, seguimos pelo habiteto em si, com ruas de terra e casas pobres por todos os lados. Um campo de futebol enorme garante a diversão da garotada – como se uma bola de meia, quando têm, já não fosse o suficiente para elas. É impressionante como, apesar da falta de praticamente tudo, elas conseguem viver felizes. É o caso de se parar para pensar se realmente necessitamos de tudo que temos para sermos felizes, ou se somente aquilo – casa, comida (quando tem) e uma bola de meia – é o suficiente.
O lugar é de fato bastante necessitado, mas não chega ao ponto de uma favela do rio. Pelo menos, não do jeito que as vemos pela televisão.
Conforme andamos, olhares curiosos encaram os “doutores”; um grupo de crianças vem todo orgulhoso, mostrar um ferimento no pé, como se assim (e somente assim) fosse digno de ver um médico – no caso, praticamente um Deus. Quando mandamos lavar o ferimento e pôr um bandeide (se é que eles têm; eu fiquei um bom tempo relutando em falar, para não ouvir de volta um “Que que é isso?”), eles o fazem sem pestanejar, imensamente felizes. Haviam recebido a atenção que queriam, foram dignos de ver o “Grande Oráculo”, receber seus conselhos, e agora iriam segui-los, sem dúvida alguma.
Na pastoral, crianças têm aulas ou se divertem, assistindo a clipes musicais de Rip-Rópi, Fânqui e répi, aparentemente uma linguagem universal – a música, e apenas ela, é capaz de juntar todos, pobres e ricos, alfabetizados ou não, e tocá-los – e dançando. Em um canto, três garotos raspam os cabelos para evitar piolhos, e ficam doidos para conversar conosco, como só crianças conseguem fazer. Um até mesmo falou que o irmão iria ter o meu nome!
O tempo todo perguntam se viríamos no dia seguinte – a resposta de que só na semana seguinte é triste, obviamente, mas tem em seu fundo a esperança de que sim, nós vamos voltar, eles vão nos ver mais uma vez, não vão ser abandonados, pelo menos não mais do que já são.
Em geral, é isso que se percebe, quando se caminha por lá. A carência de comida, de conforto, de roupas boas, de dinheiro, tecnologia e conhecimento pode ser posta de lado para que sejam felizes. Porque, naquele lugar, para serem felizes, eles precisam satisfazer apenas uma única carência: a de receber atenção e carinho. Quando o fazemos, é como se o seu dia inteiro se iluminasse, e eles pudessem continuar vivendo…
Nota do autor, agosto de 2021: o Habiteto foi minha primeira vivência com uma comunidade, como médico. Era, de fato, um lugar bem organizado (não sei como está hoje, não piso lá há 14 anos), mas, em comparação com os lugares onde trabalhei depois (com pinguelas, esgoto a céu aberto e barracos de verdade), era realmente ótimo. Após me formar, trabalhei dois anos em uma comunidade com infraestrutura muito mais precária, mas me lembro de ter a mesma sensação quando fazia as visitas domiciliares: pessoas nas ruas vindo conversar, tirar dúvidas e tudo mais. No entanto, minha visão da época da universidade talvez fosse muito romanceada: apesar de, de fato, as crianças de comunidades se satisfazerem com menos do que as crianças de outros locais, satisfazer-se com pouco (como uma caixa de papelão) é uma característica comum às crianças, que eu não conhecia na época. Pelo que vi depois, felicidade não é o padrão nas comunidades carentes; na verdade, eles têm pequenos lampejos de felicidade, em meio a um mundo de dificuldades. Devo só ficar feliz que, ao menos, as crianças no Habiteto, naquela época, ainda conseguiam ser crianças.
¹ (Nota de 2021) E.R., Plantão Médico, a série médica famosa que estava em alta antes de Grey’s Anatomy.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais