Pontos Chatos
– Eu preciso da tua ajuda.
– Aimeudeusdocéu! Quiquiaconteceu?
– Eu caí da bicicleta e preciso ir pro hospital… Dá pra você me ajudar?
Foi mais ou menos assim que aconteceu; eu tinha ido com o chato para o SESI, para nadar, mas, para variar só um pouco, resolveu chover no fim da tarde e a piscina foi, de novo, interditada. Com isso, ficamos nós dois lá, de sunga, olhando pro nada. Como tínhamos ido de bicicleta, a única escolha era esperar até a chuva passar ou então se molhar mesmo.
Eu, conformado com a situação e mais do que acostumado a pegar chuva no meio do caminho, porque Sorocaba tem mania de fazer chover toda vez que eu vou sair e especialmente se eu lavei roupa neste dia, montei na bicicleta e fui embora¹. O chato, por sua vez, obviamente por ser um chato, ficou no SESI, esperando o aguaceiro passar.
Com isso, eu desci a Juscelino no maior pau e, quando fui fazer a curva, voei no chão, raspando as costas, fazendo um rasgo no braço, batendo a perna e, claro, como não podia faltar, a cabeça². Não achei que fosse realmente grave (me resignei até a subir os dois andares com a magrela na mão) até olhar para o espelho e ver todo o lado direito do meu rosto manchado de sangue e o braço direito sangrando. Ao que eu não tive escolha.
Como a queda d’água celeste havia cessado, o meu companheiro fugitivo pôde montar o seu veículo de duas rodas (na verdade, a dele tinha ainda duas pequeninas auxiliares) e vir a meu socorro em questão de minutos (é só descida do SESI até a minha casa).
– Dá pra me explicar como você conseguiu isso?
– Tava chovendo, eu já disse! Eu fiz a curva muito rápido, só isso!
– Tá bom, mas que tipo de pessoa…
– Será que você pode não encher o saco e me ajudar?
– Cerrrrto.
– Ei, moço, eu caí de bicicleta e machuquei a cabeça, pra onde eu vou? – perguntei ao guarda da entrada do Hospital Regional.
Ele me indicou uma porta lateral, o Pronto Socorro, e para lá caminhamos nós dois, eu lutando para não chorar (sim, tava doendo pra caramba) e ele lutando para não ser chato. O que é difícil.
– Como que é isso? Você falou que machucou a cabeça! Ele deveria ter chamado uma maca ou coisa assim! Olha só, você tá todo sangrando e ele nem se ofereceu pra ajudar… – disse ele, e isso porque estava tentando não ser tão chato.
Por fim, entramos no PS, onde tivemos de esperar até que a recepcionista acabasse a outra ficha e resolvesse me atender (não, ela também não notou que a minha cabeça estava próxima de uma cachoeira rubra).
– Nome?
– David G. Nor…
– Escutaqui, minha senhora, o meu amigo tá sangrando! Tá sangrando! Não dá pra ver não? Será que não dá pra cortar isso aí e mandar ele logo lá pra dentro? Ele pode morrer em questão de segundos!
– Ignora ele – falei, simplesmente.
– Endereço? – prosseguiu ela, literalmente ignorando.
– Rua…
– Quer dizer, se chega uma pessoa com hemorragia externa aqui, o que vocês fazem, a ficha primeiro para depois tratar? E se chega um cara com parada respiratória? Ou com um garrote no pescoço e…
– O que aconteceu?
– Caí de bicicleta (ah, quantas vezes eu não teria de dizer isso nos próximos dias!) e bati a cabeça e os braços… E as costas.
– Olha só a tua camisa, tá toda manchada de sangue nas costas! Quer dizer, será que eles não percebem…
– Pega este papel aqui… E segue por aquela porta ali.
Eu fiz como ela mandou, o chato logo atrás reclamando de tudo e todos.
Cruzando a porta, um guarda pegou o papel e me mandou por um corredor até uma sala de nome indeterminado. No caminho, como não podia deixar de ser, passamos por um grupo de residentes do sexto ano, ávidos, obviamente, por zuar calouros. Um deles me viu, sem dúvida ligando dois mais dois ao encontrar dois carecas andando desamparados lado a lado por lá, e me mandou para o atendimento cirúrgico, falando que logo viria me atender… O chato engoliu em seco, com medo, pra variar.
– Mas isso é um absurdo! – explodiu, finalmente. – Eles não podem dar trote no hospital! Quer dizer, é completamente antiético! É absurdo! Você tá aqui como um paciente, não como um calouro!
– Isso que é levar PBL³ ao extremo… Vir ver como é o atendimento do Regional por mim mesmo…
– É amor à profissão!… E olha a demora! Meudeusdocéu! Como que podem fazer isso? Eu quero dizer, você podia cair desmaiado aqui a qualquer momento!
– Quer parar de ser trágico? Daqui a pouco eu vou realmente cair desmaiado! E mais, quer lugar melhor do que um hospital pra cair desmaiado?
– Mas que é um absurdo…
Pouco tempo depois um médico apareceu e me deixou esperando por mais um cinco minutos, assinando uns papéis, até poder descobrir o que estava acontecendo. O fato de eu estar sem camiseta e o chato estar limpando o meu braço sangrento com ela não pareceu de todo assustá-lo…
Finalmente ele se virou para mim, olhou a ficha e perguntou o que aconteceu. Mais uma vez, eu contei a história, e em questão de segundos ele chamou uma veterana (tem um calouro aqui!) para auxiliar. Depois de uma observação rápida, anunciou que iria limpar e dar um ponto na cabeça.
– E o braço? – perguntei. Se fosse por ele, ia gangrenar que não faria diferença.
– Mas que absurdo! Nem fez um exame completo! O braço inteiro poderia… – murmurava o meu companheiro de desventuras.
Ele olhou e esbravejou contra a ficha incompleta. Depois, chegou à conclusão de que iria usar o mesmo procedimento que usaria na cabeça e os relegou à veterana, porque tinha mais fichas para preencher.
Depois do que pareceram vinte anos, os meus pais me ligando em crise, claro, ele foi fazer a anamnese, com direito a percussão e tudo mais, eu tentando descobrir o que ele estava fazendo, para aprender, e o chato reclamando sem nem mexer a boca, com medo de ser ouvido.
Ao final disso, foi a hora de começar a sutura.
– Com emoção ou sem emoção?
– Ahm?
– Com anestesia ou não?
– Não sei… – respondi, simplesmente. – Nunca me deram ponto!
Ele riu e falou para me darem uma anestesia local.
– Fala pra ele que é só uma picadinha – orientou para a veterana. – Enfia bem fundo… Não, vai direto, não precisa parar… Não precisa ter dó…
Neste ínterim, a agulha ia e voltava no meu couro cabeludo e eu ficava o tempo todo pensando se eles não tinham deixado uma bolha de ar dentro dela pra eu morrer que nem aquele cara daquele filme que eu não sei o nome.
Após muito esforço, ela deu a anestesia – “Como que pode demorar tanto pra dar a anestesia? E colocar uma graduanda que nem sabe o que tá fazendo? Olhaisso, ela tá sendo instruída enquanto faz! Como que pode? Isso é um…” – e começou a sutura, o que foi uma sensação realmente estranha, eu deitado de lado, sem saber o que estava acontecendo, a cabeça coberta com um pano, e o chato tentando se entender ao mesmo tempo com o Nextel e a minha mãe (O que que aconteceu com ele? Como que ele caiu? Onde ele tá? Mas como que você deixou isso acontecer? Que que você tem na cabeça pra andar na chuva? Mas por que você não tava junto dele? Como que ele caiu? Onde ele tá? O pessoal no hospital tá cuidando direito dele? Mas como que você deixou isso acontecer? Que que você tem na cabeça pra andar na chuva? Mas…).
Não preciso nem dizer como foi a sutura do braço, a qual envolveu mais anestesia incerta e uma agulha cega…
No final, fizeram um curativo gigantesco na minha cabeça e no meu braço e, obviamente, para não perder o papel de veterano, enfaixaram excessivamente os dois, me deixando parecido com uma múmia. Quando vi meu reflexo, não consegui conter a risada.
– Precisa mesmo disso?
– Claro! – respondeu outro do sexto ano. – Pode sair matéria cinzenta do seu cérebro sem isso! Você tem que usar!
– Mas que absurdo! Dando trote com uma coisa tão séria! No hospital! Quero dizer, o quão antiético…
Quando perguntei para a sextanista, ela disse que tudo bem, calouro, pode tirar, mas só depois que sair do hospital.
Conforme caminhávamos para fora, o chato reclamava do atendimento do hospital, como de costume. E eu tentava, ao mesmo tempo, me entender com a minha mãe no Nextel e tirar uma bandagem da cabeça. O pior de tudo foi jantar no shopping com meio mundo olhando para o alien de esparadrapo que repousava no meu crânio protocabeludo…
Nota do Autor, Agosto de 2021: isso realmente aconteceu, mas sem o Chato. É curioso como a visão do Chato provavelmente é compatível com a visão que todos têm do serviço de saúde: meu caso é, definitivamente, o mais importante; como estão demorando tanto? Esta era a visão que eu tinha na época, até compreender que o hospital passava por um sistema de triagem (na época, na recepção, mas, normalmente, ele é feito por profissionais de saúde na abertura da ficha) e, principalmente, que os casos mais graves, que chegavam aos montes, eram trazidos por ambulância na porta de emergência. Por fim, estava em um hospital universitário, então era totalmente esperado que os alunos fossem treinados durante os procedimentos. Eu passei por isso, sendo orientado, e atualmente oriento dentro do ambiente acadêmico.
¹ (Nota de 2021) Sorocaba vive dentro de uma redoma onde raramente chove e, quando chove, levanta vapor do chão, tornando tudo mais quente do que estava antes. Contudo, ela tinha um hábito de, nas raras ocasiões em que chovia, me pegar no meio da rua (porque eu nunca saía com guarda-chuva). Vira e mexe eu chegava encharcado em casa.
² (Nota de 2021) Faltou dizer que logo depois passou um ônibus que teria me atropelado se eu não tivesse me levantado segundos antes.
³ (Nota de 2021) PBL é o método construtivista de ensino da PUC, baseado em problemas.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais