A Ex
Um dia desses, meu marido chegou do trabalho meio estranho. Eu até tentei perguntar o que tinha acontecido, mas ele disse que não era nada, que só estava pensando em alguma coisa do trabalho. Deixei passar; até o fim da noite, provavelmente ele iria me contar, porque você sabe como que é, homem simplesmente não consegue guardar segredo da mulher por muito tempo. Mas a noite foi passando, a hora de deitar foi chegando, e nada de ele me contar o que tinha acontecido. Quando vi que não ia ter jeito, comecei a insistir.
– Vai, conta pra mim o que aconteceu!
– Não é nada, amor.
– É sim, eu posso ver pela sua cara! Você não tá normal.
– Não foi nada.
Usei a primeira tática.
– Foi alguma coisa com o seu chefe?
– Não.
– Ou com algum cliente?
– Eu já disse que não é nada!
Fui para a segunda tática.
– Por que você não quer me contar? Você não confia em mim?
– Eu não tenho o que contar, Talita! Pelo amor de Deus!
Por fim, apelei para a terceira.
– Então você tá me escondendo alguma coisa, é isso? Menos de um ano de casados e você já está me escondendo coisas? Tô até vendo, vamos chegar nos 20 anos de casado, e eu vou descobrir que você tem uma família no Cazaquistão!
– Ai, meu Deus do céu, Talita! Olha o absurdo que você está me falando!
– Tenho certeza que você está escondendo alguma coisa. Só pode ser isso. Por que outra razão você chegar em casa todo macambúzio assim e não querer falar? Você fica assim quando tá escondendo alguma coisa.
– Ai, Talita, tá bom, tá bom!
Sempre funciona a terceira tática. E ainda bem, porque eu não queria ter de usar a quarta. Ah, qual é a quarta? Greve. Se é que vocês me entendem…
– Mas eu não queria contar, porque eu sei que você vai ficar brava.
– Brava por quê? Você fez alguma coisa errada?
– Não.
– Então, por que eu iria ficar brava?
– É que… Você não acredita quem eu encontrei num restaurante hoje, na hora do almoço.
– Quem?
– Chuta.
Falei uma pessoa aleatória.
– Sua tia.
– Não.
Falei outra.
– Seu primo?
– Não. Pelo jeito, você nunca vai acertar.
Aí, eu decidi falar o que eu estava pensando logo de cara. Só não falei, para ele não ficar chateado, porque, sabe como é, se a gente parece muito mais esperta do que eles, não sei, parece que fere o orgulho, e aí é uma chatice pra deixar ele animado de novo.
– Sua ex.
Ele arregalou os olhos assim, ó.
– Como você sabe?
Só dei um sorrisinho, para não esnobar demais. Ora, por que mais ele ficaria assim, sem querer falar quem ele encontrou? Só podia ser ex.
– E você encontrou ela sem querer no restaurante?
– É! Você acredita? – ele me respondeu, empolgado demais para o meu gosto. – Fazia, sei lá, uns 4, 5 anos que eu não via ela.
– Quem é? Aquela lá… A… Verônica?
Falei um nome qualquer, que, até onde sei, ele nunca namorou, só para ele achar que eu não dou a menor importância para isso, mas a verdade é que eu não só tenho uma lista com o nome de todas as suas antigas namoradas, como ainda monitoro com um perfil falso o Facebook delas, ocasionalmente, para ter certeza que não andam de conversinha com ele.
– Não, a Nathália.
Ah, a mais recente, com quem ele tinha terminado pouco antes de ficar comigo.
– Qual foi essa?
– Quem eu tava namorando antes de você!
– Ah, tá… E daí?
– Ah, nada, perguntei como tava tudo, falei de você, que tinha casado e tal…
Isso é tática. Dizer que falou de mim… Estava escondendo algo.
– E ela?
– Tá bem mais gorda, você precisa ver…
Ele estava ficando esperto! Aprendeu o truque de dizer que a ex estava mais gorda! Não estava gostando do rumo que as coisas estavam tomando… Ele estava ficando esperto demais…
– Diz que tá com um carinha lá, amasiados, casados, não sei que rolo que é. Também não fiquei perguntando.
Sei. Não ficou perguntando…
– Sei… E não rolou mais nada? – indaguei.
– Não, ela tava com o pessoal da firma dela, e eu fiquei na minha mesa…
– Então você que foi falar com ela?
Eu acho que ele percebeu a tempo que estava indo para um caminho perigoso. Estava se entregando!
– É, eu tava procurando lugar para sentar quando eu vi ela lá.
– E não achou melhor ficar quietinho no seu lugar, não?
– Ah, vá, Talita! Já somos os dois adultos o suficiente para perguntar como estamos um para o outro. Como se você nunca tivesse perguntado pros seus namorados como eles estavam quando encontrou com eles por aí.
– Não depois de casar!
Ele suspirou.
– Deixe de ser boba, vá.
E ficamos os dois lá assistindo à televisão, com o assunto encerrado, mas não acabado e nunca terminado. Fiquei matutando em minha cabeça; devia ter acontecido mais alguma coisa. Ele não estava normal. Por outro lado, se tivesse acontecido, ele iria contar que tinha encontrado com ela? Mas ele também não contou por conta própria, eu que tive de insistir muito para ele me contar. E aí… Seria que tinha rolado algo?
Na minha mente, já podia imaginar os dois em algum motel, na hora do almoço, reavivando antigas paixões…
Balancei a cabeça e falei de irmos deitar. E, depois de nos arrumarmos, deitamos, eu deitei no seu peito, ele começou a mexer no meu cabelo e me deu boa noite.
– Como assim?
Acho que gritei nessa hora.
– O que foi? – ele perguntou, dando um pulo.
– Sabia que você fez alguma coisa!
– O quê? Por quê?
– Por que você nem sequer falou de fazer nada hoje, ehm?
– Ué, amor, eu achei que você tava meio brava, então eu nem…
– Sei! Pra mim, você tá é cansado por ter ficado na hora do almoço num motel executivo com aquelazinha!
– Talita, quer parar de surtar? Pelo amor de Deus, eu já disse para você, não aconteceu nada!
– Sei… Então, por que você não quer nada hoje?
– Eu já disse, porque achei que você não queria. Mas, agora… – ele respondeu e já subiu em cima de mim e começou a me beijar. – Se você queria, por que não falou?
– Eu não queria – eu respondi, jogando ele pro lado de volta. – E pode deitar e voltar a mexer no meu cabelo, que eu quero dormir.
– Como assim…? – ele respondeu, olhando para mim com uma cara de inconformação daquelas que poucas vezes eu vi.
E, enquanto ele mexia no meu cabelo, apesar do sono que me dava, ou talvez até por causa disso, eu comecei a pensar… E se ele realmente fez alguma coisa? E se ela for melhor que eu nisso, ehm? Não, não podia! Tinha de provar para ele que eu era melhor! E mais, ainda tinha que deixar uma marca em algum lugar, para ela ver que ele tem dona!
E assim, pulei em cima dele…
Tenho certeza de que nossos vizinhos não ficaram lá muito felizes com o que fizemos…
Depois, quase dormindo, ele murmurou:
– Sabe que… Para quem não queria nada, só queria dormir… Você… Tava muito bem.
– É, eu sei – respondi, me sentindo. – Acho que foi uma das melhores, não?
– Ah, se foi… – ele respondeu, suspirando e com um sorriso bobo no rosto.
Deitei no seu peito de novo e fiquei olhando enquanto subia e descia, respirando tranquilo. É, acho que era tudo noia minha. Não devia ter feito nada, não. E, de qualquer forma, tinha uma marca minha na barriga dele, para ela ver de quem ele era.
Mas o tempo passou, e eu não conseguia dormir… Rolei para cá, rolei para lá, ainda imaginando os dois naquele motel nojento, aquela mulher cretina, que tinha coragem de roubar o meu marido…
Quando vi que ele estava dormindo, levantei e fui fuçar no seu celular. Sabia que era errado, mas tinha coisas mais importantes em jogo. Prometi a mim mesma que não faria isso de novo. Quer dizer, a não ser em ocasiões de importância nacional. Como esta.
E não, não tinha nenhuma mensagem comprometedora, nem na caixa de entrada, nem nas de enviadas. Aproveitei que o seu celular sempre tinha o Facebook ligado, mas também não encontrei nenhuma mensagem secreta. Nem nos emails. Realmente, não tinha nada. Será que era tudo da minha cabeça?
Devia ser. Já eram duas da manhã, tinha de ir dormir, ia acordar cedo no dia seguinte! Fui deitar e, um pouco mais calma por não ter encontrado nada, consegui dormir.
Mas acordei pela manhã pensando: e se ele tivesse acobertado tudo muito bem?
Ai, ai…
Nota do autor, setembro de 2021: que atire a primeira pedra a mulher que nunca passou por isso! Rsrsrs
Acho que a inspiração desta crônica foi porque, quando fui dar um plantão no show do Lollapalooza em 2013, curiosamente encontrei minha ex trabalhando também em alguma barraca aleatória. Não falava com ela havia acho que sete anos, coisa assim.
Não, depois as coisas não transcorreram como descrevi na crônica, mas seria engraçado se tivesse sido!
E, caso esteja curioso, não, não aconteceu nada, apenas nos cumprimentamos e perguntamos como estava a vida.
Algum dia, escrevo uma crônica contando como foi a experiência de dar plantão no show. Não foi muito legal, não…
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais