Iniciações Científicas!!!
– A gente precisa fazer um trabalho sobre a membrana basal agora!
Foi assim que tudo começou. O meu amigo Pânico (porque ele tem síndrome do pânico), no meio do ano passado, virou para mim, desesperado, falando que tinha porque tinha de fazer o maldito trabalho.
– Mas o que sobre a membrana basal?
– A influência da membrana basal no infarto – disse, todo orgulhoso. – Nós fazemos lâminas de corações infartados e analisamos no microscópio eletrônico da Unicamp ou USP.
– Ah, sim. Você quer pegar uma amostra do coração 5 segundos antes de ter o ataque e outra enquanto tem o ataque, cortar ela em fatias milimétricas, levar para a Unicamp, examinar no microscópio eletrônico que sabe-se lá por que eles vão nos deixar usar… Lógico. Dá pra fazer todo dia.
– Mas a Suzana consegue usar o microscópio…
– A Suzana! Não a gente! E como que você vai tirar amostra no momento do ataque? Pelamordedeus, Pânico! Não tem como! Por que você não vê a influência da membrana basal na glomerulonefrite?
– Boa!
– Aí você pega a amostra bem na hora que o glomérulo tá entupindo! Por favor, né, Pânico? De onde você acha que você vai conseguir permissão pra fazer a biópsia? Aliás, quem vai fazer a biópsia?
– A gente!
– AIMEUDEUS!
Rimos da cara dele por um longo tempo depois disso.
Um mês depois, mais ou menos, resolvemos que queríamos fazer um trabalho na área de neurologia, mais especificamente de AVC. Estávamos eu e o Pânico, apenas, no começo de uma aula de anatomia. Meia hora depois, já éramos cinco no grupo; eu, ele, Froid, Fraldinha e Pinky.
– Cinco pessoas é gente demais, Pânico!
– É melhor pra dividir o trabalho!
– Não, é gente demais!
Chega um momento na sua vida acadêmica em que você entra em desespero porque tem de sair faculdade tendo feito pelo menos um trabalho científico. No nosso caso, não foi exatamente esse desespero (muito embora o do Pânico talvez tenha sido), mas que nós repentinamente ficamos desesperados para fazer o trabalho, ficamos.
De certo ponto de vista, uma vasta quantidade de trabalhos científicos vai contar pontos somente se você tentar seguir uma carreira acadêmica. De outro, fica bonito no seu currículo, além de, muito provavelmente, contar pelo menos alguma coisa na entrevista da residência, nem que seja um positivo…
Procuramos o professor de neurologia e começamos a fazer o trabalho antes mesmo de sequer iniciar a pesquisa! Não tínhamos projeto, não tínhamos aprovação do comitê de ética, não tinha nada – mas estávamos todos no hospital, examinando pacientes com sequelas de derrames. O professor dizia que não era realmente necessária a aprovação do comitê de ética para aquele tipo de trabalho, que não deveríamos nos preocupar¹.
Enfim, tínhamos de aplicar uma escala que desse a gravidade das sequelas do AVC. Era bastante simples, baseada no exame neurológico, que estávamos vendo na faculdade, e que justamente o professor de neurologia estava explicando. Mas, quem disse que, na hora do vamos ver, a coisa funcionava? Que nada! Havia certos exames que não conseguíamos fazer, havia certos pacientes que não conseguíamos entrevistar, nossos pontos de vista eram discrepantes, não conseguíamos examinar pacientes com nível de consciência rebaixado e nem se fale dos afásicos.
Ou seja, foi tudo um completo caos.
Não bastasse isso, havíamos falado com um neurocirurgião do hospital e queríamos fazer outros dois trabalhos – um deles sobre a gravidade dos pacientes com derrame que chegavam no PS e outro sobre politraumatizados e ingestão de álcool.
No entanto, o segundo trabalho nós começamos redondamente errado – achamos que era para ver o tipo de acidente e a gravidade deste pelo qual os alcoolizados haviam passado, e não simplesmente contar quantos estavam alcoolizados e quantos não.
Quanto ao do AVC no PS, nós nunca encontramos ninguém com derrame quando estávamos lá. Aparentemente, os avecezados apareciam nos horários em que não estávamos e iam embora antes que nós chegássemos. Simplesmente inacreditável.
Igualmente, foram dois trabalhos que resolvemos começar sem traçar o projeto nem passar pelo comitê de ética nem nada.
Chegou o final do ano, descobrimos que o trabalho dos politraumatizados estava totalmente errado. Sem mencionar que vinham as provas de final de ano, então ninguém tinha tempo de ir ao hospital. Conclusão: resolvemos deixar tudo para o ano seguinte.
Já no ano seguinte, resolvemos começar do zero; os dois trabalhos do PS seriam deixados de lado e daríamos ênfase ao trabalho das sequelas de AVC. No entanto, devido à dificuldade, chegamos a um ponto no qual nos perguntávamos: o que raios estávamos fazendo?
Tentamos, então, montar o projeto para pedir a permissão ao comitê de ética e de lá enviar para a CNPQ, em março. Só que, para variar, tínhamos 20 dias para isso – e quem disse que deu? Não conseguíamos montar o projeto sem a ajuda do professor, não tínhamos a menor ideia do que fazer, aliás, não sabíamos nem qual era o nosso projeto – afinal de contas, íamos fazer o que com os dados sobre sequelas de AVC? Não tínhamos nada confiável, uma vez que não podíamos ir todos os dias, o dia todo, e não adiantava nada examinar pacientes em dias de internação diferentes, dado que geralmente eles melhoravam estrondosamente em questão de horas após o quadro inicial.
O resultado disso foi que, passado o prazo de entrega, ninguém mais queria fazer o trabalho. Aliás, passadas três semanas do prazo de entrega, ainda estávamos em dúvida se o professor realmente estava interessado em nós, se ao menos tinha ideia do que estávamos fazendo, se era aquilo que queríamos e como dividir um grupo monstruoso em dois pequenos sem magoar ninguém. Continuamos na indefinição deste trabalho até hoje.
Neste meio tempo, descobrimos que tínhamos de fazer um trabalho para o Programa de Atenção à Saúde. Eu podia escolher entre a super criativa opção de perfil de pacientes com hipertensão e diabetes ou sentar e pensar em algo melhor. Foi quando surgiu o dado de que, na UBS da Vila Barão, sai mais diazepam que captopril. Por quê?
A partir daí, planejei um trabalho. Falei com a professora, que me falou para consultar um psiquiatra e montar um grupo. Montei um grupo com uma amiga minha – grupo grande, nunca mais –, perguntei por um professor orientador que vejo praticamente toda a semana – professor ausente, nunca mais –, o qual me mandou ler sobre diazepam e pensar em um trabalho, sendo que a ideia inicial era pesquisar a discrepância entre por que os médicos receitam e por que os pacientes tomam.
Chegou a minha semana de prova, esta, por sinal, e eu não tinha nada para fazer (acho que sou o único que não estuda na semana de prova – notem que o sistema de provas na minha faculdade é outro; abrimos um caso na segunda e não temos nada para fazer além de estudar até sexta, quando fechamos o caso), resolvi levantar a bibliografia de benzodiazepínicos. De terça para quarta, achei 14 fontes. Tive ideias para o trabalho e fui falar com o professor. De quarta para quinta, montei o projeto e fui pentelhar a mulher do comitê de ética sobre o que faltava – muito pouca coisa para poder enviar, e eu tinha até a quinta seguinte para que conseguisse que ele fosse aprovado na reunião de maio. A partir daí, desembestei. Hoje é sexta-feira, e falta apenas a parte do professor para poder enviar o trabalho.
Será que desta vez dará certo? Não sei. Mas é tudo uma questão de começar do jeito certo. E desta vez estamos começando.
Nota do autor, setembro de 2021: fazer trabalhos científicos sempre foi uma paixão minha e, atualmente, trabalho como Fellow de pesquisa do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do HCFMUSP. Descobri que este pezinho na ciência é interessante, especialmente dentre os ortopedistas, que, no geral, não gostam de fazer pesquisa. Isso, aliado à minha capacidade de escrever, vem me ajudando muito.
Mas, voltando, durante minha faculdade fiz muitos trabalhos com vários professores bastante ausentes, o que certamente atrapalhou – se tivesse orientadores sérios, teria ido bem mais longe com alguns projetos, como, por exemplo, o que envolveu dissecar artérias dos corações, rins e cérebros de 50 cadáveres.
De qualquer forma, este meu primeiro trabalho de benzodiazepínicos rendeu 2 artigos, e um deles é meu estudo mais citado até hoje. É curioso, pois realmente temos poucas referências brasileiras sobre este tipo de coisa, então, até que eu acertei.
Ah, #ficadica para quem estiver na faculdade: evite grupos de trabalho muito grandes, eles dão mais trabalho do que fazem trabalho.
¹ (Nota de 2021) Precisa, sim.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais