Home-Office
Esta pandemia fez a gente passar por muitas e muitas coisas que a gente nunca esperaria. A primeira delas foi ficar de máscara para cima e para baixo e tomar um banho de álcool em gel toda vez que tocássemos qualquer coisa do mundo exterior. A outra foi ser todo mundo realocado para Home-office, uma coisa que, pensando comigo, até que é bastante inteligente, especialmente considerando-se o preço atual dos combustíveis, mas que não deixa de ter os seus perrengues.
Vejam só, eu trabalho em um banco, no setor de investimentos, e o Danilo trabalha para uma empresa de seguros de vida, ou seja: nossa vida é basicamente tratar com pessoas. Mas, enquanto eu trabalho no banco a maior parte do dia, o Danilo fica perambulando para tudo que é canto com o nosso carro (daí as nossas várias discussões sobre encher o tanque). Com o home-office, ficamos os dois trancafiados em casa.
Nosso apartamento é bastante pequeno, mas é o suficiente para nós dois, especialmente porque basicamente nunca ficamos em casa (antes da pandemia, claro). Mas, com os dois trancafiados 24 horas por dia, sete dias por semana, logo começou a parecer uma prisão. Sabe aquelas pessoas que postam fotos do nascer do sol no Instagram, cheias de “Gratiluz” e assando pão pela manhã ou construindo seu próprio forno de barro para fazer seus tijolos para fazer suas edículas para fazer um galpão para fazer máscaras de pano para pessoas necessitadas? Pois é, que vão todos à merda. Não tem gratiluz que aguente um confinamento em 40 metros quadrados com seu marido.
Tá, tudo bem, talvez eu esteja exagerando um pouco, mas eu tenho certeza de que, quando ouvirem a minha história, vocês vão entender.
A disputa já começou pelo fato de que a empresa dele resolveu dar um laptop, uma cadeira de gamer e até um curso de ergonomia no serviço. A minha falou que, se eu não tivesse um laptop, bem, estava na hora de comprar um, porque quem é que chega ao século XXI sem um laptop?
E, bom, a gente não tinha nenhum escritório nem nada do tipo, nosso apartamento é de um quarto só, então, a gente começou dividindo a mesa da sala, ele de um lado, eu do outro, cada um com seu laptop, ele na sua cadeira de gamer que só faltava ventilar e fazer massagem, e eu na minha cadeira de plástico. Logo eu comecei a falar que estava com dores nos ombros, nas costas, na lombar, mas nada de ele se compadecer. À noite, falei que estava com tanta dor, que precisava de uma massagem, e é lógico que ele entendeu isso da forma errada.
– Não, é só uma massagem! – falei.
Durou dois minutos, como sempre, e ele já estava com dores nas mãos.
Bom, depois da primeira semana, eu dei um ultimato: ou eu comprava uma cadeira igual à dele, ou a gente iria revezar o uso.
Como não estava sobrando dinheiro para ninguém, ele aceitou revezar, então a gente fez uma escala – dias pares, ele, dias ímpares, eu, com correções conforme o mês mudava. Até aí, tudo bem.
Só que, deu um tempo, ele começou a se sentir talvez confortável demais com a situação de trabalhar em casa. Além de acordar faltando cinco minutos e só pentear o cabelo e colocar uma camisa, sem nem sequer escovar os dentes (e quem tinha de aguentar o bafo depois era eu, não os clientes), teve um dia em que, no meio de uma reunião, isso, no meio de uma reunião minha com um cliente, eu ouvi um barulho estranho. Na verdade, uma série deles.
Meu cliente me encarou, achando que tinha sido eu a, bem, vamos pôr em palavras diretas, peidorreira descontrolada.
– Danilo! – eu gritei, sem conseguir me controlar. – Eu estou no meio de uma reunião!
Ele só acenou, do outro lado da mesa, sem se importar.
– Me desculpe, seu Almeida, meu marido está de home office junto comigo…
Ele não pareceu acreditar; pouco depois, veio um cheiro, aquele cheiro de rato morto, e eu tive vontade de vomitar. Não sabia se era pior explicar ao cliente o que estava acontecendo, ou dizer que iria abrir a janela para tomar um ar, ou mudar de lugar…
Fiz a única solução respeitável que me sobrou: desliguei o modem.
– Ei! – exclamou meu marido nojento. – Eu estava quase matando um villager!
Fui batendo os pés até a janela, abri, peguei um ventilador no quarto e liguei no turbo.
– Danilo, pelo amor de Deus! Vai no banheiro quando for fazer isso!
– Foi mal, eu…
– Não é possível que você faça isso no escritório!
– Lógico que a gente faz! A gente tem até uma competição!
– Como é?
– O Lipão, nossa, você precisa ver, o Lipão peida as letras do alfabeto até o jota!
Eu estava tão enojada, mas tão enojada, que tive de me controlar para não ir ao banheiro vomitar.
– Certo, nova regra: sem peidos no escritório!
Ele bateu continência.
– Sim, senhora, imperatriz Talita!
E, como se isso não fosse ruim o suficiente, teve o dia em que ele resolveu equiparar os seus gases tóxicos ao meu simples cuidado de unha! É!
– Ai, Talita, o que é isso! Que nojo!
– O que foi? – perguntei.
Ele estava trabalhando em um contrato e eu estava esperando um cliente entrar na reunião. Enquanto isso, tinha pegado uma daquelas lancetinhas, sabe? Que são ótimas para limpar debaixo das unhas dos pés? E o Danilo ficou me olhando, cada vez mais pálido.
– Para de mexer nessa unha!
– Como assim?
– Ah, eu não posso peidar na sala, mas você pode ficar fazendo essa nojeira?
– Só estou limpando a unha!
– Não importa! Dá aflição!
– Você não limpa a sua?
– Eu não! Argh, dá arrepio só de imaginar!
Bem, daí saiu a regra 27: nada de cutucar as unhas na sala.
Mas, talvez, o pior de tudo fosse o fato de que, com ele trabalhando no mesmo recinto que eu, eu conseguia ouvir as suas reuniões. E, lá estava ele um dia, oito horas da noite, fazendo uma reunião com umazinha que tinha um decote que parecia que ia até o umbigo.
– Mas, você tem um seguro de vida? – ela perguntou, com uma tentativa de voz de locutora de rádio da meia-noite, mas que mais parecia uma usuária de bomba.
– Ah, lógico que tenho, né. Eu e minha esposa. A gente pode morrer a qualquer dia, tem que estar preparado!
Ela mordeu o lábio e soltou:
– Ah, que esposa feliz que deve ser a sua, com um marido tão cuidadoso…
Se pudesse, teria estourado a tela do laptop, mas eu me controlei; fui para o quarto, pus a camisola mais chamativa que tinha (e que não tinha sido comprada em uma sex shop) e o abracei por trás na cadeira, dando um beijo na bochecha.
– Querido, vamos deitar – falei.
– Talita, estou em reunião! – ele respondeu, dando um pulo na cadeira. – Desculpa, Priscila, essa coisa de home-office.
– Não, tudo bem, vamos marcar para outro dia, não tem problema – ela falou e desligou.
O recado tinha sido dado.
O problema é que Danilo recebeu uma advertência do chefe depois disso, especialmente porque a cliente pediu para trocar de agente e contou a história absurda de que eu estava passeando pela casa sem roupa.
Bem, e não é que outra vez ele resolveu dar o troco também?
Eu estava em uma reunião com um investidor, e o cliente falou bem assim:
– Talita, sabe, quando acabar toda essa história da pandemia, bem que a gente poderia se encontrar pessoalmente e tomar alguma coisa, o que acha?
Olhei para a minha diagonal, onde Danilo estava, usando o seu fone gigante de princesa Leia, totalmente entretido em o que provavelmente era algum jogo.
– Me desculpe, seu Silva, mas não seria apropriado – falei, arrumando a franja com a minha mão esquerda para deixar minha aliança bem à mostra.
– Ah, bem, tudo bem – ele falou, percebendo. – Eu sempre gostei de desafios.
Fiquei em silêncio por uns instantes.
– A pandemia. Esse é o desafio – ele disse.
Desligou pouco depois, e o Danilo, que quando é para escutar alguma coisa importante, como eu avisando que acabou algo, ou que ia ter uma reunião, ou qualquer outra coisa que fosse, nunca escuta, saltou da sua cadeira.
– Quem é esse tal de Silva? Que história é essa de se encontrar depois da pandemia?
Revirei os olhos.
– Se eu fosse brigar com todo cliente que dá em cima de mim…
E eles tinham ficado ainda mais assanhados com essa história de distanciamento social!
Bem, Danilo passou uns dois dias mal-humorado comigo, mesmo eu tendo seguido toda a cartilha do banco de como agir nestes casos. Decidimos que seria melhor se usássemos fones sempre. Daqueles que isolam o som.
Mas, essa história de acordar e trabalhar, comer e trabalhar, dormir e trabalhar estava deixando a gente maluco; depois que vi uma reportagem de pessoas dizendo que estavam saindo com o carro e dando a volta no quarteirão só para o corpo entender que estavam indo para o trabalho, falei que ia fazer isso. Danilo ficou revoltado; gastar gasolina à toa? Mas, na verdade, tudo o que eu queria era um tempo, cinco minutinhos só pra mim, sem ficar encarando ele vinte e quatro horas do outro lado da mesa.
Mostrei-lhe o dedo do meio e saí para dar a volta com o carro. Acho que foi o que me impediu de cometer um assassinato.
Agora, se tinha uma coisa que me irritava também era quando eu estava me matando de trabalhar, fazendo cálculos complicados, tentando entender as análises de mercado, e o Danilo estava lá, de boa, se matando de rir com piadas com os amigos, ou durantes os jogos online, cantarolando músicas…
Chegamos a um ponto em que a situação estava tão insustentável, que decidimos trabalhar com separação total de corpos: um ficaria na cozinha, na mesa embutida de café da manhã, e o outro ficaria na sala. Sucesso! As coisas começaram a fluir de uma forma tão melhor, que até mesmo, depois de um tempo, ele falou:
– Viu, Talita, parece que estão abrindo vagas na equipe de vendas, muita gente querendo contratar seguro de vida com essa história de Covid… Você não quer vir trabalhar comigo?
Para a minha sorte, eu tinha uma reunião, então falei que iria pensar e depois dela eu responderia.
Trabalhar com Danilo? O tempo todo? Competindo por clientes? Aturando Lipão e seu alfabeto gasoso? Pelo amor de Deus!
Evitei a conversa o dia todo, trancada na cozinha; por fim, chegou a noite, e não tinha escapatória; mesmo dando a volta no quarteirão com o carro, eu ainda teria de voltar, e como dizer para ele que, pelo bem do nosso casamento, cada um tinha que trabalhar no seu canto?
Foi um jantar esquisito e ansioso, até que, finalmente, ele tocou no elefante da sala.
– E então? O que achou da minha ideia?
– Ah, Danilo… Eu… – engoli em seco. Passei o dia pensando e não tive uma boa ideia. – Eu gosto do que eu faço – falei, por fim. – Acho que não quero vender seguros, prefiro ficar nos investimentos.
Ele tentou esconder a sensação de alívio e o suspiro, mas não conseguiu.
– Você está feliz que eu não vou trabalhar com você?
– Não! Não, não é isso, é que… – ele respondeu, do mesmo jeito que tentava fingir que não tinha ido jogar bola com os amigos.
– Tudo bem, Danilo, tá tudo bem.
– Sério?
– Acho que não dá para a gente trabalhar junto. Tem casal que simplesmente não serve para trabalhar junto.
– Ah! Que bom que você acha isso também! Eu sugeri, mas só depois eu pensei que… Não iria dar certo!
E assim, terminamos o dia aliviados. Ele até me fez uma massagem e me comprou uma cadeira de gamer.
E, graças a Deus, incontáveis meses depois, voltamos a trabalhar no escritório.
Mas, sabe que, pensando agora comigo, depois disso tudo, eu até que sinto falta de ficar com ele o dia todo? Será que o chefe dele ainda estava precisando de funcionários novos? Tenho certeza de que a gente conseguiria fazer funcionar…
Brincadeira.
Ninguém merece trabalhar com o marido. Sério.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais