A lava-louças
Vocês devem se lembrar daquela vez em que o Danilo chamou alguns de seus amigos em casa para assistir ao jogo do Palmeiras – em que ele perdeu de lavada, diga-se de passagem – e acabou deixando toda a louça na cozinha, né? Bom, como eu queria muito fazer valer o meu ponto, todas as outras vezes em que ele chamou os amigos em casa e fez uma bagunça na cozinha, eu fiz questão de fazê-lo lavar.
E, todas as vezes, a louça continuou engordurada e eu tive de me levantar na madrugada e ir lá lavar mais uma vez, só para fingir que estava dando certo. Bom, uma hora, cansa, né? Então, tomei uma atitude drástica: separei dois terços da louça para mim e um terço para ele.
– Como é?
– Essa sua louça nojenta. Cansei dela. Olha isso!
Os olhos dele brilharam; era a oportunidade pela qual tanto sonhara.
– Olha, mozinho, é assim que eu lavo louça. Se você não gosta, não tem muito que eu possa fazer…
– Exatamente – respondi. – Por isso, a separação de louças. Você usa essas daqui, eu uso essas daqui. Seu armário é esse, meu armário é esse. E ai de você se eu pegar você usando minhas coisas.
Tínhamos ganhado três jogos de louça de casamento e aberto apenas um; eu coloquei o mais feio e gasto para ele, claro, e abri um novo para mim. A mesma coisa a respeito de panelas e copos. Ficamos com tudo dobrado na cozinha, mas até que tinha espaço e, na verdade, o que o Danilo usava, mesmo? Alguns pratos e uma frigideira. Era a panela que ele usava para tudo: fritar ovo, bife, esquentar pão e fazer miojo. É, fazer miojo. Não me pergunte como.
A sanduicheira… Bem, eu não tinha nenhum problema em ficar sem ela. Aliás, sorte dele que eu ainda não tinha vendido pela internet.
Bem, assim resolvemos os nossos problemas por um tempo. Até que eu peguei um prato meu que estava um pouco engordurado, assim como um garfo. Estranho. Eu sempre fui impecável na limpeza!
Depois, teve outro dia em que os amigos dele vieram à tarde, enquanto eu não estava em casa, para alguma “reunião do trabalho”, e quando fui pegar um prato para me servir, o mais de cima da pilha estava com uma mancha de sujeira.
Ah-há! Isso eu tinha certeza de que eu não tinha deixado!
– Você está usando meus pratos! – acusei.
– A culpa não é minha se não tem o suficiente!
– Mas, Danilo! Você é uma pessoa e são 4 de cada tipo só para você!
– Eu sei, mas são três refeições por dia, com essa história de home office!
Eu parei; três refeições por dia… Então, ele estava acumulando louças?
Ele sentiu que tinha falado besteira.
– Não, Talita, peraí…
Saí correndo pela cozinha, abrindo armários e portas, até que encontrei, na porta mais lá em cima do armário da despensa: uma pilha de pratos sujos!
Meu olho tremeu, igual ao do esquilinho da “Era do Gelo” quando era contrariado.
– Eu não acredito nisso! Danilo! Que coisa nojenta! E não basta isso, você ainda está usando os meus pratos limpinhos!
– Eu vou lavar, eu vou lavar – ele falou. – É que não tinha mais espaço na pia e…
– Se você lava logo depois que usa, sempre sobra espaço! – gritei; estava furiosa. – Limpa essa bagunça agora! Eu não me casei com um porco!
E saí batendo pé para o quarto.
Não que eu quisesse ficar no quarto, mas eu não conseguia ficar no mesmo cômodo que aquele porcalhão.
No dia seguinte, ele saiu para alguma reunião externa (as coisas estavam híbridas, tudo muito confuso nessa pandemia) e voltou para casa com flores, como um pedido de desculpas. Eram lírios, que eu odeio, mas, tudo bem, ao menos ele tentou.
– Eu vou resolver isso das louças.
– Você vai criar vergonha na cara e começar a lavar decentemente?
– Não, melhor que isso! – falou.
E, realmente, cinco dias depois, chegou uma entrega para nós: uma máquina de lavar louça.
– Isso é ótimo! – falou ele, empolgadíssimo conforme o homem a deixava na sala. – Você sabia que é muito melhor para o meio ambiente? Economiza muita água, muita mesmo, e faz a gente ganhar muito tempo!
– Quem foi que te falou isso?
– O Lipão! Ele tem uma de dez serviços também, disse que foi a melhor coisa que ele já comprou na vida, depois do play 5.
Revirei os olhos.
– Mas, e a energia, Danilo? Não tá barata!
– Eu sei, mas vale a pena. Energia no Brasil é limpa, vem de hidroelétrica.
– Sei não…
– Vem com o paps. Compensa, sim. No mínimo, a gente não vai mais brigar pela louça suja.
Pois é. O único problema é que a máquina não se instalava sozinha.
– Tudo bem, eu consigo instalar, deixa eu ver aqui…
Ah, sim, o outro problema era que o gênio do meu marido não tinha medido a cozinha antes de comprar. Com certeza, foi por impulso, durante o trabalho, com o Lipão do lado dele. Certeza também que foi o Lipão que deu o toque das flores.
Enfim, não tínhamos onde pôr aquele trambolhão, a não ser que a gente tirasse o tanque da lavanderia.
– Bom, a gente não usa, mesmo, vai tudo para a máquina de lavar roupa…
Só que era uma terça-feira à noite, e remover o tanque iria fazer barulho demais.
– Deixa que no sábado eu tiro.
– Instala logo esse negócio, para testar! Vai que tá com defeito?
– Tá bom, tá bom…
Arrastamos a máquina até a lavandeira, e, tomando o minúsculo espaço que havia entre o tanque e a parede, instalamos a máquina, com as mangueiras esticadíssimas. Ela funcionou!
– Isso merece uma comemoração!
Tomamos uma das 12 garrafas de espumante que tinham sobrado do casamento e que nós guardamos na despensa para ocasiões especiais.
No entanto, todos os dias, quando eu acordava e ia para a cozinha fazer um café, lá estava a máquina me encarando e me encarando, ocupando um espaço que a gente não tinha.
– Danilo, quando que você vai tirar essa pia?
– Sábado eu tiro!
E fiquei em cima dele o sábado inteiro, até ele ir, resmungando:
– Tá bom, tá bom…
Ele colocou sua jardineira de mecânico (não sei por que, em algum momento de loucura, ele achou que seria uma fantasia excitante. É tão excitante quanto a falta de habilidade dele com coisas manuais. Fala sério!), sua caixa de ferramentas (que na verdade era uma caixa de plástico com duas chaves de fenda diferentes, um alicate e um martelo), óculos de proteção e foi para a pia. Eu o ajudei a puxar a máquina de lavar e fui para a sala, enquanto ele se entendia com a pia.
Cinco minutos depois, ele se sentou no sofá, ainda com aquela roupa ridícula.
– Já? – perguntei, surpresa. Talvez ele estivesse melhorando! Talvez, devesse repensar sobre aquela jardineira.
– Não consegui. Não tenho a chave.
Retiro o que disse. Jardineira ridícula.
– E você vai só sentar aí?
– Não! – ele exclamou. Tenho certeza de que ia. Por ele, a máquina ficaria assim pela eternidade. – Vou perguntar se o Lipão ou o Marcelo tem.
Pegou o celular e mandou mensagem para sabe Deus quem. Risadas vêm, risadas vão, passou meia hora, e nada.
– E aí?
– Ah, esqueci de perguntar, pera.
Eu bufei; certeza de que ele fazia isso de propósito!
– O Lipão tem! – ele respondeu e começou a gravar uma mensagem de voz. – E aí, parça? Quando cê consegue colar aqui pra gente resolvê esse caó?
Sério, por que a linguagem de mano? Eu não entendo!
– Lipão só pode vir semana que vem.
– Ele não pode te emprestar a chave?
– Não pode fazer essas coisas barulhentas de noite, você sabe.
Bufei novamente.
– Então, instala ela de novo, vai?
Foi a vez de ele bufar e instalar a máquina.
Passou uma semana e, mais uma vez, Danilo estava com a sua jardineira, óculos e a mala de ferramentas; mas, pior que isso, logo veio o Lipão, com o uniforme combinandinho. Sério, não dava para ficar mais ridículo; eu até desci para trabalhar no saguão do prédio, só para não ver o Tico e o Teco se batendo.
Meia hora depois, estavam os dois sentados no sofá, tomando cerveja e vendo algum jogo na TV.
– E aí?
– Falta uma chave de boca comprida para entrar lá – disse Danilo.
– Aquele negócio é mais apertado que bu… Quer dizer, é apertado pra caramba – disse Lipão, segurando-se bem a tempo, se não outra coisa dele é que ficaria mais apertada que o espaço do lado do tanque.
– E vocês fizeram alguma coisa?
– Perguntei para o Marcelo.
– E?
– Ele está viajando este fim de semana. Semana que vem a gente tenta.
Bufei novamente.
E, na semana seguinte, estavam lá os três patetas uniformizados. Será que eles compraram juntos, na mesma loja?
– Ok, Larry, Curly, Moe. Eu vou fazer compras, quando voltar, quero isso instalado e tudo limpo, ehm?
– Quem são esses? Moe? – perguntou Danilo.
Apenas ignorei a falta de cultura e saí.
Duas horas depois, estavam os três tomando cerveja no sofá; achando que estava resolvido, fui com as sacolas para a cozinha, para descobrir que continuava tudo exatamente igual: a máquina desinstalada e no meio da cozinha, o tanque no mesmo lugar.
– O que aconteceu? – perguntei, espumando.
– O parafuso está espanado, não tem como tirar – disse Danilo, com a maior tranquilidade do mundo.
Meus dois olhos começaram com o tique do esquilinho. Sem falar nada, eu simplesmente fui até a mala de ferramentas, peguei o martelo e…
– Ahhh!!!! – gritei, descontando toda a minha raiva, como se fosse o Thor, naquela pia.
Os três correram para a cozinha; estilhaços voavam por todos os cantos e, em dois minutos, ofegante, eu tinha derrubado a pia inteira.
– Limpa isso aí e instala a máquina – falei para o meu querido marido. – Se não a próxima é a sua cabeça!
Eles não deram um pio.
Dez minutos depois, estava tudo limpo e a máquina estava instalada no seu devido lugar; Marcelo e Lipão desapareceram num piscar de olhos, quando viram que já tinham concluído a missão. Danilo não abriu a boca para falar sobre a pia.
A máquina instalada, pude finalmente relaxar. Ia acabar aquela briga de talheres, e eu não precisaria mais gastar meia hora todo dia lavando louça! Que maravilha!
Até que…
– Danilo, quer fazer o favor de colocar a porcaria da sua louça na máquina? Eu já falei que eu não sou nem a sua mãe, nem a sua empregada!
– Peraí, querida, eu já vou!
– Pausa essa droga e vem aqui!
– Jogo online não tem pausa, amor!
– Vem logo, ou eu vou é pausar a sua cabeça! Pois é. Algumas coisas não mudam…

O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais