O controle remoto
– O que você acha de a gente assistir um pouco de TV?
– Pode ser.
Sem achar o controle onde deveria estar, Danilo ligou a TV no botão, e nós nos sentamos no sofá. Pouco depois, enquanto ficava na tela do menu inicial…
– Cadê o controle remoto? – perguntei.
– Não sei – ele respondeu, olhando em volta daquele jeito que homem faz, sabe, que não conseguiria ver nem se o controle estivesse colado na frente dele? – Aqui não está. Levanta e dá uma olhada se você não sentou em cima.
– Eu não sentei em cima – eu tinha certeza disso. – Veja você se não sentou.
Ele bufou e continuou olhando em volta. Passou a mão nas laterais do sofá, passou debaixo da bunda, inclinou para lá e para cá, mas nada.
– Sério, Talita, veja se você não sentou em cima.
– Estou dizendo que eu não sentei! Você que deve ter sentado. Levanta você.
– Às vezes a gente senta e não percebe…
– Você tá dizendo que eu não sinto onde eu coloco a minha bunda? – perguntei, ultrajada.
– É claro que não! É que, às vezes… Ahm… Dependendo do tamanho da… – ele começou a se enrolar.
– Você quer dizer que a minha bunda é grande, é isso?
– Não, não é!
– Grande e gorda? E insensível?
– Não! Não! De jeito nenhum! – ele falou, com os olhos arregalados. – Ela é pequena e magra e…
– Você quer dizer seca? Tipo, magrela? Sem bunda?
– Não! Não mesmo! Ela é redonda e perfeita e… Sem celulite nenhuma!
– Tá, agora eu sei que você definitivamente tá mentindo. Tá confundindo minha bunda com a da outra, é?
– Nãããããoooo!!!! – exclamou ele, meio que se desfazendo no sofá sob a pressão.
Eu não sei o que exatamente me fazia fazer aquilo, mas era algo mais forte do que eu. Eu precisava trolar o Danilo. Era ótimo vê-lo sofrer um pouquinho, se enrolando nas próprias bobeiras.
Depois de alguns instantes de desespero, ele pegou o celular.
– Vou baixar um aplicativo, tá bom?
Em poucos instantes, ele conseguia controlar a televisão. Assistimos a um filme, e, quando ele acabou, ele desligou e ficou olhando para mim com cara de expectativa.
– O que foi? Nem vem que hoje não tem.
– Não, não é isso que eu tava pensando…
Eu estreitei os olhos, franzindo.
– Você quer que eu levante para ver se o controle está embaixo de mim, não é?
– Não, não, só estou esperando você se levantar e…
– Você não confia em mim! Eu sabia!
– É lógico que eu confio!
– Não confia, não! Eu já falei que não sentei no controle, então, se você tivesse um mínimo de confiança em mim, você iria acreditar!
– Não, não é isso, é lógico que eu confio em você, mas…
– Sério, todos esses anos juntos, e ele não consegue acreditar na percepção da minha própria bunda…
Ele parou por uns instantes, pensativo. Eu podia ver as engrenagens se movendo, a muito custo, dentro da cabeça dele.
– Ei, calma aí… Você também não confia em mim! Eu também falei que não tinha sentado, mas você insistiu que era eu!
– É lógico que não confio! Você é homem!
– Como que é?
– E não pense que eu não sei que você anda de conversinha com aquela lá do escritório.
– Aquela lá, quem?
– A tal de Dani!
– Dani? A Dani? A secretária de 59 anos?
– Que mulher de quase 60 anos ia ter um apelido de Dani? Isso aí é nome de novinha!
– Talita, pelo amor de Deus, você não pode estar falando sério!
Cruzei os braços; ele bufou; e as engrenagens se moveram novamente.
– Eu também não confio em você! – ele exclamou.
Novamente, minha cara de ultraje.
– Você não confia em mim? A mulher que casou com você? Que está com você há anos? Que dorme na mesma cama que você? Que compartilha a mesma toalha, porque você não tem capacidade de diferenciar a sua da minha? Que ainda tem que ficar pegando roupa suja jogada no chão e toalha molhada para pendurar? Que…
– Tá bom, tá bom, desculpa! Eu confio, sim!
– Não, agora você já falou que não confia, e a história do controle é a maior prova!
– Não, eu confio, eu confio, mesmo! Só falei isso porque tava bravo!
– É nessas horas que fala a verdade!
– Talitinha, por favor, eu…
– Nem vem com essa.
– Eu confio em você! Juro!
– Então, prova pra mim. Levanta essa bunda daí e para de me encher o saco sobre o controle, vai.
– Tá bom.
Ele estava quase se levantando, quando a ficha caiu.
– Ei, eu sei que isso é um golpe! – ele exclamou.
Olha só, e não é que ele estava ficando mais esperto com o tempo?
– Eu não vou me levantar até você se levantar!
– Isso só prova que você realmente não confia em mim! – retruquei.
– E você também não!
– O que, se você quer saber a verdade, é o que toda mulher deveria fazer!
Ficamos os dois parados, um encarando o outro. E, de repente, ele puxou o celular.
– Só tem um jeito de resolver isso. Vou ligar pro Lipão.
– Como que é?
– Fala, Lipão, meu véio! Como cê tá? Então, cara, preciso dum favor seu…
Ele estava literalmente pedindo para o amigo dele vir à nossa casa!
– O único jeito de a gente resolver a nossa confiança abalada é este: uma terceira pessoa fica atrás, nós dois levantamos ao mesmo tempo… – ele disse.
E depois ele fala que estava debaixo da sua bunda e eu esfrego na sua cara!
– E ninguém nunca fica sabendo onde estava o controle!
Eu fiquei positivamente surpresa. Era uma decisão tão madura da parte dele (apesar de envolver o Lipão), não?
– Ok, mas eu não confio no Lipão.
– Como é?
– Ele vai dizer que estava embaixo de mim, quando não estava.
– Mas o negócio é esse, ninguém nunca vai saber, porque ele não vai falar onde estava!
– Duvido que ele não vai contar pra você, quando vocês estiverem jogando futebol ou videogame.
– Não vai, não! Você não confia no Lipão?
– Menos ainda do que eu confio em você!
Eu peguei meu celular e liguei para a minha irmã.
Quinze minutos depois, Lipão chegou. Ficou um suspense, um olhando para a cara do outro.
– Alguém tem que levantar para abrir pra ele – o Danilo falou.
Eu ri, entendendo o plano dele.
– Eu não vou cair no seu truque! Vai você!
– Não, ele veio justamente pra gente não passar por essa situação!
– Ah, é, gênio, então quem vai abrir a porta?
Ele bufou.
Ficamos ainda alguns minutos sem saber o que fazer; Lipão ligou, depois de cansar de apertar a campainha.
– Não, cara, eu tô em casa, só que… Eu não posso levantar pra atender. Não, não vai embora, a gente vai dar um jeito! Eu só preciso de… Ahm… Peraí que eu vou resolver!
Ele desligou e começou a fuçar no celular.
– O que você tá fazendo?
– Procurando um chaveiro 24 horas.
– Você tá de brincadeira, né, Danilo? Você vai chamar um cara pra abrir a nossa porta, só porque você não quer se levantar?
– Fique à vontade para ir lá se quiser!
Ele ligou; para minha surpresa, o chaveiro atendeu e disse que estaria em casa em, no máximo, uma hora e meia. Nisso, o Lipão ligou de novo.
– O chaveiro tá vindo, relaxa… Não, véio, sério, peraí, eu te compro uma pizza e uma cerva, valeu? Tá, tá bom, duas cervas.
Ficamos os dois nos encarando, ninguém querendo arredar o pé. E, após uns quinze minutos, ouvimos Lipão e alguém conversando à porta.
– Será que é o chaveiro? Rápido assim?
Não, melhor que isso! Era a Carla! Subitamente, a porta se abriu.
Para minha sorte, ela tinha uma cópia da chave!
Explicamos para eles o impasse e a situação ridícula em que nos encontrávamos, e os dois concordaram em servir como juízes, às custas de pizza e cerveja para Lipão e um vale night para Carla e o seu marido.
– Vocês ficam aí atrás. A gente se levanta. Vocês pegam o controle, e ninguém nunca fica sabendo onde estava. Só vocês. Vocês não podem contar para ninguém. Fui clara?
Os dois concordaram e se postaram atrás da gente, como uma tropa bem treinada. Para não haver favorecimentos, a Carla ficou atrás do Danilo, e o Lipão ficou atrás de mim. Eu fiz uma contagem regressiva:
– Três… Dois… Um… Já!
Nós dois nos levantamos; Danilo olhou para a minha direção, mas eu sabia que ele só queria ver o sofá pelo canto do olho, então, eu segurei o rosto dele com a minha mão, e ele segurou o meu com a dele, para que nenhum dos dois conseguisse ver. Seria relativamente romântico, se não fosse tão ridículo. Ouvimos o barulho dos dois se inclinando no sofá e tateando; e, de repente…
– Ah-há! – disse a minha irmã; nós nos viramos, e ela estava com o controle na mão e um olhar triunfante.
– Eu sabia que tava embaixo do Danilo!
– Não tava, não! – exclamou o Lipão.
– Debaixo de mim é que não estava! – eu respondi.
– Não tava, mesmo! – disse a Carla, minha irmã favorita e mais fiel (e única).
– Se não estava embaixo de mim, nem da Talita, onde estava então? – questionou Danilo.
Os dois se entreolharam e, assentindo, disseram:
– Estava enfiado atrás do sofá, debaixo da almofada.
Nós quatro nos entreolhamos e começamos a rir; crise resolvida, pedimos a pizza, ficamos devendo o vale night, e tudo deu certo. Até o chaveiro (que o Danilo esqueceu de cancelar, claro), entrou no rolo e comeu umas fatias antes de ir atender alguém que realmente precisava dele.
Mas, antes de ir embora, a Carla me contou, bem baixinho:
– Ele tava sentado em cima!
Eu olhei para o Lipão, que também estava cochichando alguma coisa no ouvido do meu marido.
Será que ele estava falando que eu tinha sentado em cima?
Olhei para os dois.
Será que eles tinham combinado as respostas, só para não perderem o que a gente tinha prometido? Cerveja, pizza e vale night?
Uhm…
Acho que só organizando outro teste do controle do sofá, para ver se minha irmã realmente era confiável.
Talvez, no domingo que vem.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais