Enchendo o tanque
– Puxa, Talita, custa encher o tanque quando o carro entrar no reserva?
Este era Danilo entrando em casa na terça-feira à noite.
Pois é, nem um “Oi”.
– Do que está falando? – perguntei, tentando manter o ar mais inocente possível.
– Fui pegar o carro hoje de manhã, estava no reserva. Achei que tivesse acabado de entrar, mas não, mal peguei a Radial, o carro parou! Tive que ir procurar um posto de gasolina, colocar um pouco… Certeza que tomei uma multa…
– Mas, Danilo, tem um posto aqui do lado!
– Justamente!
– Justamente o quê? Era só você ter saído e enchido o tanque logo de cara!
– Era só você ter enchido o tanque quando estava chegando, ontem!
– Quando eu cheguei, não estava no reserva – respondi, ainda mais inocente.
– Não é possível, eu não andei nem dez quilômetros e acabou!
– Ninguém manda ter um carro tão gastão!
Ele saiu espumando para o quarto.
Uma semana depois, na segunda-feira, eu estava chegando em casa e o carro entrou no reserva.
Bom, tem mais uns cinco quilômetros até em casa… Ele aguenta.
E, lógico, na terça-feira…
– De novo, Talita! Sério! Pior que o carro está no meu nome, eu vou perder a carta desse jeito!
– Mas eu não falei para você que era mais seguro encher perto de casa…
– O posto não estava nem aberto! Eu saio às seis da manhã!
E lá foi ele espumando mais uma vez.
A semana passou novamente e, curiosamente, no domingo, o Danilo veio com a história de que ia sair para jogar bola com o Lipão, o amor da vida dele. Tentei fingir que não me importava, mas eu sabia que ele estava armando alguma coisa. Ele chegou umas três horas depois, suado e nojento, e eu aproveitei enquanto ele estava tomando banho para descer, pé ante pé, e dar uma checada no carro.
– Ah-há!
Estava no reserva! Ele sabia que, na segunda-feira, era eu quem pegava o carro e queria que eu entrasse pelos canos! Mas, mal sabia ele que eu era naturalmente muito mais esperta (são os dois genes X, que posso fazer se ele só tem um?) e ele nunca iria me passar a perna.
Considerando que os banhos dele levavam uns trinta minutos, corri com o carro para o posto e calculei rapidamente: o trajeto até o meu trabalho era de uns quinze quilômetros, meu carro fazia aproximadamente seis por litro comigo dirigindo, ou seja, eu precisaria de cinco litros de combustível…
Pedi para o moço encher com vinte e cinco reais que, pasmem, são apenas cinco litros de etanol (é, pois é) e não fizeram nem cócegas no tanque, só fizeram a luz apagar.
Daí, voltei para casa tranquilamente e estava fingindo assistir ao domingão do Huck quando ele chegou, sorridente e contente, achando que seu plano daria certo. Mal sabia ele…
Segunda à noite, quando eu cheguei, ele falou:
– E o carro? Lembrou de encher o tanque, hoje?
– Quando eu cheguei, ainda nem tinha entrado no reserva – falei, com a consciência tranquila. Não tinha, porque eu tinha conferido da última vez com o carro na rampa de subida da garagem.
Ele não sabia o que responder; se falasse que não era possível, iria se entregar, porque ele tinha deixado o tanque quase vazio propositalmente. Assim, lá ficou ele no computador, bufando, sem saber o que fazer: admitir e sair para encher o tanque? Ou comprar o meu blefe?
Bem, ele não se moveu do computador pelas próximas duas horas, provavelmente fundindo o cérebro, pensando. E, na terça à noite, não deu outra:
– Sério, Talita, de novo? Mal deu para eu sair da garagem, o carro já parou! Atrasei duas horas para o trabalho, hoje!
Por dentro, eu me matava de rir. Ninguém mandou tentar me enganar! Há!
Mais uma semana passou e, desta vez, ele não veio com a desculpa esdrúxula de que ia jogar bola. E, aí, na segunda-feira, peguei o carro para trabalhar: o tanque estava vazio, mas não tinha entrado no reserva, ou seja, eu conseguiria ir e voltar sem problemas. Só que, na hora de voltar para casa… Ele simplesmente parou no meio da Radial! Na hora do rush! Imaginem que beleza.
– Mas, não é possível! – eu falei. – Ele ainda nem entrou no reserva!
O que raios ele tinha feito?
Parece que ele pressentiu, porque, pouco depois, enquanto eu pensava o que eu fazia, se ligava para o seguro ou se me aventurava a sair andando pela radial à procura de combustível, ele me ligou.
– Talita, você vai demorar ainda? Estou pensando em pedir algo para a janta.
– Vou, o carro parou – respondi, me controlando para não demonstrar minha irritação.
– Como assim? – ele perguntou, e eu conseguia sentir seu sorriso de fundo e a voz fingida de inocente.
– Ele não estava no reserva, ainda, mas simplesmente parou – falei.
– Ah! É verdade, a luz do reserva parou de funcionar, vi hoje de manhã, acho que é um fusível. Vou levar para arrumar amanhã.
– Custava avisar, Danilo? – eu reclamei.
– É só pegar um pouco de gasolina, depois que parou da última vez, eu comecei a guardar um galão vazio no porta-malas.
Respirei fundo.
– Ótimo – disse e desliguei.
Mas ele não ia me passar a perna.
Quando cheguei finalmente ao nosso apartamento, já eram quase dez horas da noite; Danilo havia tentado me ligar várias vezes, mas eu diligentemente desliguei todas.
– Talita! Estava começando a ficar preocupado! – ele falou.
Olhei para os restos do Ifood e a garrafa de cerveja na mesa. Sei.
Eu levantei a mão para ele, pois estava ao telefone.
– Ah, Paulo, imagina, eu que agradeço. Não sei o que faria se você. Bom, consegui chegar. Obrigada por tudo – e desliguei.
– Quem era?
– O Paulo.
– Que Paulo? – ele perguntou, fingindo que não sabia quem era.
– Aquele do serviço.
– Ah, o Paulo-Dobby.
Ele chamava o Paulo de Dobby por causa da orelha dele, que era um pouco pontuda, mas eu sabia que ele morria de ciúmes, especialmente porque o Paulo nutria um amor platônico por mim já fazia anos e vivia me ajudando em qualquer coisa que eu precisasse.
– O carro parou na Radial, bem naquela hora que você me ligou, e não teve o que resolvesse. Eu até fui buscar combustível, mas o carro não ligava mesmo assim, e a polícia parou para me ajudar. Acabaram rebocando o carro, porque, ao que parece, é algum tipo de crime ficar parado por falta de gasolina…
– Mas, você disse que ele não estava funcionando mesmo com o combustível! – exclamou ele, lívido.
– Ah, eu sei, mas vai tentar explicar isso pra polícia? Enfim, eles me deram um papel com o endereço do lugar para onde levaram, parece que pode ir amanhã buscar, mas acho que seria bom já acionar o seguro, deve ter realmente queimado alguma coisa, com essa história de ficar sem combustível. O Paulo falou que pode ser bomba de injeção ou qualquer coisa do tipo.
Ele ficava cada vez mais tenso no sofá.
– Bom, como eu estava parada em um posto sem ter para onde ir, eu liguei para o Paulo, já que ele mora perto de onde eu estava, e ele me deu uma carona até em casa. Ó, aqui, o papel.
– Mas… Mas…
Ele se desfazia no sofá.
– Ah, que bom que você já jantou, acabei jantando com o Paulo no caminho – falei, indo para o quarto.
Enquanto estava me trocando, ouvi uns barulhos na sala. Acho que era ele batendo a cabeça na parede. De manhã eu contaria para ele que o carro estava na garagem, que nada disso tinha acontecido e que eu já tinha colocado o fusível de volta. Mas, antes, ia deixá-lo sofrer um pouco para largar a mão de ser besta.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais