Perrengue Chique
Desde que nos casamos, aliás, não, desde antes de nos casarmos, eu sempre tive o sonho de conhecer um restaurante muito, muito chique, chamado D.O.M. Fica aqui em São Paulo e, para quem não conhece, tem duas estrelas Michelin, sendo o único do Brasil desta categoria.
Só que, lógico, para ter duas estrelas, é claro que ele não é barato! Assim, eu ficava apenas sonhando e sonhando com o dia em que a gente teria dinheiro o suficiente para conseguir ir lá.
Até que, finalmente…
– Eu ganhei! Eu ganhei! – falei, entrando em casa e pulando.
– Ganhou o quê?
Peguei o Danilo pelos braços e saí sacudindo para lá e para cá; sem saber o porquê, ele entrou na dança também.
– Ganhou na megasena? – ele perguntou.
– Não! Ganhei o concurso do banco que ia dar um jantar a dois no D.O.M.!
– “Não tem problema, depois eu converso com esse seu amigo perrinhom” – disse ele, no que, claro, eu revirei os olhos. Toda vez que alguém mencionava “Dom”, mesmo que fosse em “Dom Quixote”, ele iria fazer a sua famosa citação de “Um ninja da pesada”.
– Não, estou falando do restaurante! Lembra que é meu sonho?
Empolgada, fui me sentar ao computador para agendar; mas, por incrível que pareça, só tinha reserva para o mês que vem!
– Nossa, mas como que está tão cheio? Você não disse que é caríssimo?
– Parece que o país não está tão em crise assim… Mas, tudo bem, vai dar tempo de a gente se arrumar!
– Arrumar?
– Claro! Eu não tenho roupa para este evento!
– O quê?!
– Nem você!
– Como assim? Eu ainda preciso comprar roupa para ir no lugar? Esse negócio tá saindo caro demais!
– Lá custa mais de mil reais por pessoa, Danilo. A gente tá economizando uma grana preta. Você já ia ter de me levar lá em algum momento da vida, então, aproveite.
Ele fingiu uma convulsão e caiu no sofá. Como se eu fosse ligar.
Poucos dias depois, a gente estava em uma loja de roupas, procurando algo que fosse chique o suficiente para poder ir lá, mas não o suficiente para nos levar à falência.
– Sério, eu não entendo. Se a gente não estiver bem-vestido, eles vão expulsar a gente de lá?
– Danilo, para de ser chato e procura algo pra você também.
– Eu vou com uma calça e camisa, pronto.
– Não, está tudo velho, você precisa de algo novo e chique.
– Vou com meu terno de casamento, então.
Eu parei e o olhei bem nos olhos.
– Danilo, você ganhou vinte quilos desde que a gente se casou.
– Eu mando ajustar.
– Não tem tecido que dê – retruquei.
– Sabe, eu queria ser rico o suficiente para poder ir vestido como pobre nesses lugares.
– Eles vão vestidos como pobres, mas cada peça de roupa custa três salários-mínimos, pelo menos – respondi rispidamente, enquanto pegava umas coisas para provar.
Ao final, conseguimos: uma saia, uma blusa, um cardigan, um par de sapatos para mim, uma calça e uma camisa novas para ele. Tudo ainda saiu mais barato que o jantar. E, vocês sabem, a gente sempre tá precisando de roupa nova, né? Então, não foi um gasto, foi um investimento.
– Vocês aceitam órgãos internos para pagamento? – vi Danilo perguntando no caixa.
– Você não vai falar isso no restaurante! – falei, entredentes.
– Ah, ia ser tão legal! Imagina a cara do garçom!
Por fim, chegou o grande dia: eu estava tão ansiosa, que não tinha conseguido sequer comer e já tinha ido ao banheiro umas trinta vezes. Tá, menos. Um pouco menos. Neste meio tempo, Danilo estava lá, de boa, jogando videogame, enquanto esperava eu me arrumar. De repente, a saia parecia feia, a blusa, simples demais, e de onde eu tinha tirado a ideia de que um cardigan ficaria bem com aquela roupa? Troquei umas dez vezes de look, meu quarto estava um caos, roupa por tudo que é canto, até me conformar com o que estava usando mesmo. Paciência.
– Olha só, olha só, olha só! – falou Danilo, entrando no quarto.
Estava com uma roupa toda estropiada.
– Danilo, pelo amor de Deus…
– Não, não! Saca só a etiqueta!
Ele tinha feito uma etiqueta ele próprio, que estava convenientemente saindo pela lateral da camiseta, onde se lia “Balenciaga”.
– Quem disse que eu não posso me vestir de mendigo?
– Vai pôr a roupa que a gente comprou que a gente já está atrasado! Se não, eu vou levar outro homem!
– Esse era seu plano desde o começo, não é?
Eu só rosnei para ele, e ele saiu de fininho com o rabo entre as pernas.
Finalmente, estávamos os dois prontos; devo dizer, até que estávamos bem chiques! Só que tinha um problema…
– Nosso carro!
– O que tem nosso carro?
– Imagina a gente chegando lá e deixando com o valet!
Um Kwid. O carro mais barato do Brasil. Batido. Riscado. Com uma lanterna quebrada (tudo porque a gente não tinha dinheiro sobrando para arrumar).
– O valet deveria é me pagar pelo direito de dirigir nosso carro!
Balancei a cabeça.
– Imagina, se a gente chega lá assim… Já vão começar a tratar a gente como pobre!
– Mas, Talita… Minha querida… A gente é pobre!
– Mas não dá pra ir lá assim… Vamos de Uber!
– Vai sair uma fortuna! Você viu quanto tá os preços de Uber?
– E quanto você acha que iria sair o valet?
– E que tal se a gente for de carro e parar na rua?
– Você acha que vai achar lugar lá?
– Olha, eu tenho certeza de que quem paga para ir nesse restaurante pode pagar o valet…
– Mas, e se a gente for beber? Não dá pra dirigir na volta!
Danilo suspirou; foi vencido.
– Tá bom, vamos de Uber.
No caminho, eu continuava ansiosa; como seria lá? Será que nos atenderiam bem? Será que iriam nos maltratar, porque saberiam, pelo nosso cheiro, que a gente não tinha dinheiro?
– Ei, e se você for fingindo um sotaque de gringo?
– Como é?
– É, é sério. Por quanto tempo você consegue manter aquele seu sotaque de americanou? – falei eu, forçando o “americanou”.
– Eu naun achou que possou manter ou soutaquê por muitou tempou – tentou ele. – Mas isso é ridículo, Talita! Por que a gente não pode ser brasileiro logo de uma vez?
– Eu vivo levando gringo pra lá – comentou o motorista do Uber. – Lugar chique demais.
– Lá é tão bom quanto dizem?
– Parece que sim. O pessoal sai bem feliz. Só não entendo por que fazer uma porta tão grande.
Chegamos lá faltando quinze minutos para o horário que a gente tinha reservado. Eu não tinha entendido o comentário do motorista até ver, realmente, a sua porta de aparentemente dez metros de altura.
Tá, não tinha dez, mas era enorme.
– Sabe que eu vi um meme hoje mesmo sobre isso. Era pra você escrever nos comentários para que serviria uma porta desse tamanho.
– E o que eles diziam?
– Não sei, eu não leio os comentários.
Eu só não dei um tapa nele, porque seria deselegante.
– Como assim, você não lê os comentários?
– Pra quê? É só gente destilando ódio.
– Mas é pra isso que a gente paga a internet!
– Obrigadou – falou ele, para o homem que abriu a porta para nós; eu só fiz um não, com a mão, dizendo que não precisava fingir ser gringo. Já tinha desistido da ideia.
O lugar era impressionante. Eu falei ansiosamente para a recepcionista que a gente tinha chegado antecipado, mas ela não se importou; fomos levados pelo crem de la crem até o mezanino, que era mais reservado, e de lá a gente podia ver o salão de cima. As pessoas falavam baixinho; quase não se ouvia barulhos, e a música de fundo era baixa. Era tudo tão, mas tão chique, que eu estava até com medo de me mexer na cadeira. E, a todo tempo, tinha que dar uns cutucões no Danilo para ele se comportar.
– Viu só? Ninguém vestido de mendigo – falei, triunfantemente para ele.
Ele deu de ombros.
– O menu degustação tem 12 pratos e 9 vinhos para harmonizar – apresentou o garçom.
Danilo esfregou as mãos.
– Os senhores estão para ver algo muito especial – falou, imitando Joey naquele episódio de Friends em que ele come os pratos de todo mundo.
O garçom não pegou a referência, claro, mas sorriu amavelmente e se foi.
– Bom, pelo menos não vai ser como naquele restaurante que a gente foi… Como chamava, mesmo?
Quando Danilo foi me pedir em casamento, ele me levou a um restaurante espanhol que também servia menu degustação. Ele juntou dinheiro um tempão, e lá fomos nós; foi legal, mas foi o maior vexame. Começou com ele pedindo vinho do Porto de entrada, e o sommelier, coitado, teve de explicar para ele que isso era um vinho de sobremesa. Envergonhado, ele se afundou na cadeira e aceitou fosse lá o que fosse que ele sugeriu. O lado bom é que ele teve a decência de saber que a gente não tinha recursos para nada mais elaborado que Sangue de Boi, então, ofereceu o mais barato do cardápio.
Depois, ele reclamou que a degustação consistia em moléculas de comida (“isso que é a verdadeira culinária molecular”), e ele acabou “forrando o bucho”, como ele mesmo disse, com os biscuits e pães de couvert que rondavam as mesas periodicamente.
Mas, pelo menos, ele conseguiu me pedir em casamento, com direito a aliança em cima da sobremesa.
Claro que ela caiu e ficou toda suja e a gente teve de lavar, depois, mas foi legal. Só que serviu para ele nunca mais querer ir a nenhum restaurante que fosse menu degustação. “Pagar tudo isso pra comer couvert? Sério?”.
Neste meio tempo, eu estava ansiosíssima: eles trariam diversos pratos diferentes. Como eu iria saber como comer cada um deles? A gente estava em uma posição em que não conseguia ver as outras mesas do mezanino direito, então, eu não iria conseguir colar dos outros. Eu até poderia olhar para as mesas lá embaixo, mas tinha deixado os óculos em casa, para não estragar todo o trabalho que tive com a maquiagem, então, não fazia ideia de qual talher usar ou como!
Com certeza, os garçons iriam me olhar com aquela cara de desaprovação! “Ah, mais um casalzinho pobretão fingindo que tem dinheiro…”.
Mas, para minha grata surpresa, na hora em que traziam os pratos, os garçons explicavam o que era e como comer. Ufa!
– Calma, a gente vai comer formiga? É isso mesmo?
– E tem gosto de capim limão – disse o garçom, sorridente.
– Não acredito nisso. Formiga?
– Pode comer com a mão ou pegar com o garfo – ele falou.
– Caraca! Fala sério!
Eu o cutuquei para que ele parasse com aquilo. Quando o garçom se foi, ele virou:
– Cadê minha formiga, que eu não consigo nem enxergar?
– Está aqui, ó.
– Isso é a formiga? Sério? Esperava pelo menos aquelas tanajuras bundudas, sabe?
Eu só fiz um tsc, tsc. Ele pegou a formiga com a mão e comeu; eu fui com o garfo e, depois de cinco minutos brigando, finalmente consegui. Era maravilhosa!
– A gente podia criar umas formigas pra comer, ehm – ele falou. – Será que eles dão capim limão para elas comerem?
Eu ignorei.
Mas, não bastasse isso, tinha um vinho para harmonizar com o prato, e o negócio realmente harmonizava!
– Gostoso esse vinhozinho – comentou Danilo. – Acho que vou encomendar uma caixa para casa.
E assim, fomos; prato atrás de prato, vinho atrás de vinho, com direito até mesmo a cerveja e saquê. No meio do menu, eu já não aguentava mais; Danilo, felicíssimo, concluía os seus pratos e pegava os meus, assim como o vinho. Cada um pediu um prato principal diferente (era a única coisa que a gente podia escolher), e, no final, eu comi três garfadas de cada um e deixei o resto para ele.
– Posso abrir a calça?
– Claro que não!
– Por isso que eu queria vir de moletom…
Devo admitir: eu também queria ter vindo de moletom, porque minha saia estava apertadíssima! Sabia que devia ter comprado um número maior, mas era uma questão de honra. O problema é que essa honra estava me impedindo de aproveitar o melhor do jantar…
– Moço, o que quer dizer esse método biodinâmico da criação dos vinhos aí? – perguntou Danilo; acho que o álcool já estava fazendo efeito.
O garçom explicou; eu não entendi lhufas.
– Então, quer dizer que tem a ver com os astros, é? Eles só plantam na constelação de Touro ou algo assim?
Ele explicou melhor; a gente continuou sem entender.
– Tá bom, é o vinho dos cavaleiros do zodíaco, tá valendo – Danilo concluiu. – Duas caixas para mim.
Depois de três sobremesas, concluímos o jantar com um café; o garçom trouxe a conta, e o Danilo só não fingiu convulsão de novo, porque não era a gente que ia pagar. Até que…
– Danilo, o voucher não cobre os 13% – cochichei.
– Como que é?
– O valor do serviço! Ele não cobre!
Ele olhou para a conta, tentando calcular tão rápido quanto o álcool lhe permitia. 13% daquilo seriam possivelmente o que ele ganhava em quase uma semana de trabalho.
– Vai sair mais caro do que a minha roupa nova! – ele exclamou de volta.
– Danilo, fale baixo!
– Será que eles aceitam rins para pagar?
– Chega, eu pago.
– Não, não faz isso! Só entrega o voucher e vê no que dá. Deixa comigo!
Ele colocou os vouchers do meu banco na carteirinha de couro e entregou para o garçom; ele os pegou e conferiu. Sorriu e encarou Danilo; ele sustentou o olhar de volta. Aflita, eu sentia minha barriga se revirar; meu Deus do céu, eu tinha que ter comido tanto? Eu tinha que ter posto uma roupa apertada? Por que eu não podia ser uma pessoa normal e não me estressar com isso tudo?
– Está tudo certo – disse o garçom, por fim. – Espero que tenham aproveitado o jantar.
– Estava maravilhoso! Tudo! – exclamei, aliviada.
– Vocês alimentam a formiga com capim limão? – perguntou Danilo, sem se conter.
– Danilo, para com isso!
– Não, tô falando sério, tô pensando seriamente em criar formigas e…
O garçom riu e explicou alguma coisa, que estou tentando lembrar até agora. Não sei. Foi vinho demais.
E, assim, saímos os dois; dentro do Uber, trocamos olhares e, imediatamente, abrimos os botões, da calça e da saia. Ah, que alívio!
– Vou dizer, se o grande perrengue do rico é comer formiga e essas coisas diferentes… Até que eu posso me acostumar.
Eu sorri. Sonho um, check. Próximo passo: um restaurante com 3 estrelas Michelin. Onde será que tem?
O Dr. David sempre sonhou em ser médico e, especialmente, em cuidar de crianças. Formou-se em medicina pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e, após dois anos trabalhando como médico generalista, onde pôde atuar próximo a famílias pobres e conhecer suas dificuldades e os diversos problemas do sistema de saúde brasileiro, começou a residência em Ortopedia e Traumatologia pelo Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Leia mais