Passando a roupa
Se tem outra coisa que pode levar um casamento literalmente pelo ralo é a faxina. Lógico, as coisas não são mais como antigamente: essa história de que a mulher tem que cuidar da casa sozinha não cola. Eu já trabalho tanto quanto o meu marido, por que raios ele pode chegar em casa, tomar uma cerveja e assistir a um jogo, e eu tenho de ficar limpando? Não, não, de jeito nenhum.
Bem, no começo do casamento, o Danilo prometeu que iria me ajudar com a limpeza da casa, e, realmente, nas primeiras semanas, ele até ajudou; tirava a mesa, varria o chão depois de comer, ajudava a faxinar as coisas no sábado…
Mas, quem saber a verdade? Ele sempre foi um filhinho de papai. É, eu sei, é meu marido, mas eu tenho que ser sincera, não é? Enquanto eu já estava lá, trabalhando desde cedo, ele basicamente recebia uma mesada para ficar de pernas pro ar. Ah, jogando videogame.
Bem, isso quer dizer que logo o negócio degringolou e ele “cansou” de me ajudar. Quando percebi, estava eu basicamente pegando as suas roupas sujas do chão e colocando no cesto (“Ai, amor, desculpa, eu me distraí!”), passando suas camisas (“Sério, você passa muito melhor que eu, olha isso! As minhas ficam todas amassadas!”), arrumando a cama (“Você sabia que, falando do ponto de vista físico, a gente gasta muito mais energia arrumando a cama do que deixando ela bagunçada? É alguma coisa a ver com entropia”. O que raios é entropia? Duvido que ele saiba! “E, além disso, eu vi um estudo falando que, por causa do acúmulo de ácaros e tudo mais, deixar a cama desarrumada na realidade diminui o risco de asma!” Onde que ele leu isso? Fake News Journal?), lavando o banheiro (“Por que lavar três vezes na semana? A gente nem suja! Uma vez por mês tá bom!”) e assim vai…
Minha primeira rebelião foi com coisas com as quais eu poderia viver sem, como, por exemplo, as roupas dele. Simplesmente, comecei a deixar tudo caído e jogado no chão (aliás, eu adorava pisar em cima com o sapato sujo depois de chegar em casa), e ele que se virasse, e nada mais de passar.
Mas, eis que, não sei como, ele continuava me aparecendo com as roupas limpas e passadas. Outro dia, eu abri o armário do quarto, imaginando o caos que estaria, e qual não foi a minha surpresa quando vi as camisas todas arrumadinhas, organizadas em uma gradação de cores!
– Nossa, Danilo! Suas roupas estão um brinco – falei, jogando verde.
– Você viu? É, quando eu realmente me dedico a uma coisa, vou te dizer, eu até que sei fazer direito – ele respondeu, sem pausar o videogame e dando um sorrisinho esnobe.
– Mas, sabe, eu não vi nenhuma delas secando…
– Tenho usado a função de secadora da máquina, é mais fácil – ele respondeu.
– Nem lavando…
– Tenho colocado à noite, uma vez na semana, quando você não está usando.
– Nem você passando…
– Eu passo quando você está no yoga, sábado de manhã. Você vê, você lá, ficando zen, e eu aqui, trabalhando duro para manter a casa limpa e organizada – ele arrematou.
Sei…
Aquilo tudo estava muito estranho, até porque eu tinha certeza de que o Danilo não sabia nem qual era o compartimento para pôr o sabão, quem dirá saber usar a função de secar da máquina!
Só me restava uma opção: investigar. Eu tinha certeza de uma coisa: não era ele quem estava lavando, passando e arrumando suas roupas, não só porque ele era incapaz de fazer uma coisa dessas, mas também porque nunca, de forma alguma, ele conseguiria arrumar as roupas em uma gradação de cores! Ele só poderia, então, estar fazendo uma de duas coisas: ou levando a uma lavanderia, o que seria muito, muito caro, para não mencionar injusto. Por que ele pode levar à lavanderia, e eu tenho de ficar lá, me matando para lavar e passar minhas coisas? Ou a outra opção, muito pior, era a que ele tivesse uma amante! Sim, uma amante, que não bastava estar com o meu marido, ainda tinha um fetiche por lavar e passar roupas!
É, eu sei, era estranho, mas, sei lá, o mundo mudou, as pessoas estão mais carentes, vai saber o que não fazem por atenção? Assim, no sábado de manhã, eu mudei meu horário do yoga para mais tarde, falei que ia sair e fiquei parada no saguão do nosso andar, escondida atrás da parede; se alguém viesse pelo elevador, ou ele saísse de casa, eu veria e teria tempo de me esconder.
Dito e feito; vinte minutos depois de eu ter saído, o elevador se abriu, mas eu tive de me esconder. Só consegui ouvir o vush-vush de roupas raspando – era alguém repleto de cabides! Seria o entregador da lavanderia? Não tinha como saber. Mas, pior! Esse alguém não parou e tocou a campainha, simplesmente destrancou a porta e entrou! Esse alguém tinha a chave! Será que ele já estava neste ponto com a amante?
O que eu faria? Entraria em casa e pegaria os dois no flagra? Esperaria ela sair pela porta? Resolvi ligar e sondar.
– Oi, amor – falei, tentando ser o mais carinhosa possível, por mais que estivesse borbulhando por baixo.
– Oi, amor – ele respondeu, surpreso. – Aconteceu alguma coisa?
– Não, eu só… Tenho a impressão de que não desliguei o gás de uma boca do fogão hoje de manhã e não estou conseguindo me concentrar na yoga. Você consegue olhar para mim?
– Boca do fogão? Peraí…
Ele foi andando até a cozinha, consegui ouvir seus passos, mexeu em alguns botões e voltou a falar.
– Parece que estava tudo desligado!
– Ufa! – respondi. Precisava segurá-lo na linha; não tinha mais nenhum barulho na casa. Será que ele tinha pedido para ela ficar em silêncio? – Viu, como estão as roupas aí? Passando todas?
– Ah, sim! Estou indo bem, aqui. Já foram várias.
– Você não quer aproveitar e passar uma blusa minha, que vou usar à noite?
– Blusa? Que blusa?
– Aquela azul, com listras brancas e um desenho de borboleta bordado.
– Onde ela está?
– No cesto de roupa limpa.
– E onde ele está?
– Ué, na lavanderia, Danilo! Onde você põe as suas roupas limpas?
– Eu só pego direto da máquina e… Ah, aqui, achei. Tem certeza de que você quer que eu passe?
– Ah, você está passando tão bem suas camisas! Certeza que vai ficar melhor do que se eu passasse.
– Mas…
– Por favor, vai! É para usar hoje à noite.
– Ah, tá bom, tá bom… – ele respondeu.
– Obrigada! Deixa eu voltar pro yoga, agora.
E desliguei; vamos ver o desenrolar dos próximos acontecimentos!
Fiquei olhando o relógio; ainda tinha mais trinta minutos para acabar minha suposta sessão de yoga, e eu chegaria em casa dez minutos depois, ou seja, ele tinha ainda 40 minutos com quem quer que fosse em casa. Essa pessoa tinha de sair, de alguma forma, neste meio tempo.
Com certeza, não era um entregador da lavanderia; já estava lá havia tempo demais! Fui olhando para o relógio, vendo os segundos passarem, tentando me concentrar em idiotices no Instagram, mas estava difícil, até que, meia hora depois, a porta se abriu. Bem em cima! Ele realmente gostava de viver perigosamente!
Ouvi o barulho de saltos no chão; era uma mulher! Definitivamente, uma mulher! Senti o meu mundo desmoronar. Uma amante! Justamente uma amante! No sábado de manhã! Por isso que ele ficava todo alegrinho quando eu voltava do yoga!
O que eu iria fazer? Precisava acabar com aquilo e já!
Mas, por outro lado… Era uma amante que lavava e passava suas roupas, não era? Até que não era ruim… Será que ela faria mais coisas na casa? Estava começando a ver alguma vantagem.
Não, não, que história é essa? Não dá para tolerar esse tipo de coisa! Logo no início do casamento? Fala sério! Escondi-me atrás da parede, tentando olhar, mas eu tinha me distraído com o Instagram e perdido a oportunidade de fazer isso bem na hora que ela saísse pela porta. Só poderia colocar a cabeça para o lado, na hora em que fosse entrar no elevador e, mesmo assim, corria o risco de não conseguir descobrir quem era a piriguete.
Por outro lado, ela não me conhecia, não é? Bom, ou acho que não me conhecia. Eu poderia simplesmente aparecer de supetão no saguão e… Ver no que dava, não é? Como se fosse uma pessoa aleatória.
Ouvi o barulho do elevador chegando; era isso! Precisava descobrir quem era a piriguete que estava pegando meu marido e lavando e passando as roupas dele!
Ela abriu a porta; eu subi as escadas. Parei no saguão, olhando para ela. Parecia meio velha, ou, ao menos, usava umas roupas de velha, com o cabelo curto, liso e lambido, bem daquelas piriguetes, mesmo! Afe! Velha tentando parecer jovem, ninguém merece!
Mas que mau gosto meu marido tinha! Não sei o que era pior, ter uma amante mais bonita ou mais feia que eu! Não, acho que mais bonita era melhor, dava para entender, agora, mais feia, e pior, velha? É o fim de carreira!
Só que, de repente, a piriguete se virou.
– Talita? – ela perguntou.
Eu quase caí dura pela escada.
– Dona Marta?
– Você não estava no yoga? – ela falou, como uma mãe repreendendo um filho por ter feito algo errado.
– Acabou mais cedo – respondi. – Mas, e a senhora? Já está indo? Não quer entrar para um café?
– Não, obrigada, eu só vim… Ver se meu filho conseguia me ajudar com um problema no celular, só isso. Não me entendo com tecnologia, sabe? – ela falou, sem graça. – Bem, foi bom te ver, Talita! Continue subindo as escadas, ajuda a perder peso!
E sumiu no elevador. Ainda bem, porque evitou que eu desse uma resposta atravessada. Perder peso! Ora! A gorda aqui era ela, não eu!
Entrei espumando em casa. Estava aliviada porque não era uma amante, mas não sei se era pior ter uma amante que lavava suas roupas, ou sair chorando para a mamãe lavá-las.
– Danilo, você está mandando as suas roupas para a sua mãe lavar e passar?
Ele deu um pulo no sofá, derrubando o controle do videogame.
– O quê?
– Não se faça de idiota! Eu vi ela chegando com as roupas e saindo sem nada!
– Não, não é isso que você está pensando, ela só me ajudou, porque o ferro quebrou e…
– Mas eu te liguei e você disse que estava passando as camisas!
– É que…
– Sério, Danilo, eu não acredito nisso! Você é um homem casado! Não tem vergonha, não?
– Eu… Ela é minha mãe… Ela se ofereceu e…
Mas eu pensei mais rápido do que ele.
– Bom, tá bom, já que é assim, você ganhou um tempo livre. Vamos aproveitar o tempo em que você estaria passando as roupas e arrumar a casa!
– Eu…
Fui rapidamente para a lavanderia, peguei alguns panos e lustra-móveis e entreguei para ele.
– Aqui. Eu tive de mudar meu horário do yoga para poder ficar de olho no que você estava aprontando, e meu yoga de verdade começa daqui a vinte minutos. Eu vou lá. Quando voltar, quero ver os armários brilhando, ehm?
E me fui.
Convencer a mãe a lavar e passar, tudo bem. Queria ver ele convencer a Dona Marta a lustrar móveis… Por mais que ela ame o filho, ninguém cai numa furada dessas! Mas isso já é história para outra crônica.
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais